sábado, 4 de maio de 2024


04 DE MAIO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

A viuvez dos separados

Meu amigo Fabricio Carpinejar antecipou o assunto, numa bela crônica publicada em 26 de abril, onde discorreu sobre a sensação de ser viúvo/a de uma pessoa com quem já não se é casada. No dia anterior, eu havia enterrado meu ex-marido, e li as palavras do Fabricio com a alma ainda quente. Ele mais uma vez foi certeiro em sua percepção. Estava escrevendo sobre minha história com o pai das minhas filhas.

Foram 21 anos juntos e 18 anos separados, numa relação que nunca terminou, apenas mudou de status: de cônjuges para amigos. Muitos ao redor destacavam nossa civilidade, o que para nós soava esquisito, qual o estranhamento? 

Depois de uma relação de amor e de uma família construída, como poderia restar apenas frieza e distância? Sei que traições, brigas, disputas financeiras e tantos outros fatores podem conduzir a um fim radical, mas houve uma época em que o casal se amou de tal forma que investiu na eternidade do relacionamento. Se, mais adiante, a separação foi o caminho encontrado para aliviar desavenças, nem por isso a eternidade precisa ser cancelada. 

Separações podem ser atos de amor. Ao constatar que já não pensam parecido e o desejo se bifurcou, toma-se a atitude prévia de se separar, antes de se tornarem grosseiros e secos. Afastam-se parcialmente, sem desfazerem o vínculo por completo. Óbvio que não precisam sair para um chope toda semana, talvez fiquem sem se ver por anos, mas preservam o respeito e a amizade. Sabem que poderão contar um com o outro para sempre, o verdadeiro "para sempre" a ser considerado.

Até que a morte os separe, dizem os padres em cerimônias religiosas de casamento. Dias atrás, esta frase ainda me parecia um ultimato obsoleto. Duração não é um valor em si, as pessoas têm o direito de amar e desamar, elas se transformam e ninguém garante que quem está ao lado acompanhará as mudanças, portanto, que se separem quando forem esgotadas as possibilidades de ser feliz junto. As crianças sofrerão, mas um dia irão compreender que a paz é preferível a um ambiente contaminado por frustrações.

No entanto, "até que a morte separe" ganhou novo sentido para mim, me parece uma frase simpática inclusive para uso numa audiência de divórcio. Matrimônios acabam e o que se faz com a antiga intimidade? Reaproveita-se para iniciar uma relação de desapego, mas intacta em sua essência amorosa - até o fim.

Meu estado civil virou uma abstração, já não me sinto divorciada, mas viúva não sou, ao menos não a única: outros amores ele teve, importantes também. O que resta agora é o orgulho de ter feito parte da vida de um homem especial que se foi. De bônus, confirmei que finitude é um conceito relativo. Às vezes, nem a morte encerra tudo.

MARTHA MEDEIROS

04 DE MAIO DE 2024
DRAUZIO VARELLA

A PRÓXIMA PANDEMIA

Será fundamental estarmos preparados, sem repetir os erros que cometemos com a covid-19. Haverá uma nova pandemia, só não sabemos como virá nem de onde. Será fundamental estarmos preparados para enfrentá-la, sem repetir os erros que cometemos quando o vírus da covid-19 chegou até nós.

O Brasil é o único entre os países mais desenvolvidos que não conta com uma instituição especializada na gestão de emergências em saúde pública e no controle de doenças, como são as dos países europeus e os Centers for Diseases Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, por exemplo.

Assim que surgirem os primeiros casos de uma doença desconhecida em nosso território, será necessário detectá-los de imediato, isolar o agente causador, sequenciar seu genoma e caracterizar os modos de transmissão e o padrão de disseminação entre seres humanos e animais. Esses conhecimentos são fundamentais para a elaboração de vacinas e demais estratégias de combate.

O mesmo vale para doenças conhecidas que podem reemergir num dado momento. Veja a epidemia de dengue que estamos vivendo. Se contássemos com uma estrutura especializada em responder de forma emergencial, capaz de aplicar modelos epidemiológicos para avaliar a extensão e a gravidade dos surtos com antecedência, o SUS teria tido tempo de se mobilizar com mais eficácia para evitar tanta morbidade.

Com as mudanças climáticas atuais, a pobreza e as condições de moradia da nossa população, é impossível acabar com a proliferação do Aedes e com a dengue, mas as mortes podem ser evitadas com uma medida simples: a hidratação.

A dificuldade não é saber como tratar, mas como organizar as redes formadas pelo programa Estratégia Saúde da Família, pelas Unidades Básicas de Saúde, pelas Unidades de Pronto Atendimento e pelos hospitais de forma racional para garantir o acesso irrestrito ao atendimento, num país das dimensões do nosso.

É um desafio gigantesco, que não pode depender de iniciativas isoladas das prefeituras. Emergências em saúde pública exigem coleta de dados confiáveis, respostas rápidas e coordenação nacional e internacional.

Precisamos de um órgão técnico supervisionado pelo Ministério da Saúde, integrado ao SUS, para assessorá-lo com autonomia e estabilidade funcional, independente do voluntarismo dos governantes da ocasião. Não podemos repetir absurdos recentes, como o de depender da imprensa para checar os números da epidemia uma vez que os oficiais não eram confiáveis.

Não é preciso reinventar a roda. Apesar das dificuldades e dos descasos, a ciência brasileira dispõe de cientistas da melhor qualidade, distribuídos em universidades e institutos de pesquisas respeitados internacionalmente, como o Butantan, a Fiocruz e o Instituto Evandro Chagas, entre vários outros.

Temos também cientistas altamente capacitados que trabalham nos maiores centros de pesquisa americanos e europeus. São brasileiros dispostos a voltar para o país assim que lhes forem oferecidas condições decentes para prosseguir com suas pesquisas. Não é sensato desperdiçar talentos que nos fazem falta.

As mudanças do clima, o desmatamento, o crescimento desordenado das cidades, a superpopulação em algumas áreas e a desigualdade econômica formam o caldo de cultura ideal para a disseminação de doenças infecciosas e de outros agravos.

As ameaças à saúde da população no mundo atual estão cada vez mais complexas. Não há mais espaço para improvisações. As políticas públicas devem ser adotadas pelo SUS depois de análises de dados e avaliações técnicas baseadas nas melhores evidências científicas.

O Brasil tem um dos sistemas de saúde mais abrangentes do mundo, o SUS, mas não é fácil oferecer assistência para 200 milhões de habitantes espalhados numa extensão continental, com grandes massas populacionais vulneráveis.

A próxima emergência em saúde pública não pode provocar tragédia semelhante à da covid-19. Faz falta um órgão técnico adaptado à nossa realidade, com recursos financeiros, gestão moderna, livre de interferências políticas e com agilidade administrativa para contratar profissionais, desenvolver estudos colaborativos com as universidades e os institutos de pesquisa, integrado ao SUS com o objetivo de assessorá-lo e fortalecê-lo.

Perderam a vida mais de 700 mil brasileiros na última pandemia. Não podemos ser pegos de surpresa outra vez. Não vamos repetir os mesmos erros, não é possível que não tenhamos aprendido nada.

DRAUZIO VARELLA

04 DE MAIO DE 2024
J.J. CAMARGO

O TEMPO DA DESCONFIANÇA

Por inércia ou comodismo, permitimos que valores básicos fossem fraudados, gerando uma náusea engatilhada e um resmungo permanente

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, eles simplesmente serão governados pelos que gostam." (Platão)

É certo que ninguém escolheria viver num mundo marcado pela desconfiança. Se estamos vivendo esse tempo, significa que temos enorme parcela de culpa por termos permitido, por inércia ou comodismo, que os valores básicos fossem fraudados, gerando em grande parte esse desconforto que não desgruda e que nem conseguimos explicar, mas mantém uma náusea engatilhada e um resmungo permanente, única evidência de que estamos infelizes. Ainda que sigamos fazendo de conta que está tudo bem, mesmo com a consciência grunhindo que não.

A primeira função comprometida por esse estado de coisas é o sono, que some sem causa aparente, alongando as madrugadas nesse tempo de solidão fisiológica em que a realidade, que está ruim, prenuncia-se ainda pior.

Há poucas décadas, em sinal de preocupação com o bem-estar coletivo, eram frequentes as pesquisas de opinião, para saber, numa atitude proativa, qual setor da sociedade era melhor cotado perante a população. Lembro de Correios, Justiça, imprensa e médicos, estes liderando a pesquisa. Tempos depois, os Correios, provavelmente constrangidos pela distância que os separava dos outros objetos de pesquisa, tiveram uma piora impressionante, atribuída a um sinal dos tempos modernos, vertiginosamente acelerados pela tecnologia da informação. Mas coincidência ou não, o topo daquela lista despencou a seguir. Em solidariedade?

Políticas que fracassaram em todos os lugares do mundo em que houve quem acreditasse nelas foram sacudidas do mofo que as cobria e apresentadas como novidades. E outra vez estabeleceu-se a supremacia do discurso vazio sobre os fatos indiscutíveis.

E a desconfiança generalizou-se porque quase nada era como parecia ser, e cresceu a percepção de que só teria certeza de alguma coisa quem estivesse mal-informado.

A Justiça tornou-se fluida, e o brado "isso é inconstitucional!" passou a ser repetido com tal frequência que, depois de um tempo, ninguém mais sabia o que aquilo queria, de fato, dizer. Talvez clamassem pela memória da dona Constituição, uma senhora originalmente bonita, mas que passou por tantos acréscimos e remendos que é evocada somente quando vítima de outro atropelamento, ainda mais desfigurante.

A imprensa, outrora formadora de opinião, fragmentou-se como representante de uma sociedade ideologicamente dividida, em que cada um lê ou ouve só o que coincida com sua opinião, fugindo do contraditório, que sempre foi o mais poderoso antídoto da ignorância, individual ou coletiva.

A medicina, historicamente vista como elite social nos países desenvolvidos (provavelmente porque os poderosos sempre tiveram medo de morrer de uma doença tratável), passou a ser ostensivamente aviltada na sua origem, com cursos caça-níquel sem nenhuma preocupação com qualidade, vitimando de morte a quem nunca pode escolher.

Com os valores básicos em franca degradação, ninguém mais tem ânimo para promover uma pesquisa que apurasse, por pura curiosidade, em qual setor da República o povo confia menos. E por quê? Porque ninguém está interessado no que o povo pensa, desde que siga pagando os impostos, claro, e guarde para si sua modesta opinião.

J.J. CAMARGO

04 DE MAIO DE 2024
CONSELHO EDITORIAL

JORNALISMO EM TEMPOS DE CATÁSTROFE

Para que serve o jornalismo em uma emergência climática extrema?

Em momentos agudos como o da tragédia que infelizmente assola o Rio Grande do Sul mais uma vez, em primeiro lugar, serve para ajudar as pessoas a sobreviverem: para onde ligar se precisar ser resgatado. Quais estradas estão interrompidas. Qual a probabilidade de os rios subirem em determinados lugares e quando a evacuação deve ocorrer.

Em momentos como este, a diretriz nas redações segue esta prioridade: primeiro, o que chamamos de "serviço e alertas": tudo o que ajudará as pessoas a sobreviverem e a passarem melhor pela emergência, como neste momento dramático como nunca se viu no Estado.

A segunda prioridade é mobilizar pela solidariedade e pela reconstrução. O tamanho desta tragédia ainda não permitiu que se entrasse de vez nesta frente, porque a situação ainda está muito crítica. Mas, assim como fizemos nos últimos eventos climáticos graves, o Grupo RBS novamente vai ajudar de todas as maneiras para que o Rio Grande do Sul se una em esforços para, mais uma vez, recuperar as cidades, as estradas, as pontes, as casas, o comércio etc. E isso se faz com o clamor pelas doações, nos locais adequados, sempre em compasso com a Defesa Civil. Fazemos isso por meio da campanha e dos programas Ajuda Rio Grande.

Nos últimos dias, RBS TV, Gaúcha, GZH, Zero Hora, Diário Gaúcho, Pioneiro voltaram 100% dos seus esforços para informar, informar, informar. Derrubamos programações normais para, em todos os espaços possíveis, levar ao público o máximo de informações. Autoridades não têm como fazer chegar à população imediatamente, salvo por meio dos veículos de comunicação de jornalismo profissional, as mensagens que precisam ser transmitidas.

Foram centenas de repórteres, apresentadores, editores, cinegrafistas, fotógrafos, comunicadores, em dezenas de cidades diferentes do Estado, para trazer o quadro completo, minuto a minuto.

Por mais que nos esforcemos, com todas as nossas equipes junto à população, numa catástrofe como esta nunca parece ser suficiente. A sensação de impotência e o pesar pelas perdas de vidas são gigantescos. Mas seguiremos trabalhando duro, no que é nosso papel, de tentar informar e mobilizar ao máximo, para que o jornalismo cumpra seu papel em mais este desafio extremo do Rio Grande do Sul.

?Leia a Carta da Editora Dione Kuhn à página 4 com depoimentos de nossos repórteres e comunicadores.

MARTA GLEICH

04 DE MAIO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

SOMOS TODOS CULPADOS?

Dois episódios da Bíblia - o Dilúvio e o Apocalipse - parecem reunir-se com as enchentes de agora. É como se as portas do céu se abrissem e as chuvas despencassem das nuvens sem piedade. Daí pergunto: na seca de meses atrás, as chuvas se esconderam nas nuvens?

Ou as secas também são obra das nuvens, que, arrependidas, se desculpam após nos castigar e, assim, fazem chover como no Dilúvio?

Essas indagações, mesmo sem sentido, levam à conclusão da ciência: os fenômenos ou mudanças na natureza são obra nossa.

Basta acompanhar os relatos deste jornal e da RBS TV para avaliar os estragos provocados pela chuvarada. Na zona de mineração em Arroio dos Ratos, os diques (construídos para explorar carvão) retiveram a água inundando a cidade. Na enchente anterior, moradores acionaram o Ministério Público, mas o alerta não venceu a lentidão burocrática e o horror cresceu agora.

A crise do clima, alternando secas e enchentes, exige ações preventivas. Os governantes, porém, limitam-se a gestos formais, como fez o governador ao decretar agora "estado de calamidade pública". Nada foi feito de antemão para, pelo menos, atenuar a catástrofe.

É absurdo resolver as calamidades por decreto. Ou crer que as chuvas matam e destroem por serem "assassinas" e "más".

As calamidades são obra do ser humano e dos governantes. As mudanças climáticas, desenvolvidas por séculos, se agravaram, chegando à crise atual. O grande vilão são os combustíveis fósseis, como petróleo e carvão mineral.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, referiu-se ao carvão e advertiu: "Basta de financiar a morte".

Tampouco basta que o presidente da República venha ao Estado e sobrevoe as zonas afetadas ou nelas permaneça algumas horas. Faltam planos e projetos para enfrentar a crise climática. No Estado, permanece a ameaça de abrir uma mina de carvão a 12 quilômetros da Capital, às margens de um rio que chega ao Guaíba, que, assim, se transformará em cloaca mineral.

Nada se faz de concreto para evitar esse Apocalipse.

FLÁVIO TAVARES

04 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

COMPROMISSO COM O ESTADO

Zero Hora completa 60 anos de existência neste sábado com uma história singular e muitos motivos para celebrar, mas nenhuma celebração pode ser mais significativa do que a reafirmação diária de seu compromisso com a informação, com a prestação de serviços e com os interesses do povo gaúcho. Por isso, o Grupo RBS decidiu registrar este aniversário com a discrição e a responsabilidade que o momento exige, ao mesmo tempo que, num processo natural de sua operação, mantém a mobilização de seus profissionais e de seus veículos na ampla cobertura da tragédia que se abate sobre o Estado. 

O Rio Grande do Sul passa por uma calamidade climática sem precedentes. Em diversas áreas de seu território, há pessoas morrendo, há desaparecidos, há comunidades inteiras desabrigadas e há a necessidade de muita informação para orientar a população, potencializar a ação das autoridades e ajudar na preservação de vidas humanas. 

Nada pode ser mais importante do que isso neste momento. O Grupo RBS está consciente desta realidade. Não vamos ignorar o aniversário do jornal, nem deixar de apresentar, em breve, uma edição impressa reformulada e várias outras novidades na sua versão digital. Estamos preparados para anunciar produtos e serviços inovadores, que se estendem também à plataforma GZH, à Rádio Gaúcha e aos demais veículos do grupo, numa conexão planejada para atender a todos os segmentos dos nossos públicos. 

O evento de lançamento deste pacote de inovações para parceiros e clientes será reagendado em data oportuna, assim como a veiculação da edição reformulada de Zero Hora. Acreditamos - e continuaremos trabalhando muito nesse sentido - que logo o Estado terá superado o momento mais agudo da atual crise. 

Independentemente dessa previsão, porém, nos comprometemos a continuar acompanhando com total atenção os fatos relacionados à catástrofe ambiental, como estamos fazendo exaustivamente nesses dias angustiantes de chuva e lama. Em cumprimento ao compromisso de parceria que mantém com a população gaúcha, o Grupo RBS decidiu ampliar os espaços noticiosos de seus veículos para acompanhar melhor o atual evento climático e as demandas das comunidades por ele afetadas. 

Consideramos que essa proximidade com o público é essencial para alcançarmos o nosso propósito de prestar um bom serviço de comunicação por meio de informações úteis e opiniões construtivas e responsáveis. Por tudo isso, ao completar sua sexta década de existência, Zero Hora adia a celebração de seu aniversário, mas aproveita a data emblemática para registrar sua gratidão aos leitores, assinantes, anunciantes e profissionais que, ao longo dos anos e diariamente, vêm ajudando a escrever a história deste jornal comprometido com o Estado e com a sua população. 

Esta parceria com o público nos fortalece e nos desafia. Somos gratos aos leitores pela escolha, mas também pelas sugestões, pelas críticas e pelos incentivos. O retorno valoriza nosso trabalho e nos estimula a melhorar. Por isso acreditamos que, juntos, haveremos de superar as dificuldades do presente para continuarmos construindo um futuro digno para todos nós.



04 DE MAIO DE 2024
+ ECONOMIA

Siderúrgica promete "toda ajuda"

Também afetada pela enxurrada, a Gerdau decidiu parar a produção na usina de Charqueadas, focada na produção de aços especiais, destinados ao mercado automotivo.

Segundo o CEO da siderúrgica, Gustavo Werneck, a decisão foi tomada no momento em que a cidade está passando por sérios problemas e permite concentrar o foco nessa solução. A atual capacidade de produção na usina, a antiga Aços Finos Piratini, é de 450 mil toneladas por ano.

A expectativa é de que a retomada em Charqueadas ocorra nos próximos dias, assim que a água refluir. Em Sapucaia do Sul, onde a Gerdau acabou de inaugurar obras de modernização, a atividade continua normal.

À coluna, Werneck afirmou que está em contato permanente com o governador Eduardo Leite para garantir "todos os recursos que puder disponibilizar".

- Vamos dar toda a ajuda possível. Isso tanto agora, que os esforços estão mais focados no resgate, quanto em um segundo momento, o da reconstrução. Estamos nos solidarizando com todos os gaúchos e acompanhando de perto a situação da chuva no Estado.

A parada em Charqueadas só deve se estender no final de semana, tranquilizou Werneck. Não deve provocar impacto no mercado, uma vez que a empresa tem estoques para suportar a demanda no período em que se considera necessária a interrupção das atividades.

Uma ideia para reconstruir o Estado

A coluna recebeu uma ideia para viabilizar a enorme quantidade de recursos que será necessária para recontruir o Estado: negociar com a União a suspensão temporária do pagamento da dívida pública, condicionada à demonstração de aplicação de recursos na recuperação econômica e social do Rio Grande do Sul.

O autor é o ex-secretário da Fazenda Aod Cunha. É bom lembrar que não se trata de um economista que relativiza a necessidade de pagar dívidas, sejam públicas ou privadas.

- Jamais proporia algo assim, mas há justificativa econômica e legal para isso, uma calamidade pública de grandes proporções. A própria legislação federal prevê isso e já foi usada na pandemia. E por que só para o RS? Bom, é autoexplicativo - argumenta.

Uma possibilidade seria direcionar boa parte da aplicação a soluções de longo prazo frente à mudança climática.

- Poderia ser um projeto-piloto da União que provavelmente terá de ser utilizado em outras regiões, pelo que estamos observando das mudanças no clima - justifica.

Aod pondera que a extrema necessidade do RS não será só de recursos financeiros, mas materiais e humanos, porque será preciso fazer muita coisa em pouco tempo, o que sempre foi um desafio para o Estado e para o país. Alerta também que a projeção dos custos não pode ser feita com base nos preços da infraestrutura antiga:

- Precisamos de um novo modelo de ocupação do solo e cidades. Tudo indica que irá acontecer novamente, infelizmente.


04 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

"Não há motivo para pânico"

Segundo os supermercados, a falta de alguns produtos ocorre mais pela procura excessiva dos clientes do que por questões de abastecimento. Redes com atuação no Interior garantem os estoques para mais de 10 dias.

É o caso do Grupo Peruzzo, que também inclui o atacarejo Ecomix, com mais de 25 unidades espalhadas por cidades como Santa Maria, Candiota, Dom Pedrito, Caçapava do Sul, Alegrete e São Borja. Lindonor Peruzzo Junior, vice-presidente da rede, informa que a matriz, em Bagé, conta com dois centros de distribuição.

Os hortifrúti, explica, chegam de Cachoerinha e já faltam algumas frutas e ovos, o que deve permanecer ao longo do final de semana. Açúcar, óleo de soja e leite começam a dar mostras de que podem faltar a partir de terça-feira. Ele verifica que a alta procura e a grande quantidade de compras, "em níveis fora do comum", por papel higiênico e água, fazem com que esses itens estejam mais escassos no momento. Mas diz que não há problema relacionado a alimentos como leite e carnes.

- A previsão é regularizar algumas coisas na semana que vem. Pode faltar um ou outro, que pode ser substituído, mas não há motivo para pânico - reforça.

Dificuldade

A UnidaSul, holding que administra as marcas Rissul e o Macromix, informa, por nota, que as mais de 40 lojas localizadas em Porto Alegre e Região Metropolitana, Vale do Sinos, Vale do Paranhana e Serra Gaúcha estão com dificuldades momentâneas no abastecimento, já que os caminhões estão sem acesso a esses municípios. A previsão é de que o abastecimento seja normalizado assim que a situação das estradas permitir.

04 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

INUNDADA

Chuvas que castigam o Estado fizeram o nível do Guaíba ultrapassar a marca de 1941. Água avançou sobre o Centro Histórico e o 4º Distrito

Porto Alegre está ferida no orgulho, na alma e no brilho. O 3 de maio de 2024 entra para a história como o dia em que parte da cidade, incluindo regiões populosas e icônicas, foram engolidas pelo Guaíba, que passou de cartão- postal a ameaça. O sistema de proteção de enchentes foi dobrado pela fúria da natureza, que despeja intensa chuva sobre o Rio Grande do Sul desde a última semana de abril.

O prefeito Sebastião Melo orientou moradores e comerciantes das regiões mais afetadas, como Centro Histórico e 4º Distrito, a deixarem os locais, enquanto hidrólogos sugeriram um plano de evacuação para o caso de o Muro da Mauá não resistir à pressão.

Próximo do meio-dia de sexta- feira, o portão 14 do sistema de contenção de cheias, defronte à antiga ponte do Guaíba, rompeu parcialmente. A estrutura é de grande porte, com largura de cerca de um palmo, e apresenta pigmentos de ferrugem. A comporta é fechada em situações de alta para brecar o fluxo, mas acabou severamente vergada. O Guaíba rugiu por entre os largos vãos. Com bruta correnteza, cruzou por debaixo da Avenida Castelo Branco e, do outro lado, alcançou a Avenida Voluntários da Pátria. Dali, correu para a Zona Norte.

Dilúvio

Inóspita, como se recortada de um filme de cataclismo, era a cena na Avenida Sertório. Do trecho entre a antiga ponte do Guaíba até a Avenida Farrapos, a Sertório, um corredor de veículos, estava completamente alagada. Havia ondas na via e, nos pontos mais críticos, a água batia na cintura.

Do meio do aguaceiro saiu Antônio Xavier, 31 anos, trazendo um cachorro no colo.

Ele reside na região das Ilhas, mas viu a casa ser invadida pela manhã. Junto de três familiares e oito cães, tomou carona de barco com um amigo até a ponte do Guaíba. Dali, seguiu a pé e atravessou o dilúvio da Sertório. Ele tinha outros oito cães, mas não havia como carregar todos. Teve de tomar a dilacerante decisão de deixá-los sobre o telhado da casa.

- Já peguei tudo quanto foi enchente, mas essa foi a maior que vi na vida. Hoje pensei que não sairia vivo - contou Xavier.

No meio da tarde, a água já beliscava a Avenida Farrapos, onde fiscais de trânsito tentavam controlar o caos. Havia congestionamento, infrações, pessoas nervosas e com olhar atônito. A incredulidade era justificável.

Algo parecido havia acontecido lá em 1941, quando o nível do Guaíba, antes da construção do sistema de contenção, alcançou 4m76cm.

Neste 3 de maio, a marcação apontou, às 23h, 4m80cm, com chance de novas subidas. Já é a maior enchente da história de Porto Alegre.

Aeroporto

Ainda na Farrapos, retirantes estavam por toda parte, carregando mochilas e aparelhos de TV.

Na Avenida Castelo Branco, com trânsito próximo de zero, jovens observavam o espetáculo dantesco. Um deles gritava:

- Porto Alegre já era.

A rodoviária foi invadida pela manhã e as operações acabaram reduzidas a 5%. O aeroporto Salgado Filho foi fechado temporariamente à noite. Ficaria por 24 horas sem operação.

No Centro Histórico, o Mercado Público, o Paço Municipal e a Praça Montevidéu estavam cercados. A água, ali, vertia pelos bueiros. O sistema pluvial não deu conta e tudo voltou a superfície, expulsando do subsolo baratas que maculavam as paredes do Mercado Público.

Havia muita gente nas ruas fotografando e filmando a surpreendente tragédia.

Na Praça da Alfândega, onde acontece anualmente a tradicional Feira do Livro, o Guaíba avançou até a metade. O governador Eduardo Leite surgiu por ali no meio da tarde e conversou com populares. Na verdade, fez apelos. Afirmou entender a curiosidade pelo fato histórico, mas pediu que todos se afastassem porque o Muro da Mauá estava sendo testado como nunca antes. Não era seguro ficar ali, alertou. Eventual rompimento poderia levar uma onda perigosa em direção à Alfândega.

Não surtiu o efeito esperado. Minutos depois, uma senhora posou para uma foto sorridente no mesmo ponto, erguendo os dois polegares em sinal de positivo, tendo um ilhado Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) como pano de fundo.

Orla

Os alagamentos tomaram a orla do Guaíba e o Centro de Treinamento do Inter. Na Avenida Diário de Notícias, encobriram os campos da escolinha de futebol do Grêmio e, mais adiante, os clubes náuticos. Na Praia de Ipanema, lambaris chegaram a ser lançados pela água sobre o calçadão. A água redefiniu a Orla, ultrapassou a ciclovia e, em alguns trechos, tomou pátios das residências do bairro de classe média-alta da Zona Sul.

- A natureza está desequilibrada. Tudo está desorientado - refletiu o produtor rural Paulo Maciel, 53 anos. O aposentado Vitor Bassani, 72 anos, tem o hábito de ir diariamente ao Centro. Ele discorda do brado "Porto Alegre já era". Idealiza um ponto de virada.

- Quem sabe isso leve as pessoas a valorizarem mais a cidade, a natureza, os jovens e os idosos. As pessoas se aproximam na calamidade - pregou Bassani.

CARLOS ROLLSING

04 DE MAIO DE 2024
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Relatos de uma tragédia

Na Carta anterior, eu havia anunciado a estreia, nesta edição, de uma nova Zero Hora para marcar os 60 anos do jornal. Porém, como afirma o editorial da RBS na página 22, o momento não é para celebrações e novidades, e sim de reforçar o nosso compromisso de informar, de estar ao lado da população do Rio Grande do Sul. Usarei este espaço para reproduzir alguns dos relatos dos nossos repórteres e comunicadores que estão acompanhando de perto a tragédia provocada pelas chuvas:

"Mais uma vez, foi preciso sair do estúdio, calçar as galochas e segurar a emoção para informar os gaúchos sobre uma tragédia climática. Agora, ainda pior? e, de novo, só buscar e transmitir notícias não bastou, foi preciso abraçar, consolar, dar forças e incentivar a fé em dias melhores."

"Participar de uma cobertura como esta é estar próxima ao lado mais vulnerável do ser humano. Uma das coisas que mais me marcaram até agora foi o relato de uma mulher de São Vendelino que perdeu um filho e o marido soterrados. A angústia e o sofrimento eram nítidos, ao mesmo tempo que projetava um futuro incerto e a assistência aos outros três filhos."

"Impressionou-me o choro das pessoas. A prefeita de Sinimbu chorou enquanto eu a entrevistava. O mesmo aconteceu com uma agricultora que viu as vaquinhas, todas com nome, serem levadas pela água. As vítimas não sabem como recomeçar a vida, não veem perspectiva. É uma tristeza sem fim."

"Em Candelária, o que mais dói é ver o drama daqueles que não possuem notícias de seus familiares, daqueles que permanecem de plantão no local onde pousa o helicóptero, esperando para que o resgate chegue até seus familiares. Uma cidade sitiada e clamando por ajuda, mas que encontra esperança na força do seu povo."

"Às vezes tenho a sensação de que o tempo parou. Nada que veio antes e nada que ainda virá parecem fazer sentido. Estamos vivendo um minuto após o outro. Tudo muda a todo momento! Nesse momento de tanta dor, só nos resta não perder a esperança de que um dia isso tudo vai passar. E essa tragédia vai ficar para a história."

"O pavor de ter testemunhado uma mulher sendo levada pelo Rio Pardo, a alegria de saber que ela se salvou, poder lhe dar um abraço depois e ver o empenho do trabalho de bombeiros voluntários, da comunidade e de autoridades foram as coisas que mais me marcaram nesta cobertura em Candelária."

Todos os conteúdos produzidos sobre as enchentes estão disponibilizados de forma gratuita em GZH. Reportagens, colunas, vídeos, alertas e a cobertura em tempo real do maior desastre climático da história do RS permanecem abertos a não assinantes.

DIONE KUHN

A melhor defesa

Em 2008, ao lado de Nelson Sirotsky e de outros colegas da RBS, acompanhei in loco uma das maiores tragédias da história do sul do país: o derretimento dos morros que cercam Blumenau, com dezenas de mortos. De lá para cá, traumatizada, a cidade se transformou em exemplo de como lidar com catástrofes da natureza.

O roteiro começa pela prevenção com base em uma lógica simples: quanto mais estivermos preparados para as dificuldades, melhor vamos superá-las. No Rio Grande do Sul, houve grandes avanços na previsão de cataclismos e no enfrentamento das consequências de secas e enchentes, mas quase nada evoluímos em obras de infraestrutura que evitem os danos humanos e físicos de chuvaradas e estiagens.

Nos anos 1980 e 1990, como repórter, presenciei também muitos episódios de inundações e deslizamentos. Apesar da brava atuação de bombeiros, militares das Forças Armadas e de voluntários, defesa civil era uma vaga noção de governos e prefeituras, algo assim como um corpo estranho e acanhado nos organogramas. A realidade vem impondo uma nova dimensão às defesas civis. Estamos, porém, a anos-luz de compreender que a melhor defesa é o investimento nas engenharias capazes de aplacar tragédias causadas por sucessivos dilúvios.

Uma questão central é que as métricas do passado que ditavam os níveis de resistência de pontes, estradas e encostas precisam ser atualizadas para um novo normal. Há menos de três semanas, as chuvas interromperam a BR-101 por três dias em Santa Catarina, em um prejuízo incalculável para a economia. Os transtornos e as perdas causados por quedas de pontes e destruição de dezenas de trechos de estradas no Rio Grande do Sul terão de ser melhor pesados a partir de agora no cálculo do custo de uma nova obra ou de sua revitalização.

Por uma daquelas nossas características de pioneirismo, o Rio Grande do Sul conta com um dos mais renomados centros de ciências hídricas da América Latina, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. O Brasil tem quatro faculdades de engenharia hídrica e duas delas estão aqui no Estado - a outra é na Federal de Pelotas. Não adianta, contudo, se ter os melhores experts na área e na engenharia civil se não houver contrapartida na realidade para além dos muros acadêmicos.

É preciso, sobretudo, investir pesadamente na correção de cursos de água, em barreiras contra inundações, em materiais e obras mais resistentes e, quando possível, na realocação de moradias e áreas produtivas para fora do raio de desgraça das intempéries. Infelizmente, prevenção dá pouco voto e, portanto, o tema só ganha projeção em momentos críticos como o que vivemos agora. Mas há esperança: um dia também já se achou que montar e equipar as defesas civis era só perda de tempo.

MARCELO RECH 

04 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

O dia em que o centro da Capital parou

"Saiam! Não fiquem na área!", gritava o policial ao megafone, de dentro da viatura da Brigada Militar. Quando ouvi a ordem, às 12h13min de ontem, diante do Mercado Público de Porto Alegre, senti um nó na garganta. Jamais pensei que veria o centro da maior cidade gaúcha ser evacuado devido às consequências de uma tragédia climática.

Por dever de ofício, fui até a região conferir com meus próprios olhos a situação do Guaíba, que subia sem parar. Cheguei à área central em um carro de aplicativo. Desci perto do viaduto da Avenida Borges de Medeiros e segui caminhando rumo à parte baixa do Centro Histórico.

No trajeto, vi cenas que lembravam filmes sobre o fim do mundo: lojistas trancando as portas às pressas, pedestres andando a passos rápidos com semblantes fechados, mendigos observando a correria incomum com o olhar de quem não tem para onde ir.

Já morei no Centro e sou frequentadora da região. Em 28 anos de vida porto-alegrense, nunca tinha visto nada parecido.

No entorno do Mercado, fechado e vazio, ratazanas e baratas corriam pelas calçadas como se procurassem abrigo. Olhei em direção à Avenida Júlio de Castilhos, paralela à Mauá (onde fica o muro) e vi a água parda sobre o asfalto. O rio-lago já havia ultrapassado a barreira e estava ali, a 30, 40 passos do Mercado. E subindo.

Curiosos aproximavam-se, olhando estupefatos a rua sem carros e sem barulho. Dava para andar no meio da avenida. As pessoas pareciam não acreditar no que viam, com os celulares em punho, fazendo fotos e vídeos sem parar. Também captei imagens e postei no Instagram. As fotografias que você vê ao lado são minhas.

Foi nesse momento que passou a viatura. "Saiam! Saiam! Saiam!" A essa altura, uma das comportas de contenção do Guaíba, na Avenida Sertório, já havia se rompido. O risco era enorme. Vi, mais uma vez, ratos saindo dos bueiros e, instintivamente, procurando lugar seguro. Saí de lá sem olhar para trás.

É absurdamente grave o que está acontecendo no RS. Buscamos dar os alertas, mas fomos tendo a compreensão do tamanho do que estava acontecendo no curso (da tempestade).

Eduardo Leite

Governador do RS, em um dos momentos mais graves da crise climática no Estado.

Não temos mais supermercados, agências bancárias. A impotência é total.

Sandra Backes

Prefeita de Sinimbu, um dos municípios mais atingidos pela chuva no Vale do Rio Pardo.

Não tínhamos enfrentado nada igual.

Jorge Pozzobom

Prefeito de Santa Maria, município que registrou um dos maiores volumes de chuva do mundo na última quarta-feira.

Quero muito que o pessoal junte bastante dinheiro, quem tiver condições. Por favor, levem esta mensagem. Cidades estão sendo arrastadas.

Matteus Amaral

Ex-BBB, pedindo apoio à crise climática no RS.

Não faltarão recursos para reconstruir o que foi destruído pela chuva.

Luiz Inácio Lula da Silva

Presidente da República prometeu apoio ao Rio Grande do Sul para reconstruir tudo o que foi afetado pela chuva.

Quero transmitir às meninas e aos meninos que a vida é bela, mas se desgasta e cai. A questão é recomeçar cada vez que se cai e, se houver raiva, transformá-la em esperança.

José Mujica

Ex-presidente do Uruguai, ao anunciar que sofre de câncer de esôfago.

Estamos encurralados. Não tem como sair por cima, por causa dos deslizamentos, nem por baixo, porque o rio alagou tudo.

Mateus Trojan

Prefeito de Muçum, cidade do Vale do Taquari que voltou a ficar submersa.

arte

O sol há de brilhar outra vez

Van Gogh foi um especialista, entre outras coisas, em pintar a luz do sol, em todo o seu esplendor, usando pinceladas vivazes, com cores vibrantes e expressivas. A tela ao lado, que pertence ao acervo do Museu Kröller-Müller, em Otterlo, na Holanda, é um exemplo disso.

O título da obra não é o que destaquei, mas é a mensagem que quero deixar, depois de tantos dias tristes, escuros e molhados no Rio Grande do Sul. A tela chama-se O Semeador, foi concluída em 1888 e mostra o sol como fonte de luz, energia e vida.

INFORME ESPECIAL

sexta-feira, 3 de maio de 2024


03 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Tragédia internacional

Circula pela internet um vídeo em que uma família gaúcha se encontra paralisada de terror no interior de sua residência de madeira. É de madrugada. Objetos de limpeza boiam, vassoura e baldes vão e vêm pelas marolas, crianças dormem amontoadas na cama, cachorro permanece em vigília, com a cintura totalmente coberta pelo lodaçal, até aparecer uma vó de chinelos, encapuzada, encolhida em cima da mesa, envolvendo as pernas dobradas com as mãos. Ninguém fala. Ninguém se mexe. Ninguém dá um pio. A cena transmite o mais completo medo. Esperam pelo pior, juntos, apegados aos seus poucos móveis.

O que sobra para dizer? Ainda estamos no meio das chuvas, elas sequer terminaram. Não temos como concluir o tamanho dos estragos.

Trinta e uma mortes haviam sido registradas em razão da chuva no RS até o início da noite de ontem, sendo 29 na contagem oficial da Defesa Civil. Pelo menos 60 pessoas estavam desaparecidas. Só no bairro Galópolis, em Caxias do Sul, sete eram procuradas debaixo de escombros.

Quinze mil pessoas estavam desabrigadas. As principais regiões atingidas são a Central, Vale do Rio Pardo, Vale do Taquari, Metropolitana e Serra.

Não tem como trafegar pelo Estado. Existem mais de cem trechos bloqueados de estradas estaduais e federais, inclusive a BR-290, totalmente parada próximo a Charqueadas. Pelo menos 11 pontes acabaram totalmente ou parcialmente derrubadas pela força da correnteza. Entre elas, a ponte sobre o Arroio Grande.

Cartão-postais como Gramado e Canela, que atraem milhões de turistas no Dia das Mães, apresentam o acesso comprometido. Governo decreta estado de calamidade pública e adota o tom apocalíptico.

Não há vida cultural, social e turística acontecendo, somente sobrevivência. Eventos, jogos, shows e espetáculos foram cancelados. Dependemos de helicópteros e frotas de barcos do governo federal para rastrear sumiço de dezenas de moradores.

Seis meses depois da última enchente, que ocorreu em setembro, com 50 vítimas, enfrentamos uma nova enxurrada, de igual potência, porém ameaçando municípios que até então não haviam sofrido sequelas. A tragédia estendeu seus tentáculos pelo nosso mapa.

Mas não se trata mais de uma crise regional, é uma calamidade de proporção internacional. Santa Maria foi a cidade que recebeu o maior volume de chuva em todo o mundo. Lideramos o top 10 da desolação.

Os resgates não são imediatos, mas operosos e duros emocionalmente. Muitos dos moradores fragilizados não dispõem sequer de mobilidade para entrar numa canoa. A atuação do Corpo de Bombeiros ainda exige preparação psicológica para convencê-los da necessária evacuação.

Há quem demonstra resistência em ser socorrido.

Idosos não querem largar sua casinha, seus pertences, seu cantinho, porque pensam que não terão vida suficiente pela frente para recuperar seus bens. Eles se sentem vencidos pelo desespero, pela miséria súbita.

Em São Sebastião do Caí, nas margens da ERS-122, km 10, apesar da sua casa submersa, um senhor quase centenário, de 96 anos, negava-se a sair. Negava-se a ouvir os apelos. Negava-se a abandonar tudo o que conquistou a duras penas. Só chorava.

Enxergamos facilmente as águas de fora, mas não enxergamos as águas de dentro, tão volumosas quanto. Os choros infindáveis de quem perdeu tudo.

CARPINEJAR

03 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

AJUDA COORDENADA

O Rio Grande do Sul passa pelo pior desastre de sua história, como bem definiu o governador Eduardo Leite e como puderam constatar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua comitiva de ministros na rápida visita ao Estado. Neste contexto de sofrimento, foi alentadora a presença do primeiro escalão do governo federal em Santa Maria, ontem, quando ficou definido um plano de ação integrado entre a União, o Estado e os municípios para socorrer os desabrigados e reconstruir a infraestrutura destruída. Em manifestação pública compartilhada por seus assessores diretos, o presidente da República garantiu que não faltarão recursos para ajudar o Rio Grande.

E precisamos muito desta ajuda. O verdadeiro dilúvio que atinge a região deixa, além de irreparáveis perdas humanas, um cenário de destruição nas cidades alagadas e na infraestrutura de serviços públicos, incluindo hospitais, escolas, estradas, transporte, água, energia elétrica e habitação. Resgates dramáticos registrados diariamente pelas forças de segurança e por populares, especialmente de pessoas retiradas dos telhados de suas casas por helicópteros e barcos, dão uma ideia da dimensão da catástrofe. 

Apesar da grande mobilização de soldados, bombeiros, integrantes da Defesa Civil e voluntários, muitos deles protagonizando heroicas ações de salvamento, as operações de resgate ainda se mostram insuficientes para a necessidade e a urgência. Por isso, a atenção para com a vida humana, neste momento crucial, deve ser a prioridade de todos, do poder público e dos cidadãos.

Cabe aos governantes e às autoridades justificar a representação que receberam da população, cumprindo o que prometeram nas suas posses e os compromissos agora renovados. Nesse sentido, é impositivo reconhecer que tanto o governo do Estado quanto os prefeitos dos municípios atingidos e suas respectivas administrações vêm se esforçando para cumprir suas atribuições. Mas o trabalho dos agentes públicos precisa realmente ser organizado, para que ações dispersas não o tornem improdutivo. 

Por isso, é bem-vinda a proposta do governo federal de manter no Estado uma espécie de sala da situação, em conjunto com as autoridades locais, para que o trabalho seja coordenado e eficiente. O trabalho dos agentes públicos não se restringe a resgatar pessoas e acomodá-las em local seguro. Inclui, também, os cuidados médicos e sanitários, a alimentação e a distribuição racional das doações que chegam aos postos de coleta.

Porém, ninguém precisa ter credencial de autoridade para colaborar numa situação de crise. Cada cidadão pode fazer a sua parte. Mesmo que a pessoa não tenha meios para participar diretamente do mutirão de salvamento, ela já estará ajudando se evitar deslocamentos desnecessários e tratar da própria proteção. Este posicionamento será ainda mais efetivo se as pessoas mantiverem a calma e a sensatez, evitando corridas aos postos de combustíveis e aos supermercados, que só servem para gerar pânico e para agravar eventuais dificuldades de abastecimento.

OPINIÃO DA RBS


03 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

"Imploro por um helicóptero, pois tenho 11 famílias isoladas"

Terceira maior economia do Vale do Taquari, Arroio do Meio está embaixo d'água. Apenas duas quadras do centro ainda não foram tragadas pela correnteza do Rio Taquari. Com 22 mil habitantes, a cidade está isolada após a queda de cinco pontes e da interrupção de estradas, sendo impossível acessar Encantado, de um lado, e Lajeado, de outro.

- Não temos luz, vai começar a faltar água e comida - afirma o prefeito Danilo Bruxel.

Na noite de quarta-feira, Bruxel coordenou a retirada das famílias das áreas de risco. Por volta das 20h30min, foi para casa, no bairro Barra do Forqueta, a cerca de dois quilômetros do centro. Na manhã de ontem, não conseguiu acessar a cidade.

- Estou administrando pelo telefone. Já fizemos alguns resgates de barco, mas agora imploro por um helicóptero pois tenho 11 famílias isoladas onde não temos como chegar - diz Bruxel.

Cercado por ao menos quatro cursos d'água, Arroio do Meio viu o Rio Taquari subir dois metros acima do recorde anterior, em setembro, alcançando 38 metros. Cerca de 15 pessoas que passaram a noite ilhadas na praça central foram levadas para a Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e para a Casa de Cultura, depois que dois abrigos usados para acolher desalojados das enchentes do ano passado também ficaram alagados.

Residencial

Os abrigos foram esvaziados há duas semanas, quando 28 casas temporárias foram entregues no município. Famílias que estavam há oito meses morando de forma improvisada em uma creche e uma escola receberam residências de 21 metros quadrados cada. O residencial foi erguido em uma região elevada do bairro Novo Horizonte, a cinco quilômetros do centro.

- Passamos a noite com medo, mas aqui a água não chegou - suspira o operário Marcelo Rodrigues dos Santos, contemplado com um dos imóveis.

Muçum revive pesadelo da enchente

Cidade arrasada pelas cheias de setembro e novembro de 2023 contabiliza na semana 30 deslizamentos e 748mm de chuva

Epicentro das enchentes que devastaram o Vale do Taquari em setembro e em novembro de 2023, Muçum reviveu ontem o pesadelo de ver as ruas da cidade tomadas por uma correnteza lamacenta. Com 748mm de chuva registrados desde segunda-feira, segundo dados da prefeitura, o Rio Taquari alcançou 25m88cm, destruindo 80% da zona urbana e provocando deslizamentos em cadeia no entorno do município.

Isolados após a queda de pontes e bloqueio de rodovias, os 4,6 mil habitantes não têm como deixar a região nem receber socorro.

- Estamos com o gabinete de crise montado no hospital da cidade, que é o lugar mais alto, mas estamos encurralados - desabafa o prefeito Mateus Trojan.

Até o final da manhã, a prefeitura contabilizava 220 desabrigados acolhidos em espaços públicos e milhares de pessoas refugiadas nas casas de parentes ou amigos. A zona rural permanece isolada e sem comunicação. Não há energia elétrica nem sinal de celular na região.

Em comparação com as enchentes anteriores, choveu mais, mas em um espaço maior de tempo, sem repetir a violência mortífera. Até ontem, não havia registros de óbitos. Espremida entre o Rio Taquari e os morros que delimitam o lado oeste da Serra, Muçum registrou mais de 30 deslizamentos na semana, conforme levantamento da Defesa Civil e da Secretaria Municipal de Obras.

Desânimo

Tentando gerenciar o caos a partir de uma sala acanhada do Hospital Nossa Senhora Aparecida, único lugar com energia graças a um gerador, o prefeito resume o sentimento geral dos moradores de Muçum.

- Vamos precisar de comida, água, maquinário, gente. Precisamos de tudo, absolutamente tudo. Estávamos num momento de virada de chave, com o comércio se reerguendo, os espaços públicos sendo reconstruídos. Agora, tudo foi destruído de novo. Não consigo imaginar como recuperar a autoestima, o pertencimento, se nós mesmos não conseguimos nos motivar diante de mais um desastre natural - lamenta Trojan.



03 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Federasul compra 3 mil cobertores

No primeiro dia da campanha de arrecadação de fundos para ajudar as pessoas afetadas pelas enchentes, a Federasul conseguiu comprar 3 mil cobertores, que começarão a ser distribuídos com a ajuda da Gol e dos diretores que vivem no Interior.

Um dos vice-presidentes colocou seu helicóptero à disposição para chegar a áreas que estão isoladas.

As doações podem ser feitas pelo Pix sosrs@federasul.com.br.

Uma conta específica foi aberta no Sicredi. O número é 01299-5, agência 0116.

Cem toneladas de alimentos

Para ajudar pessoas atingidas pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul, a Rede de Bancos de Alimentos do RS e os Bancos Sociais da Fiergs disponibilizaram cem toneladas de alimentos à Defesa Civil Estadual. O montante equivale a 10 mil cestas básicas.

As entidades informam que os mantimentos "estão à disposição do Estado para retirada à medida que for necessário".

A dificuldade é fazer chegar ao destino, já que há várias cidades isoladas por terra.

Para ajudar, não é preciso sair de casa. Basta contribuir via Pix (CNPJ 04.580.781/0001-91), pelo site Doe Alimentos (doealimentos.com.br) ou na conta 13.000.284-4, agência 1001 do Banco Santander.

ROSANE DE OLIVEIRA

03 DE MAIO DE 2024
DANIEL SCOLA

Um avanço importante para todos

Ainda não é o ideal, o Estado precisa evoluir muito. Mas é justo reconhecer que a segurança pública evoluiu bastante nos últimos anos. Em 2018, o pior ano, o número de latrocínios (matar para roubar) chegou a incríveis 93 por ano. Naquela época, não se conhecia ninguém que não tivesse sido vítima de roubo de carro. Os bandidos roubavam até retroescavadeira. Havia criminosos presos várias vezes que continuavam roubando. Todo mundo tinha uma história traumática a contar.

Falava isso para amigos que moram na Europa e eles não acreditavam, achando que eu estava descrevendo um filme de terror. A sensação de impotência era permanente. Com a presença falha do poder estatal, proliferaram as empresas particulares de segurança privada. Com a alta de roubos de carros, os seguros aumentaram. Os bandidos eram tão ousados que assaltavam bancos em cidades pequenas e usavam os reféns como escudo para escapar. As autoridades passaram a chamar aquilo de "novo cangaço".

Para alívio geral, isso não é mais tão comum. Quase todos os indicadores de violência caíram. Houve um tempo em que a região metropolitana de Porto Alegre teve índices de homicídio iguais aos de países em guerra, como o Iraque. Hoje, o cenário ainda não é o ideal, mas pelo menos temos forças de segurança mais bem equipadas. 

Tudo começou a mudar a partir da implantação do programa RS Seguro. A ação é norteada por quatro temas cruciais para aprimorar a segurança: combate ao crime, políticas preventivas sociais, melhora do atendimento ao público e sistema prisional. É preciso entender que o crime se prolifera dentro de presídios superlotados. Quanto mais gente, melhor para os criminosos.

Além de todas essas medidas, as forças de segurança passaram a mapear as cidades com maior risco de crime e a combinar inteligência e integração das polícias para encarar em melhores condições esta guerra. Melhores armas, melhores viaturas, mais equipamentos de proteção, melhores instalações e , claro, salários melhores. A motivação financeira é um estímulo fundamental para aqueles que arriscam a vida por nós. É bem provável que o ideal seja inalcançável. Mas estamos avançando e isso é uma ótima notícia para todos nós.

DANIEL SCOLA


03 DE MAIO DE 2024
NFORME ESPECIAL

Com o coração na lente da câmera

Jornalistas que atuam em veículos de comunicação estão acostumados, por dever de ofício, a lidar com situações extremas. É o caso de Jeff Botega, que você vê na imagem acima, captada pelo repórter Lucas Abati, em Encantado, no Vale do Taquari.

Fotojornalista multipremiado, Jeff já cobriu muitas tragédias e viu de tudo em 28 anos de Grupo RBS. Ontem, ele chorou.

Com a câmera nas mãos, Jeff embarcou no helicóptero comandado pelo tenente-coronel Ingo Lüdke, do Corpo de Bombeiros Militar do RS. De dentro da cabine, testemunhou o esforço da equipe para salvar famílias ilhadas em Lajeado.

Ao contar a história na Rádio Gaúcha, ele não se conteve. A voz embargou. Chamei meu amigo no Whats para conversar.

- Foi uma das pautas mais tristes que já fiz - contou ele.

Jeff viu mãe e filhas no telhado de casa, pedindo ajuda, e percebeu a aflição do comandante, tentando ajudar, apesar das más condições de voo. O drama teve final feliz, mas a verdade é que ninguém - ninguém mesmo - sai ileso de uma catástrofe.

Mais do que apoio emergencial

Com cidades submersas, perdas irreparáveis e mais de 150 trechos viários bloqueados nos últimos dias, o Rio Grande do Sul vai precisar mais do que socorro emergencial da União. O compromisso assumido ontem, em Santa Maria, pelo presidente Lula - de que não faltará dinheiro para a reconstrução - foi um alento.

A dúvida é: será na velocidade necessária?

O que vimos depois da tragédia no Vale do Taquari, em 2023, não foi exatamente isso. A burocracia estatal (na origem, uma forma de proteção ao erário, para evitar desvios de recursos públicos) travou o que deveria ser urgente.

Agora, vivemos tudo outra vez, só que em escala ainda maior e sem trégua.

O governador Eduardo Leite não exagerou quando definiu a atual catástrofe climática como a pior da história do Estado (até aqui, se nada for feito).

Alvo de críticas de adversários políticos, Leite pode (e deve) ser cobrado por suas ações, mas agiu certo ao usar todos os meios possíveis (inclusive as redes sociais) para chamar a atenção de Lula. Ainda que o presidente jamais tenha se negado a atendê-lo, a situação pedia isso. Foi, também, uma forma de alertar o Brasil sobre o que enfrentamos no extremo sul de um país continental.

Não foi um evento climático qualquer. Estradas sumiram do mapa, pontes foram arrastadas, municípios ficaram isolados, pessoas morreram. A prioridade é resgatar vidas, mas o pesadelo, infelizmente, não vai terminar tão cedo, e o governador sabe disso.

JULIANA BUBLITZ