07 de janeiro de 2017 | N° 18735
MARTHA MEDEIROS
Mas guardar-se uma horinha por dia é uma visita que se faz a si mesmo. Chá, cafezinho, um cálice de vinho? Aceito, obrigada
TOQUE de recolher
O WhatsApp não me regula, o Messenger também não. Nem o relógio de pulso, nem a timeline dos amigos, nem a Netflix. Ainda consigo manter certa desobediência civil, só aceito ordens de mim mesma meu toque de recolher particular é sagrado.
Quando escuto o sinal, desligo o mundo – off.
Então acendo uma luzinha interna e sossego em meio à penumbra dos meus devaneios, com os pensamentos em volume bem baixo, um sussurrar quase libidinoso de palavras que vêm e se vão, suaves.
Nessas horas, não estou para ninguém. Não estou à venda nem comprando nada.
Se estiver deitada, nem me levanto – posso me ferir pelo caminho. O banheiro está longe demais da cama, do sofá, da rede, do meu tapete. Medito. Aberta para dentro, ausente para fora.
Também não estou para o zelador, ele não precisa entregar o jornal em mãos, que o deixe em frente à porta, no meio do corredor, que me engane e traga o jornal de ontem que também não li, e o de anteontem e o de amanhã. Quando me isolo na quietude, não faz diferença a manchete que está na capa, só quero matar a curiosidade de mim.
Feito uma Greta Garbo que espia o mundo por trás das cortinas, de óculos escuros? É menos charmoso que isso: não é cena de cinema, não há enigma, não busco um esconderijo, não fujo de nada; ao contrário, retorno satisfeita pra rua, sempre volto dando risada. Viver é muito divertido, apesar de tudo. Mas guardar-se uma horinha por dia é uma visita que se faz a si mesmo. Chá, cafezinho, um cálice de vinho? Aceito, obrigada.
E essa música tocando bem agora... bingo. Música é silêncio em movimento (Fernando Sabino).
Os automóveis continuam circulando, o sinal abre e fecha organizando o fluxo das esquinas, há filas se formando em frente aos bares, sempre alguém atrasado, sempre alguém esperando, os garçons atendendo aos pedidos, o telefone tocando e nunca é quem você gostaria que fosse, os caixas eletrônicos, os ônibus, já é quase meia-noite e você nem viu o dia passar, amanhã tem tudo de novo, tem você de novo em meio a tudo.
Mas escute o sinal. E então, onde estiver – perto da praia, longe de casa, fora do quarto, dentro do carro – se autoimponha um afastamento do desvario. Off. Obedeça à sua ordem interna. Encontre o sentido perdido entre o tanto que foi pensado. É esse o toque.