terça-feira, 13 de outubro de 2020


13 DE OUTUBRO DE 2020
NÍLSON SOUZA

Um falcão na Zona Sul 

Já registrei aqui que a quarentena e o confinamento me tornaram um involuntário observador de animais. Contei, inclusive, o episódio do burro que zurrava várias vezes por dia (e por noites) na proximidade de minha casa, sem que, antes, eu jamais tivesse percebido sua existência. Pois o bicho acabou sendo removido para outras paragens, provavelmente por pressão da vizinhança incomodada.

Depois, ainda nas primeiras semanas de pouco trânsito, comecei a ouvir um garnisé desafinado nas primeiras horas da manhã. Seu canto também cessou - talvez abafado pelo ruído dos veículos que voltaram a circular, mas pode igualmente ter alguma relação com a crescente elevação dos preços dos alimentos. Nunca se sabe.

Como mudei meu trajeto de caminhadas matinais, deixei de ver os urubus das praias de Ipanema e Espírito Santo, mas acabei encontrando outras aves mais animadas na praça em que passei a me exercitar. O predomínio é de caturritas, que mantêm permanente e acalorado debate nos eucaliptos que circundam o campo de futebol. Há também quero-queros, pombas, sabiás e outros pássaros menores catando alimento no gramado e nas oferendas religiosas deixadas com frequência por lá.

Mas a atração do show das manhãs é uma ave solitária e majestosa. Suponho que seja um falcão. Tem uma espécie de capuz preto que lhe cobre a parte superior da cabeça e o entorno dos olhos, penas acinzentadas escuras no dorso e mais claras no peito, chegando a um amarelado no pescoço. O bico é curvo, as pernas e as garras poderosas. Os outros pássaros voam assustados quando ele chega. Para ser sincero, também não parece gostar muito de mim, pois, sempre que me aproximo, voa para o alto de uma árvore e me lança um olhar desconfiado. Deve ter as suas razões atávicas para temer o bicho-humano.

Eu tenho as minhas para admirá-lo, não apenas por sua beleza selvagem de caçador destemido, mas, principalmente, por saber que sua espécie deu o nome ao arquipélago de onde vieram meus antepassados. Os açores são aves espetaculares. Li, recentemente, F de Falcão, de Helen Macdonald, um relato impressionante e até um pouco cruel do convívio entre uma dessas aves de rapina e a mulher que resolveu treiná-la para superar suas próprias angústias.

Enquanto caminho, penso no livro, nas florestas em chamas pelo país e envio uma advertência telepática e buarqueana para meus observadores alados:

- Xô, passaredo, que o homem vem aí.

NÍLSON SOUZA

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