sexta-feira, 17 de maio de 2024


Os erros da enchente de Porto Alegre

Quando infelizmente um avião cai, a primeira pergunta é se houve falha mecânica ou humana. Dos escombros, procura-se a caixa com a gravação entre torre, pilotos e tripulação para verificar de onde partiu a principal responsabilidade e se a aeronave sofreu alguma pane mecânica durante os procedimentos de voo.

No caso de uma enchente, não tem como resgatar os últimos momentos, mas, com certeza, além da potência destrutiva de um evento climático sem precedentes, existiu falta de manutenção da contenção das cheias em Porto Alegre.

Está circulando um manifesto de engenheiros e pesquisadores sobre os problemas do sistema de proteção contra a inundação da Capital, que cobre uma faixa de 68 quilômetros.

"Os diques e os muros não vazam! Os vazamentos estão em boa parte das comportas sem manutenção. No ano passado, quando o sistema foi acionado, durante as inundações com início no Vale do Taquari e que também inundaram a Região Metropolitana, as deficiências nas comportas ficaram visíveis. Fáceis de serem sanadas, mas não foram. As próprias Casas de Bombas, bem como as Estações de Bombeamento de Água Bruta (EBABs) estão inundadas."

Acredito que seja pertinente reproduzir o documento, pois não parece em nada uma obra de ficção de especialistas. O que parece ficção científica é a cidade ser invadida pelas águas, apesar dos diques externos e internos, 23 casas de bombas e muro da Mauá com cota de 6m.

"É necessário o fechamento dos vazamentos nas comportas para evitar a entrada (e retorno) das águas do Guaíba, recompor os Condutos Forçados e bombear as águas da inundação de Porto Alegre para o Guaíba através das Casas de Bombas ou alternativamente.

Propomos as seguintes medidas: - Através de mergulhadores, vedar as comportas do muro e Av. Castelo Branco;

- Também com mergulhadores, vedar as comportas e colocar ensecadeiras nas Casas de Bombas com stop logs, solda subaquática e bolsas infláveis de vedação;

- Vedar hermeticamente as tampas violadas dos Condutos Forçados Polônia e Álvaro Chaves;

- Com as Casas de Bombas secas e protegidas por ensecadeiras, reenergizá-las, o que pode ser realizado com redes paralelas de cabos isolados pela Equatorial. Se assim não for possível, utilizar diretamente nas Casas de Bombas geradores movidos a combustível;

- Caso não seja possível operar imediatamente as Casas de Bombas, utilizar bombas volantes de grande vazão para drenar o Centro Histórico e os bairros da região norte da cidade. No caso do bairro Sarandi, onde as águas superaram a cota de 6m e a Casa de Bombas nº 10 está completamente inundada, é certo que serão necessárias bombas volantes;

- Com as comportas vedadas e conseguindo fazer operar as Casas de Bombas, ou com bombas volantes, as águas internas de Porto Alegre poderão ser bombeadas para o Guaíba, sem que retornem.

Assim que as águas baixarem:

- O Dmae necessita imediatamente consertar e, se necessário, realizar eventuais substituições das comportas do Sistema de Proteção contra Inundações;

- O Dmae necessita imediatamente contratar a regularização do funcionamento das Casas de Bombas, incluindo a sua ampliação e aperfeiçoamento, tendo por referência o plano elaborado pelo DEP ainda em 2014, cujos recursos financeiros de R$ 124 milhões a fundo perdido foram perdidos em 2019. Trata-se das Casas de Bombas 12, 13, 14, 15, 16, 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 10;

- Retomar o Plano de Desenvolvimento da Drenagem Urbana, elaborado desde 1998;

- Considerando que a cidade possui mais de 40% de sua área praticamente na mesma cota das águas do Guaíba em tempos normais, tem a necessidade de completar, aperfeiçoar e manter o seu Sistema de Drenagem Urbana, manter e aperfeiçoar permanentemente o seu Sistema de Proteção contra Inundações, é necessário e urgente recriar uma estrutura de primeiro escalão, o DEP ou semelhante."

CARPINEJAR

17 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

O DESAFIO DA BUROCRACIA

Uma das principais angústias em relação a medidas e à ajuda necessária para a reconstrução do Rio Grande do Sul após o Estado passar pela maior catástrofe climática de sua história reside na burocracia. O emprego de recursos públicos requer controles para evitar desvios, mas o tamanho da urgência do socorro e as diversas frentes à espera de resposta vão exigir um significativo grau de flexibilização. As iniciativas imprescindíveis, para serem viabilizadas no prazo necessário, precisam de segurança jurídica para os gestores.

Um exemplo eloquente é o da habitação. A extensão da tragédia climática e a continuidade dos alagamentos ainda não permite uma avaliação sequer aproximada de quantas famílias precisarão de uma nova moradia no Rio Grande do Sul. Mas os números de desabrigados e desalojados mostram-se superlativos. São 77 mil pessoas acolhidas em ginásios, escolas, igrejas e centros comunitários e 538 mil em residências de amigos e parentes, conforme dados da Defesa Civil divulgados ontem pela manhã. Ainda que uma minoria tenha seus imóveis destruídos ou inviabilizados, é possível inferir que milhares de gaúchos precisarão de ajuda para encontrar um lar e retomar suas vidas.

O governo federal formalizou na quarta-feira um plano ambicioso de habitação para os flagelados do Estado. Para cumprir a promessa, no entanto, será preciso encontrar caminhos para contornar a burocracia, algo que até hoje o poder público não se mostrou devidamente capaz. Basta lembrar que ainda existem gaúchos vítimas das enxurradas no Vale do Taquari, em setembro do ano passado, vivendo precariamente em abrigos. São mais de sete meses de uma sofrida espera. Residências prometidas pelo Minha Casa Minha Vida (MCMV) nem sequer tiveram a construção iniciada, admitiu ontem em entrevista à Rádio Gaúcha o agora ministro extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta.

As enchentes de agora causaram estragos muito maiores. Em setembro de 2023, não chegou a 30 mil a quantidade de desabrigados e desalojados. Neste momento, a soma ultrapassa 600 mil. São números que demonstram a magnitude do desafio. O mesmo princípio vale para a reconstrução da infraestrutura, como pontes e estradas, inclusive as que estão sob responsabilidade do Estado e dos municípios. Aqui o desafio é duplo e há um dilema. Ao mesmo tempo que existe pressa, são obras que não podem ser frágeis, sob pena de cederem no próximo episódio de chuvaradas.

A simplificação dos processos deve ser ampla. Ainda no tema habitacional, o governo federal promete financiamento subsidiado para famílias com renda superior a R$ 4,4 mil reais que tiveram suas residências inviabilizadas. Espera-se que exista bom senso para que os empréstimos prometidos possam ser contratados sem entraves indevidos para o momento. Aguarda-se igual espírito quando chegar a vez de começar a garantir o crédito necessário para a recuperação da atividade das milhares de empresas prejudicadas. Caso contrário, o impacto no emprego será severo, e os danos na economia gaúcha, mais duradouros. Regras trabalhistas, da mesma forma, podem ser menos rígidas enquanto perdurarem os efeitos da catástrofe.

A cada ação necessária para reerguer o RS que passa pelo poder público, poderia ser citada uma burocracia que deveria ser ao menos temporariamente reavaliada. Esta foi a principal reivindicação das lideranças políticas gaúchas desde os primeiros dias deste trágico episódio. A vinda ao Estado dos presidentes do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para testemunharem a dimensão da catástrofe há de colaborar para que se perceba a importância dessa excepcionalidade. 

O irretorquível é que não será com as amarras ordinárias que o Rio Grande do Sul recobrará suas forças em tempo aceitável. A tarefa é hercúlea e, por isso, exige prerrogativas singulares. As iniciativas imprescindíveis, para serem viabilizadas no prazo necessário, precisam de segurança jurídica para os gestores

OPINIÃO DA RBS

17 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Com Caff alagado, governo instala sede provisória

Com a inviabilidade do Centro Administrativo Fernando Ferrari (Caff), que foi afetado pela enchente, o governo gaúcho instala nova sede provisória. Localizado no bairro Jardim Carvalho, zona leste de Porto Alegre, o Centro Administrativo de Contingência (CAC) vem sendo montado desde a semana passada para receber os gabinetes do governador e do vice, além das secretarias estaduais.

O governador irá utilizar o prédio para reuniões com o secretariado e outras demandas, como fazia no Caff, mas continuará despachando no Palácio Piratini. No CAC, as secretarias devem atuar de forma integrada, dividindo espaços. Também haverá espaço de coworking, que contará com 250 postos de atendimento, para que os servidores possam trabalhar de acordo com as demandas de suas pastas - ainda será mantido o home office para a maioria.

- A ideia é que todo mundo possa ser acionado rapidamente e dar os encaminhamentos necessários para resposta imediata, a partir das decisões que precisarem ser tomadas - explica a secretária de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) Danielle Calazans.

A transferência para o CAC teve início no dia 8 de maio. A adaptação do espaço vem sendo realizada pela SPGG, com apoio de outros órgãos.

A Caixa e o Tribunal de Justiça do Estado forneceram materiais como computadores e móveis. No local, já estão atuando os gabinetes do governador, do vice- governador, Casa Civil, Procuradoria-Geral do Estado, Defesa Civil e as secretarias de Planejamento, Fazenda, Desenvolvimento Econômico, Transportes, Sistemas Penal e Socioeducativo e Comunicação.

O prédio em que está o CAC integra o antigo complexo da CEEE, que, na época da privatização, foi incorporado pelo Estado. No mesmo complexo está, por exemplo, o Centro Logístico da Defesa Civil.

- Estávamos estudando sobre a destinação do prédio. Surgiu de forma oportuna diante desta situação. Foi possível fazer uma operação rápida, sem grandes intervenções - destaca Danielle.

Adaptações

Ontem, o prédio seguia recebendo adaptações, como pinturas e instalações de móveis. Inicialmente, o CAC terá acesso restrito de servidores, que será ampliado conforme as obras estruturais forem avançando. Conforme Danielle, estima- se que o governo atue no local por, aproximadamente, 60 dias:

- O Caff tem um alagamento severo, que atingiu toda a parte elétrica, que fica no subsolo. Talvez a gente precise fazer uma grande manutenção nos elevadores. Temos os nossos depósitos, que foram prejudicados.

WILLIAM MANSQUE

17 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Três vezes vítima do alagamento

O prefeito Sebastião Melo (MDB) foi triplamente atingido pela enchente. Melo teve de deixar a casa onde mora, na zona sul de Porto Alegre. Quando viu que a situação estava se complicando, mudou-se para o hotel Express, ao lado do Centro Administrativo, na esquina da Rua João Manoel com a Sete de Setembro. Na mesma manhã de 3 de maio, a água chegou ao prédio da prefeitura e ao hotel.

O prefeito está morando em outro hotel e despachando no Instituto Ling. A primeira-dama Valéria foi para a antiga casa da família, onde mora o filho João.

Os secretários municipais estão espalhados por diferentes endereços.

Pior é a situação dos prefeitos de São Leopoldo, Ary Vanazzi (PT), e de Eldorado do Sul, Ernani Gonçalves (PDT), que ficaram com as casas submersas.

Todos por todos

Localizada perto de quatro escolas tradicionais de Porto Alegre (Anchieta, Monteiro Lobato, Província de São Pedro e Farroupilha), a Sociedade Libanesa transformou sua sede no bairro Boa Vista em um dos mais organizados centros de apoio às vítimas da enchente.

Em uma aliança com a Associação de Jovens Empresários e o Tecnopuc, a Libanesa conta com voluntários das escolas vizinhas para organizar as doações que não param de chegar de todo o Brasil, parte delas fruto da articulação do secretário Ernani Polo, do Desenvolvimento Econômico, e de Kalil Sehbe, diretor do Badesul.

A cada carreta que chega lotada de donativos, a mineira Maria Ana Barros de Assis comemora como se estivesse ajudando as pessoas de sua terra. Sobe nos caminhões, ajuda a descarregar, orienta voluntários. Em seu primeiro Dia das Mães, Maria e o marido Willian deixaram o bebê Antônio com a babá e passaram o dia trabalhando como voluntários.

O Tecnopuc montou um sistema de controle de entrada e saída de doações, com cadastramento de entidades autorizadas a receber cestas básicas, roupas, cobertores e o que mais estiver em falta nos abrigos ou casas de famílias que acolhem desalojados.

Para a eleição de 2026, ainda falta muito tempo, mas é importante alertar aos pretensos candidatos que não ganharão nada jogando contra ou passando para a sociedade a impressão de que torcem pelo quanto pior melhor, para aumentar suas chances de conquistar o poder.

ROSANE DE OLIVEIRA

17 DE MAIO DE 2024
DANIEL SCOLA

Solidariedade

Pela primeira vez, usei a palavra caos. Foi durante uma entrevista para uma rádio do Canadá. A apresentadora me pediu para descrever a situação do Rio Grande do Sul. Respondi que a situação é caótica, dezenas de mortos, muitos mais desaparecidos, deslizamentos, aeroporto da Capital submerso e cidades inteiras embaixo d?água. Quase 90% do meu Estado atingido. Pontes e estradas destruídas. Milhares de pessoas tiveram de abandonar suas casas.

Nunca havia usado a palavra porque o caos é o limite. Então, para dar a dimensão da catástrofe, disse à jornalista de Toronto que o que estamos vivendo aqui é o caos. Ela afirmou que todos os canadenses estavam comovidos com o Rio Grande do Sul. Agradeci e respondi que era muito bom que os ouvintes do Canadá tivessem uma ideia do que estamos vivendo aqui. Falei que, quanto mais souberem, melhor. 

Aproveitei para reforçar que não acreditassem em notícias mentirosas. Na catástrofe, elas se proliferam como mosquitos da dengue. Ela também quis saber quais eram as medidas que estavam sendo adotadas para minimizar impactos de possíveis novas tragédias. Disse que era um desafio grande para todos nós; inclusive e mais importante, cabe às autoridades nos oferecer melhores condições, ter uma melhor preparação, repensar a localização de mais de 80 mil pessoas, só em Porto Alegre, que moram em área de risco.

Também falei sobre o papel de todos, nos milhares de salvamentos. Mais uma vez, ela agradeceu e ofereceu solidariedade. Fiquei emocionado com as palavras. Diante de uma tragédia desta dimensão, é muito bom saber que pessoas do outro lado do mundo se preocupam conosco. Nunca houve tamanha corrente de solidariedade. Na pior tragédia climática do país, não nos abandonaram. A essas pessoas, seremos eternamente gratos. 

Pessoas de todas as partes do Brasil estão vindo ao Rio Grande do Sul para ajudar. Depois que tudo isso passar, terá de haver alguma forma de homenagear essa gente toda. E nossa mensagem será: "Nunca fomos abandonados". Recorro a uma frase do escritor William Shakespeare, do livro Henrique V, para resumir minha gratidão: "We few, we happy few, we band of brothers". Em português: nós poucos, poucos de nós felizes, somos o grupo de irmãos.

DANIEL SCOLA


17 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Mais uma dose de generosidade

Vem mais apoio de Brumadinho (MG) ao Rio Grande do Sul. A Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem decidiu enviar R$ 2,2 milhões aos atingidos pelas cheias.

Com aval do comitê gestor do dano moral coletivo da tragédia, a doação sairá da indenização paga pela mineradora Vale. Parte dos recursos será destinada - veja só - à campanha de arrecadação da Associação dos Familiares e Sobreviventes da Boate Kiss, em Santa Maria.

Os mineiros não precisavam fazer isso. Já passaram por muita coisa desde 2019, mas não deixaram de olhar para o próximo - neste caso, nós, gaúchos e gaúchas. Não há palavras para agradecer mais este gesto de generosidade. Que sirva de exemplo.

Se puder, compre produtos gaúchos e apoie negócios do RS

Compre do Rio Grande do Sul, seja o que for: carne, vinho, ovos, azeite, arroz, roupas, utensílios domésticos. Se você está a salvo e tem condições, faça isso, por um simples motivo: estará apoiando pequenos, médios e grandes negócios atingidos pela crise climática, que tentam manter operações e empregos.

Desde que a catástrofe climática atingiu o Estado, iniciativas individuais e coletivas disseminam a ideia.

O prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira, puxou a frente fazendo o apelo nas redes sociais. O pedido viralizou e cruzou fronteiras.

Influenciadores digitais, empresários e artistas aderiram à causa. Para estimular a solidariedade indireta, supermercados e lojas criaram prateleiras exclusivas com itens locais, aqui e fora do RS. Agora, uma nova iniciativa, chamada Produtores Gaúchos Unidos, está reunindo aqueles que produzem alimentos em solo gaúcho e conectando suas marcas a restaurantes e empórios no centro do país.

Com apoio do Sebrae-RS e de um bocado de gente boa, o site produtoresgauchosunidos.com, idealizado pela PMP (que vende carne de cordeiro criado a pasto no Pampa), está cadastrando interessados. O objetivo, explica Aline Barilli Alves, jornalista que ajudou a formatar a ideia, é ampliar a visibilidade e incentivar chefs a usarem os insumos gaúchos.

-Vi o vídeo do prefeito de Bento e, no dia seguinte, comecei a desenhar o site. Já temos mais de 70 produtores cadastrados. Estamos avançando um passo de cada vez - diz Aline.

Com o reforço do influenciador Gabriel Gasparini, a ação já dá resultados. No próximo domingo, cozinheiros badalados farão um jantar beneficente no restaurante Lassù, em SP, com ingredientes do RS. A arrecadação irá para as ações solidárias do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-Bento).

JULIANA BUBLITZ

quinta-feira, 16 de maio de 2024



16 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Doações podem prejudicar o comércio?

As comparações são assustadoras quando dimensionamos o maior desastre ambiental do Brasil. O Rio Guaíba recebeu o equivalente a uma Itaipu em água. Todo o território afetado pela chuva equivale a sete vezes a área de Porto Alegre.

No lado oposto da catástrofe, é também grandiloquente o fluxo de doações para o Rio Grande do Sul. Nunca houve nada igual no país. Toneladas partem de todos os Estados e desembarcam nos centros de distribuição da Defesa Civil.

O carinho chega na hora certa. Concomitantemente à tragédia da invasão das águas, começa agora o frio, com queda brusca de temperatura. No Interior, os termômetros ficarão entre 7ºC e 13ºC.

Milhões de voluntários separaram suas roupas, seus cobertores, seus calçados, seus colchões a mais, e enviaram para a enchente gaúcha por caminhões ou aviões. Quem tinha muito ou quem tinha pouco não pensou duas vezes. E não eram pertences velhos, puídos, na iminência de serem descartados. Ocorreu a divisão igualitária do guarda-roupa, num movimento de abdicar do excesso, numa adrenalina repentina de lucidez e desapego.

A ordem solidária de "qualquer coisa serve", "qualquer ajuda vem bem" não foi seguida à risca. Porque não é praticável oferecer peças furadas ou estragadas para aqueles que já perderam tudo - casa, móveis, carro e seu próprio lugar no mundo. Existe uma decência de somente dar o que você usaria.

Não é respeitoso confundir vulnerabilidade com mendicância. Evita-se que as pessoas alojadas em abrigos se sintam ainda pior pela sua situação, já que são vítimas de um desastre natural, de um evento de força maior.

É preciso ter o bom senso de proteger e aquecer com os nossos melhores esforços, em vez de agravar a sensação de desconforto, de exclusão e de abandono. Ninguém, em sã consciência, ciente da devastação emocional de meio milhão de moradores expulsos de seus lares, passaria adiante uma roupa com a natureza de pano de chão, logo para flagelados que dependem exclusivamente de esperança.

A triagem aconteceu antes em casa, aconteceu antes no coração, representando um gesto de proteção, de equiparação e, principalmente, de empatia dos brasileiros, que imaginaram por um instante como seria enfrentar as mesmas dificuldades e desolação. Amarraram-se os sapatos para os pares não se perderem, colocou-se etiqueta com o tamanho de cada vestimenta para prevenir confusão - coisas tão simples, tão mínimas, mas que revelam o capricho da atenção.

Não esqueceremos esse cuidado. Por mais que se diga que é obrigatório ajudar, o que testemunhamos teve um caráter espontâneo de imediata identificação. As fronteiras entre longe e perto, dentro e fora se viram abolidas pelo amor ao próximo.

Nesse panorama de calamidade e de ardente solidariedade, não faz sentido, portanto, que o governador Eduardo Leite intimide doações dizendo que podem prejudicar o comércio. Quem não tem mais nada não desfruta de condições de comprar itens básicos, muito menos roupas. É uma primeira etapa de sobrevivência e acolhimento.

O governador não deveria misturar os momentos, apenas agradecer.

CARPINEJAR

16 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

AJUDA POLITIZADA

O governo federal voltou a anunciar mais um pacote de medidas para auxiliar o Rio Grande do Sul a reerguer-se da devastação provocada pela atual tragédia climática, mas o que ficou de concreto na cerimônia de ontem em São Leopoldo, além das promessas feitas pelo presidente Lula e seus ministros, foi a estranha nomeação política para representar a coordenação do governo federal no Estado. Essa coordenação é atribuição natural do governador, que foi eleito para isso e está fazendo o possível para cumprir o encargo desde os primeiros instantes do desastre ambiental.

Como titular da Secretaria de Comunicação, o ministro Paulo Pimenta vinha desempenhando bem o trabalho de encaminhar demandas do governo estadual e das prefeituras gaúchas para a administração federal. Sua nomeação para a pasta extraordinária criada ontem por medida provisória acrescenta um indesejável viés político ao processo de reconstrução. Já é a terceira visita de uma comitiva do governo federal ao Estado e, apesar das promessas, a população flagelada ainda não recebeu benefícios efetivos. A única vantagem para o Estado, até agora, foi a suspensão temporária do pagamento da dívida.

Se saírem da palavra para a ação, serão bem-vindas as iniciativas no sentido de desburocratizar a liberação de recursos federais, pois há absoluta urgência em prestar atendimento digno aos desabrigados e, ao mesmo tempo, dar início à reconstrução. Mas até mesmo as boas intenções ficam prejudicadas quando o componente político sobressai.

Na cerimônia pública que ontem sucedeu a visita aos desabrigados, com muitas fotos de políticos para as redes sociais, os protagonistas do evento fizeram discursos altruístas. Apesar de não ter havido uma coordenação prévia, o ministro Paulo Pimenta assegurou que continuará trabalhando em absoluta sintonia e parceria com o governo do Estado e com as prefeituras. Em complemento, corretamente, o governador Eduardo Leite lembrou que não pode haver divergências políticas e ideológicas quando se trabalha com o mesmo propósito. 

E o presidente Lula assegurou que não faltará dinheiro a Estados necessitados, independentemente do viés político e ideológico de seus governantes. Ainda assim, o risco de politização da tragédia aumenta bastante com a duplicidade de liderança no processo de reconstrução se não houver um perfeito alinhamento entre o governador e o novo ministro de Estado da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.

Os discursos empolgados de alguns políticos podem passar a impressão de que tudo está resolvido, mas qualquer pessoa mais consciente sabe muito bem que a tarefa da reconstrução é longa, demorada e extenuante. Muitos obstáculos ainda precisarão ser removidos para que a normalidade seja restaurada. As águas da desgraça ainda não baixaram. Por isso, as prioridades continuam sendo socorrer as pessoas, abrigá-las dignamente, alimentá-las e garantir-lhes saúde. 

Mas elas só terão esses direitos humanos por mais tempo se o Estado restaurar sua infraestrutura e sua economia, para que todos possam ter serviços públicos adequados, emprego e renda. Nesse contexto, resta esperar que todos os agentes públicos envolvidos tenham a compreensão de suas responsabilidades e façam uso dos mecanismos colocados ao seu alcance para que os recursos sejam efetivamente liberados com a urgência necessária.

OPINIÃO DA RBS

16 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Plano de Lula para o RS é ambicioso e precisa decolar Prós e contras da escolha de Pimenta

A indicação do deputado Paulo Pimenta para o Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do RS tem vantagens e desvantagens - para ele, inclusive.

O primeiro ponto favorável à opção do presidente Lula pelo nome de Pimenta é a intimidade que o ministro tem com o Estado. Nenhum dos outros integrantes do primeiro escalão conhece como ele a situação do Rio Grande do Sul de antes e depois da enchente.

Natural de Santa Maria, Pimenta é o único ministro gaúcho e, desde janeiro de 2023, atua no Planalto como uma espécie de embaixador do Rio Grande do Sul.

Em diferentes oportunidades, Lula chamou Pimenta de "governador paralelo", num sinal de que é ele o seu candidato ao Piratini em 2026. É esse o ponto que pesa contra Pimenta, que será o interlocutor de políticos de todos os partidos, prováveis candidatos que olham para ele de nariz torcido, já imaginando que poderá se beneficiar politicamente das obras do governo federal.

Não é o caso do governador Eduardo Leite, que sequer tem candidato a prefeito em Porto Alegre, e não pode concorrer a um terceiro mandato. Seus aliados, porém, temem que esse protagonismo de Pimenta acabe por beneficiar os concorrentes do PT na eleição municipal.

Isso é verdade, desde que as promessas saiam do papel. Para o bem e para o mal, Pimenta será a cara do governo Lula no Rio Grande do Sul. Dele será cobrado o cumprimento de tudo o que está sendo prometido. Se alguma coisa não sair como planejado, o cargo que ora parece um trampolim para o Piratini pode ser um golpe de morte na sua carreira política.

O pacote completo apresentado pelo presidente Lula na visita a São Leopoldo, a terceira desde que começou a enchente, deve ser saudado como o mais ambicioso da história do Estado. Se tudo o que Lula e seus ministros anunciaram até agora sair do papel, o Rio Grande do Sul terá o início do "Plano Marshall" demandado pelo governador Eduardo Leite e pelos líderes empresariais que cobram medidas de impacto, mas ainda faltará muito para recuperar a infraestrutura destruída.

Sempre haverá quem questione a capacidade de execução de tantas obras e programas, mas o momento é de organizar esse conjunto de informações e entender a responsabilidade de cada esfera de governo e o tempo de cada projeto.

Para os governos municipais, estadual e federal, a primeira etapa foi a de salvamento de pessoas e animais que corriam risco de vida nos alagamentos e deslizamentos de terra. As Forças Armadas, a Defesa Civil e os voluntários foram incansáveis. A segunda fase é a de cuidar dos desabrigados, garantindo a eles um teto, colchão, cobertor e roupas secas, água e comida. Nesta etapa, brotam doações do Brasil inteiro, em uma onda de solidariedade nunca vista.

Virá agora o tempo de limpar as casas, verificar o que sobrou e colocar em pé projetos de habitação que precisam ser erguidos longe das áreas de risco.

As medidas anunciadas por Lula contemplam a ajuda emergencial direta, com o Auxílio Reconstrução de R$ 5,1 mil para quem teve a casa alagada ou destruída, a liberação de até R$ 6.220 do FGTS nos municípios em situação de calamidade, a antecipação do abono pago no mês de aniversário, a inclusão de mais pessoas no Bolsa Família, o pagamento do seguro-desemprego e a prioridade na restituição do Imposto de Renda.

ROSANE DE OLIVEIRA

16 DE MAIO DE 2024
TULIO MILMAN

O amanhã

Um dos maiores desafios dos gaúchos, quando os resgates terminarem, será o da moradia. Existem hoje milhares de pessoas abrigadas em igrejas, ginásios, escolas, clubes e outros locais que suspenderam as suas atividades e se uniram a esse comovente esforço de socorro.

Há locais onde a volta à normalidade poderá ser adiada. Outros, como as escolas, precisarão voltar a receber alunos e professores o quanto antes. Como se já não bastassem os prejuízos causados pela pandemia ao aprendizado e ao desenvolvimento das nossas crianças, agora as enchentes suspenderam as aulas. Além do mais, pais e mães necessitam deixar seus filhos em locais seguros e assistidos para voltar a trabalhar ou procurar emprego. Muitos negócios e empresas não sobreviverão à tragédia.

Reabrir as escolas que recebem hoje desabrigados sem adotar outras providências levará a um lamentável efeito dominó. A solução de um problema causará outro, igual ou até pior. São incontáveis as famílias que perderam tudo e não têm mais para onde ir. É nosso dever oferecer a elas um caminho.

Regiões densamente habitadas, que foram evacuadas, levarão meses para serem limpas e restauradas. Muito tempo, dinheiro e trabalho serão necessários para arrumar as casas que conseguiram se manter em pé. Quando a água baixar, elas estarão tomadas pela lama. Vidas e memória destruídas surgirão depois da vazão da enchente.

O esforço para proporcionar um teto, comida, calor e segurança para tantos gaúchos irá requerer a extrema sensibilidade dos governos e da sociedade civil, que não são entes separados e antagônicos, mas sim parte de uma mesma engrenagem. Momentos de crise são testes definitivos para a democracia. Podemos não gostar ou discordar deste ou daquele governante. Mas isso não pode se sobrepor ao fato de que eles têm a legitimidade sagrada do voto para liderar e decidir. Colocar, neste momento, interesses pessoais ou eleitoreiros acima disso é um desserviço e um absurdo.

Garantir casa para quem perdeu tudo é imprescindível para reconstruir a esperança. Nós vamos conseguir. Nosso passado e nosso futuro têm um encontro marcado ali adiante, quando voltaremos a sorrir. Vai passar.

TULIO MILMAN

16 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Chaplin que o diga "Cadê Meu Pet?"

Um dos tantos dramas pessoais e coletivos a assombrar o Rio Grande do Sul na tragédia climática é a separação entre tutores e animais de estimação. Muitos foram resgatados da enchente em momentos diferentes e ainda não conseguiram se reencontrar. Para ajudar na conexão, está no ar um perfil no Instragram chamado @meupetrs.

Batizada de "Cadê Meu Pet?", a iniciativa partiu da fotógrafa e social mídia Ana Carolina Teixeira, 24 anos, que mora na Capital e é apaixonada por cães.

- Desde o início, eu e a minha namorada estávamos ajudando nos abrigos, mas tivemos de voltar a trabalhar. Pensei, então, em encontrar uma outra forma de apoio. Como sou fotógrafa e trabalho com redes sociais, achei que poderia usar isso para ajudar os bichinhos. Foi assim que surgiu a ideia - conta Ana.

Com o auxílio da companheira, Kamila Ferreira, a profissional já captou cerca de 130 imagens (veja algumas delas ao lado) de mascotes acolhidos no Centro Humanístico Vida (Av. Baltazar de Oliveira Garcia, nº 2132).

As fotos estão postadas desde segunda-feira no Instagram, com uma descrição de cada peludo, para que os tutores vejam e possam buscá-los.

Ana planeja seguir fazendo fotografias todo os dias, em um abrigo diferente de Porto Alegre. A intenção é registrar todos os animais possíveis, não apenas cães, mais de todas as espécies.

Há 30 anos, o psicólogo Jaime Machado (foto) vestiu-se pela primeira vez de Carlitos. Desde então, o célebre personagem de Charles Chaplin não saiu mais dele - e agora está ajudando refugiados climáticos no RS.

Com as roupas e os trejeitos do famoso andarilho, Machado integra o exército de voluntários que tem levado ânimo e esperança a quem perdeu tudo. Ele vive em Nova Santa Rita, na Região Metropolitana, e, no Dia das Mães, foi convidado a participar de uma ação em um abrigo na Escola de Ensino Fundamental Miguel Couto, no bairro Berto Círio, um dos mais atingidos no município.

Durante todo o dia, ele não disse uma palavra sequer: tal qual Carlitos, usou apenas gestos e expressões faciais para se comunicar.

- Encantou todo mundo, não só as crianças. Transformou o ambiente - conta a estudante de psicologia Luísa Castoldi, que organizou a atividade. Fazendo mímica, com uma dose reforçada de empatia, Machado ensinou a garotada a criar flores de papel. Simples assim.

- Pensei: o que eles vão dar para as mães, se perderam tudo? Levei guardanapos de casa e deu certo. O legal do Carlitos é que ele fala uma língua que todo mundo entende - diz Machado, que é natural de Joinville (SC) e adotou o RS como lar há nove anos.

Uma nova ação é planejada para o próximo fim de semana, no Parque de Eventos Olmiro Brandão, no centro do município. Dessa vez, os alvos serão voluntários da cidade, que também precisam de apoio.

A força dessas pessoas, de gente como Machado, Luísa e tantos outros anônimos, está provando na prática que, mesmo com pouco, a gente pode muito. Chaplin que o diga.

JULIANA BUBLITZ

quarta-feira, 15 de maio de 2024


15 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Bacia das almas

No Rio Grande do Sul, choveu em duas semanas o equivalente a seis meses. Pela primeira vez na nossa história, a enchente atingiu todo o Estado. Noventa por cento dos municípios afetados pelas cheias já haviam decretado situação de emergência ou de calamidade ao menos uma vez desde 2013. Mas jamais tinha acontecido um desastre climático que eclodisse simultaneamente no nosso mapa inteiro (em 450 das 497 cidades), desencadeando meio milhão de desabrigados, apagão de energia elétrica, desabastecimento de água, racionamento de produtos, bloqueio de pontes e estradas.

E nada está sob controle. O Rio Guaíba segue em elevação, seu pico de 5m35cm deve ser ultrapassado. O Canal São Gonçalo, em Pelotas, que deságua na Lagoa dos Patos, bateu a marca de 2m88cm, o mesmo nível da enchente de 1941. O Rio Taquari, que deságua no Guaíba, ultrapassou os 27 metros. O Rio Caí permanece acima da cota de inundação.

Todos que vieram de longe e estão nos ajudando já são gaúchos honorários. Sejam do Exército, sejam do Corpo dos Bombeiros, sejam policiais, sejam médicos, sejam voluntários. São botes de esperança em nossa bacia de almas.

Uma das histórias mais tristes e emocionantes é a do cardiologista Leandro Medice, de 41 anos, que percorreu 2 mil quilômetros, de Vila Velha (ES) a São Leopoldo, para salvar pessoas que nem conhecia, usando sua experiência como intensivista no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), e acabou morrendo de mal súbito durante sua missão nesta segunda-feira.

Ele abandonou sua clínica, seu casamento, sua comodidade, encarnando o juramento de Hipócrates: "Prometo solenemente consagrar a minha vida a serviço da humanidade. Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação".

Não sabemos ao certo quantas existências ele curou, medicou, poupou do sofrimento, quantos resgates fez, a quantos idosos e crianças deu alento e coragem. Não há como quantificar a solidariedade, pois somamos as perdas, jamais as vidas salvas. Mas é certo que ele se dedicou tanto que não resistiu ao esgotamento físico e emocional.

Na catástrofe gaúcha, o ambiente é asfixiante, próprio de uma guerra, com salvamentos consecutivos e contínuos, sem pausa, sem trégua. Cidades inteiras foram invadidas pelas águas, desprovidas de tempo para evacuação. Milhares de moradores se perceberam ilhados em seus telhados, esperando socorro.

Leandro só pensou em ajudar. Não pensou em si. Em seu vídeo de despedida, disse: "Ei, pessoal! Hoje eu estou fazendo uma coisa diferente. Pela primeira vez, eu vou partir para uma missão humanitária. O Sul está precisando da gente. Então, saí um pouco da minha rotina, do conforto do consultório. A cirurgia acabou agora há pouco, a gente já emendou. São 4h da manhã agora. A gente está indo pra lá ajudar os nossos irmãos que estão precisando".

Seu anonimato é heroísmo. Queria dar colo a irmãos que nunca viu pela frente: estranhos irmãos, estranhos íntimos. Ele não tinha nenhum parentesco, nenhum familiar por aqui. Veio unicamente por vocação. Veio porque não poderia ser indiferente ao sofrimento.

CARPINEJAR

15 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

ALÍVIO TEMPORÁRIO

Embora o governo federal ainda esteja devendo um posicionamento mais conclusivo sobre a reconstrução do Rio Grande do Sul, que não se limite a ajudas eventuais contaminadas pelo viés político, a suspensão temporária do pagamento da dívida representa um alívio momentâneo para o Estado. Ao condicionar a aplicação das parcelas adiadas num fundo específico para minimizar os impactos da enchente, o Ministério da Fazenda dá fôlego ao governo estadual para melhor gerir suas finanças e, ao mesmo tempo, se previne de um eventual pedido de isonomia por parte dos demais Estados devedores. 

Mas o auxílio, anunciado com questionável alarde, deve ser considerado sob sua real dimensão. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que os recursos decorrentes da suspensão não resolvem todos os problemas gerados pela tragédia climática, que sequer podem ser mensurados na sua total extensão neste momento. 

Representam, é verdade, um desafogo imediato para o Tesouro estadual, que já teria mesmo que direcionar a maior parte da sua receita para a recuperação da infraestrutura danificada pelas cheias. Nesse contexto, o ideal - como argumentou o governador Eduardo Leite - seria o perdão definitivo desta dívida estratosférica, atualmente estimada em R$ 104 bilhões, que obriga o Estado a despender mensalmente recursos volumosos e imprescindíveis para o seu desenvolvimento. 

Mesmo assim, o alívio temporário é bem-vindo neste momento em que o Rio Grande do Sul contabiliza os prejuízos da maior calamidade pública de sua história. De acordo com cálculos preliminares, o Estado deixará de pagar o equivalente a R$ 23 bilhões na soma das parcelas suspensas e dos juros que incidem sobre elas. Os valores terão que ser aplicados nas obras de reconstrução da infraestrutura destruída pela enchente, mediante rigorosa prestação de contas. 

É justo, quanto mais transparência, melhor para todos. Além disso, a vinculação desarma a pressão de outras unidades federativas endividadas para terem igual tratamento. Outro detalhe significativo do anúncio feito pelo Ministério da Fazenda é que a suspensão temporária da dívida gaúcha não obstaculiza a continuidade da renegociação com vista a novas amortizações - pleito antigo do Executivo estadual e dos governos de outros Estados. 

Também é importante considerar que o projeto de lei enviado ao Congresso não desobriga a União de continuar auxiliando o Rio Grande com outras medidas e recursos que lhe possibilitem se restabelecer da tragédia climática. A verdade é que a dívida histórica do Rio Grande do Sul continua sendo impagável - e continuará, caso não seja revisada no momento oportuno. Mesmo com a adesão do Estado ao Regime de Recuperação Fiscal em 2021, as parcelas e o montante continuaram crescendo nos últimos dois anos por conta do indexador atrelado à taxa Selic. 

Agora, porém, justifica-se plenamente o adiamento desse debate, uma vez que a prioridade de todos deve ser o resgate e o atendimento digno das vítimas do desastre climático que fez o Estado retroceder várias etapas na sua caminhada para o desenvolvimento. A verdade é que a dívida histórica do Rio Grande do Sul continua sendo impagável - e continuará, caso não seja revisada no momento oportuno

OPINIÃO DA RBS

15 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

A vida resiste na alma de Porto Alegre

Tradicional polo de inovação, gastronomia e cultura da Capital, o 4º Distrito viu sua história embaixo d?água nos últimos dias

O 4º Distrito de Porto Alegre, sob as águas, guarda poucas semelhanças com a zona de chácaras descrita por Auguste de Saint-Hilaire no século 19 como "bucólica" e de "aprazível passeio". Ninguém passa incólume, de barco, por esse "passeio". Hoje tradicional polo de inovação, gastronomia e cultura da Capital, a área na Zona Norte sofre sua maior tragédia.

Durante três horas, na manhã de ontem, ZH percorreu de bote alguns dos principais pontos da região que, nos últimos anos, atraiu empresários, artistas, arquitetos e pensadores da indústria criativa na Capital. Gente que apostou que, a partir do passado, se construiria o futuro. E que, hoje, observa o Guaíba tomar conta de tudo.

O 4º Distrito é uma espécie de junção aquática entre o Humaitá, onde fica a Arena do Grêmio, o Sarandi, imenso bairro inundado, e o Centro Histórico, onde o lago abocanhou parte da cidade. Saímos de bote a remo eu, o fotógrafo Jefferson Botega, Demétrio Luis Guadagnin, pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e seu filho velejador Teodoro, da Rua Sete de Abril, em frente ao Zaffari da Cristóvão Colombo.

Ao lado dos casarios do Vila Flores, importante centro cultural da cidade, encontramos Sônia Maria Fernandes Rodrigues, 75 anos. Da janela do prédio de dois andares, a mulher, que já venceu alguns cânceres, justifica por que é atualmente uma das poucas moradoras que decidiu ficar:

- Tenho meus 15 gatos. Como vou sair?

Ateliês

Perto dali, Lourdes Rodrigues Fritz e Jessica Dutra conseguiram um bote para resgatar o pouco que sobrou na casa dos tios: ela tem 78 anos; ele, 81. Saíram quando a água subiu de repente pela Rua São Carlos.

- Pegamos uma TV, o ventilador e a caixa de remédio deles - conta Lourdes. - A gente sempre ouviu falar da enchente de 1941, era a marca no Mercado, mas nunca a gente imaginou que a água ia pegar toda essa área.

Estico o olhar por sobre o portão do Vila Flores. Observo um monte de lixo misturado à água do que outrora fora um quadrilátero do renascimento cultural dessa região. Os ateliês foram atingidos. Se o 4º Distrito é a alma de Porto Alegre, hoje ela está ferida.

Semente

A história da região começa com um caminho. Em 1824, quando os imigrantes alemães recém-chegados ao sul do Brasil começavam a ir para São Leopoldo, um grupo deles resolveu ficar na estrada do Caminho Novo, erguer casa e instalar oficinas por ali mesmo. O 4º Distrito é a primeira semente de indústria da capital gaúcha.

Próximo da Estação Florida, na Avenida Farrapos, a água atinge a altura dos assentos. Improváveis vozes infantis irrompem a nossa esquerda. Um grupo de crianças nos acena de uma janela no primeiro andar de um prédio. Do outro lado, um rapaz, no quarto piso, calcula que está há 11 dias ilhado.

Outro, no primeiro andar, avalia que ainda tem comida. Diariamente, eles recorrem aos socorristas que arremessam garrafas até eles. Como o Guaíba teima em recuar lentamente, um dos homens pretende deixar seu apartamento nos próximos dias.

- Não aguento mais - diz.

Ao longo do caminho, há dezenas de estabelecimentos com as portas arrombadas - pela pressão da água e também pela ação de saqueadores. Remamos por quase uma hora pela Avenida Farrapos. Manchas de óleo se sobressaem na superfície marrom da água. Quase na esquina com a Avenida Sertório, com o sol do meio-dia refletindo na água, vemos dezenas de garrafas plásticas na superfície.

À esquerda, em uma cena inusitada desses dias surreais, em uma mecânica com as portas escancaradas, um Camaro branco paira sobre as estruturas de ferro do macaco hidráulico um metro acima do nível da água. Perto da Cairú, há vários carros submersos. Na altura da Igreja São Geraldo, os degraus estão debaixo d?água.

A Estação Farrapos-Ipa da Trensurb é uma espécie de entreposto de barcos que vêm das zonas Norte e Leste em direção ao Centro. Como alguns séculos atrás. Barqueiros se cumprimentam. Voluntários de jet ski trocam impressões sobre a profundidade no local. Até funcionários da Trensurb descem na estação.

As portas da estação estão entreabertas. Um pedaço de concreto vira terra firme por onde é possível caminhar seguro por cerca de cinco metros. Estica-se o olhar por onde a Farrapos dobra em direção ao Aeroporto Salgado Filho. Para quem vai viajar de avião, aquela é talvez uma das últimas memórias de quem parte de Porto Alegre. Na direção do aeroporto, até onde a vista alcança, não há terra firme. Só água barrenta.

Futuro

Cruzamos por baixo da estação da Trensurb, rumo à Travessa São José: o Instituo Caldeira, importante polo de inovação, e, ao final da rua, o Shopping DC, e a antiga fábrica de tecidos Guahyba e sua torre. Aqui, nosso guia, Demétrio, indica profundidade de 1m90cm, algo que já percebíamos pelas placas de trânsito muito próximas, ao alcance das mãos.

Nos últimos dias, os empresários do 4º Distrito se reuniram e decidiram criar uma associação. Temem pela segurança da região. Muitos acreditam que onde a cidade nasceu pode estar, escondida, a semente de uma nova Capital, a melhor versão que Porto Alegre pode ter.

RODRIGO LOPES

15 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

OAB insiste que dívida foi quitada

Na carona da tragédia climática que devastou o Rio Grande do Sul e causou prejuízos bilionários, a seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil está tentando convencer o governo federal a reconhecer a tese de que a dívida já foi quitada.

O presidente da OAB-RS, Leonardo Lamachia, requereu ao Ministério da Fazenda e à Advocacia-Geral da União que admitam, na ação ajuizada pela entidade em 2012, que o débito já foi pago. Lamachia argumenta que existem perícias mostrando que o Rio Grande do Sul já pagou o que era devido, tese contestada pelo governo federal. Diz que, juridicamente, bastaria reconhecer isso nos autos, agora acrescida de um elemento novo, o estado de calamidade.

Por que a anistia é improvável

É improvável que o governo federal aceite a tese da OAB ou os pedidos de deputados de diferentes partidos para considerar a dívida quitada. Primeiro, porque outros Estados poderiam exigir isonomia na Justiça e isso implodiria todos os esforços de equilíbrio das contas públicas.

Embora o presidente da OAB insista que as outras unidades da federação não estão em estado de calamidade, o precedente seria malvisto pelo mercado.

Do ponto de vista político, Lula está tentando mostrar aos gaúchos que o governo federal está ajudando nessa tragédia. O perdão da dívida traria alívio no longo prazo, mas a população cobra medidas urgentes.

ROSANE DE OLIVEIRA

15 DE MAIO DE 2024
MÁRIO CORSO

A dor de perder a casa

Dada a magnitude da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul, proporcionalmente as perdas humanas têm sido minimizadas. A gigantesca mobilização de voluntários, as providências governamentais, o Exército lutando pela vida e o trabalho da Defesa Civil vêm salvando milhares de pessoas.

Quanto às perdas materiais da enchente, não sabemos nem como calcular. Mas existem também as perdas imateriais, que não podem ser contabilizadas. Quando alguém perde sua casa, perde junto seu ninho.

Um lar possui uma dimensão tanto física como psíquica. Por isso, os idosos opõem-se tanto a abandonar suas casas. Na fragilidade da velhice, abandonar a casa é como tirar a tartaruga do casco. A casa é o único lugar onde se sentem seguros. Eles sabem-se débeis para enfrentar o mundo.

Simbolicamente, nos sonhos, casa e corpo se equivalem. A dor de "perder tudo", que é a frase que frequentemente brota dos lábios dos atingidos, equivale a dizer que se perderam dos contornos do próprio corpo.

E ainda há o medo: os evacuados sentem-se frágeis, à mercê do pior. Não há como condenar esse pessimismo alarmista, ele é baseado na realidade. Existe a enchente e existe a canalhice dos saqueadores e oportunistas. Por isso, as mentiras que circulam na internet, aumentando o que já é ruim, são perniciosas, pois agravam a fragilidade dos desabrigados.

Não há tanta diferença entre as perdas materiais e imateriais. São dores da mesma espécie, porém de diferente magnitude. Casas podem ser recuperadas, vidas e objetos impregnados de memória não. A casa é também uma espécie de museu dos seus habitantes. Objetos de decoração lembram memórias de parentes, festas, viagens, visitas e amigos. 

Roupas são incrustadas de significado, aquela que foi usada para uma solenidade, a que o abrigava quando encontrou seu amor, a roupa que dá sorte quando usa na balada. Sem falar no casaquinho de tricô que a vó fez para sair da maternidade.

E nem entramos nas fotos e livros que a lama vai destruir, ou na bomba de chimarrão que herdou do avô, ou ainda na faca de churrasco que era do pai. Imaginem um menino que ficou sem seus brinquedos, uma menina que não pôde se despedir de suas bonecas.

Perder tudo é perder os objetos que testemunharam uma vida. É perder a memória do esforço que foi necessário para adquirir cada um de seus bens. Cada casco, no fim das contas, faz parte do corpo da tartaruga.

MÁRIO CORSO


15 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Som do gaita e da esperança Simbólico

É nessas horas que grandes artistas fazem a diferença. Renato Borghetti (foto) levou sua música ao Asilo Padre Cacique, que viveu dias dramáticos na semana passada, em Porto Alegre, e ainda enfrenta uma série de desafios para retomar a normalidade.

Para atenuar o drama da enchente, que chegou a deixar o asilo ilhado e sem luz, Borghettinho encantou os moradores com a sua gaita, entoando clássicos gaúchos.

Quer ajudar também? O recuo da água já está permitindo o acesso de doações à instituição, embora a preocupação persista. A entrega de donativos pode ser feita diretamente na sede, todos os dias, das 7h às 20h. Fica na Avenida Padre Cacique, nº 1.178. O pix é 92.978.139/0001-22 (CNPJ).

A cena abaixo foi captada pelo fotógrafo Yagor Marrone, da prefeitura de Sapucaia do Sul, durante o resgate de uma família no bairro Fortuna, alagado pela cheia do Rio do Sinos. Em meio à lama e ao lixo da enxurrada, uma imagem de Cristo seguia em pé.

Corredor de acesso é ampliado

O corredor criado como acesso alternativo à Capital está sendo ampliado. De pista única, passará a ser dupla. De acordo com a prefeitura de Porto Alegre, cerca de 60 trabalhadores atuam na obra. Desde que começou a operar, na sexta-feira, a via registra tráfego médio de cem veículos por hora. A EPTC estima que cerca de 20 mil veículos já tenham trafegado pelo acesso.

Com a possibilidade de o nível do Guaíba subir mais, não é descartada a elevação na altura do corredor. A alteração ocorreria por meio da Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi) e da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSurb). Conforme calcula o secretário da SMSurb, o engenheiro Assis Arrojo, o novo corredor, como está feito hoje, ainda é capaz de manter o fluxo de trânsito no local mesmo que o Guaíba continue elevando seu nível até perto da marca de 5m30cm, pelo menos.

Se o nível subir ainda mais e o acúmulo de água eventualmente impactar o corredor, a prefeitura já projeta a realização de obra de elevação dessa nova via de ingresso e saída de Porto Alegre a partir da Rua da Conceição.

O caminho foi estruturado para agilizar o abastecimento dos serviços essenciais da cidade, como oxigênio, água, alimentos e equipamentos de emergência. O trajeto liga a área central de Porto Alegre, pelo Túnel da Conceição, com a avenida Castelo Branco e a BR-290.

O corredor é exclusivo para caminhões com suprimentos para abrigos, hospitais, mercados, farmácias, viaturas em serviço e identificadas como prefeitura de Porto Alegre, governo do Estado, governo federal e Forças Armadas, ambulâncias e viaturas de segurança. Veículos que não estejam prestando serviço humanitário não podem acessar o corredor.

JULIANA BUBLITZ 

terça-feira, 14 de maio de 2024


14 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Uma vida dedicada à casa

Durante 18 anos, Vanessa e Daniel dedicaram-se a um único objetivo: comprar casa, reformar a casa. Qualquer dinheirinho que entrava era posto em material de construção. Não tiravam férias, não gastavam com viagens, não arriscavam nenhum luxo para poder concluir a obsessão de um cantinho para sempre.

Vanessa é confeiteira, Daniel atua na área de segurança do trabalho. Moram no bairro Rio Branco, em Canoas, com os dois filhos, Giovana, quatro anos, e Davi, 13. Nos fundos do pátio, existe a confeitaria que atende por encomendas, parceria de Vanessa com a sua mãe.

Daniel me ligou no início deste mês, feliz como nunca, porque finalmente havia terminado a cozinha e o quarto do filho, após três anos nessa última etapa da construção. E o casal é que colocou a mão na massa, não contratou nenhum pedreiro. Chegavam do serviço e se trancavam nas obras. Dormiam exaustos para despertar cedo e recomeçar a rotina de obrigações.

Eu comemorei o feito, parabenizei o empenho e a disciplina. Ele disse que agora poderia relaxar um pouco mais: - Sobrou tempo para namorar a mulher da minha vida - comentou, num raro arroubo romântico.

O que eles - e milhares de canoenses - não esperavam era a devastação da cidade com o maior desastre natural da história gaúcha. Aconteceu cinco dias depois de anunciarem o fim da reforma.

Houve evacuação de sete bairros. Além do Rio Branco, em que eles residiam, Fátima, Mato Grande, Harmonia, Mathias Velho, São Luís e Niterói foram afetados pela enchente que assolou o município. Dos 350 mil habitantes de Canoas, a terceira maior cidade do RS, 225 mil se encontram desalojados.

Daniel e Vanessa perderam tudo de uma hora para outra. Tudo mesmo. Conseguiram levar alguns pertences em três mochilas, uma mala, e salvar seu cachorrinho, o poodle Slick. O lar, soma de todas as privações e renúncias do casamento, foi totalmente submerso. Os bens materiais que conquistaram, a empresa dos doces, as lembranças, os sonhos de uma existência inteira estão cobertos pelas águas.

A família vem morando de favor em residência de amiga, sem prever o que reaverá debaixo dos destroços. Daniel e Vanessa têm feito o esforço de dar esperança para os filhos, esperança que eles mesmos já não possuem.

Isso que conto é uma breve história em meio a infindáveis relatos da tragédia, uma pecinha do quebra-cabeça de meio milhão de pessoas desabrigadas no Estado. Vai passar? Vai! Vamos nos reerguer? Vamos. Mas com imensas cicatrizes. A positividade tóxica morreu em maio.

CARPINEJAR

14 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Terreira da Tribo é tomada pela água

Sede do Ói Nóis Aqui Traveiz, grupo de teatro da Capital com 46 anos de história, armazena cenários, figurinos e equipamentos

Com a chuva e o posterior alagamento do 4º Distrito, na zona norte de Porto Alegre, o Centro Cultural Terreira da Tribo encontra-se inundado desde a semana retrasada. Localizado desde 2009 na Rua Santos Dumont, 1.186, no bairro São Geraldo, o espaço chegou a estar com aproximadamente 1m50cm de água.

O centro cultural é administrado pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, uma das grandes referências artísticas de Porto Alegre e do país, com 46 anos de trajetória. Ao longo das décadas, o grupo sempre buscou promover um teatro revolucionário e desenvolver oficinas de iniciação, pesquisa de linguagem e treinamento de atores.

Conforme Tânia Farias, atuadora do Ói Nóis Aqui Traveiz, a água fez flutuar baús, instrumentos musicais, adereços cênicos e figurinos. Ela acrescenta que máquinas de costura, máquina de lavar e secar, equipamentos de som, luz e vídeo, cenários e adereços de sete espetáculos do repertório do grupo foram afetados, além de a loja da Terreira também estar comprometida.

- Não temos como dizer como está nossa biblioteca. Há várias questões sobre as quais não conseguimos dizer a situação - lamenta Tânia. - Quando retornarmos, estaremos sem nosso material para realizar espetáculos.

Tânia relata que parte do acervo histórico estava na Terreira para ser organizado para o Museu da Cena - Ói Nóis Aqui Traveiz:

- Era um passo importante para a memória do teatro brasileiro. Tínhamos feito uma triagem de materiais de outras décadas, lá do início do grupo, nos anos 1970, que iam começar a ser registrados para um repositório digital. Iam passar por um processo de conservação. O material estava todo ali.

Reconstrução

Em comunicado divulgado nas redes sociais, o grupo destacou que, em um primeiro momento, não está pedindo Pix. "Estamos primeiro entendendo como vai ser", diz a publicação. Tânia explica que a Tribo tem como objetivo inicial integrar a corrente de solidariedade, mas também conscientizar as esferas públicas de que trabalhadores da cultura precisam ser auxiliados.

- Também estamos trabalhando como voluntários em diferentes ações. Não pedimos (Pix) ainda porque entendemos que a prioridade é salvar vidas - ressalta. - Queríamos divulgar nossa situação porque é importante que o poder público, de modo amplo, saiba que as pessoas que trabalham com arte e cultura precisarão entrar nesse plano de reconstrução. Divulgando a situação da Terreira, a gente acaba falando de outros espaços que também vão precisar de auxílio.

Alguns integrantes da Tribo tiveram que abandonar suas casas, que ou foram inundadas ou não tinham mais água e/ou luz. Porém, garante Tânia, todos estão em segurança.

Em 2022, ficou definido que a Terreira trocaria de endereço para a Travessa Carmem, 95, no bairro Floresta. Os artistas receberam o Termo de Permissão de Uso (TPU) da prefeitura. A reforma do espaço, que se encontra bastante degradado, ficou a cargo da Tribo. No entanto, o grupo tenta há mais de ano aprovar um projeto de reforma em meio a entraves burocráticos.

- Por ora, não conseguimos pensar no que vamos fazer - diz Tânia.

A presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Maria Marighella, entrou em contato com o grupo e informou que o governo está atento às necessidades do setor. Tânia destaca que artistas do Brasil e de fora do país mandaram mensagens de apoio à Tribo.

- É tudo muito triste, mas é ótimo receber esse carinho. Dá muita força - sublinha.

WILLIAM MANSQUE