sexta-feira, 3 de maio de 2024


03 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Tragédia internacional

Circula pela internet um vídeo em que uma família gaúcha se encontra paralisada de terror no interior de sua residência de madeira. É de madrugada. Objetos de limpeza boiam, vassoura e baldes vão e vêm pelas marolas, crianças dormem amontoadas na cama, cachorro permanece em vigília, com a cintura totalmente coberta pelo lodaçal, até aparecer uma vó de chinelos, encapuzada, encolhida em cima da mesa, envolvendo as pernas dobradas com as mãos. Ninguém fala. Ninguém se mexe. Ninguém dá um pio. A cena transmite o mais completo medo. Esperam pelo pior, juntos, apegados aos seus poucos móveis.

O que sobra para dizer? Ainda estamos no meio das chuvas, elas sequer terminaram. Não temos como concluir o tamanho dos estragos.

Trinta e uma mortes haviam sido registradas em razão da chuva no RS até o início da noite de ontem, sendo 29 na contagem oficial da Defesa Civil. Pelo menos 60 pessoas estavam desaparecidas. Só no bairro Galópolis, em Caxias do Sul, sete eram procuradas debaixo de escombros.

Quinze mil pessoas estavam desabrigadas. As principais regiões atingidas são a Central, Vale do Rio Pardo, Vale do Taquari, Metropolitana e Serra.

Não tem como trafegar pelo Estado. Existem mais de cem trechos bloqueados de estradas estaduais e federais, inclusive a BR-290, totalmente parada próximo a Charqueadas. Pelo menos 11 pontes acabaram totalmente ou parcialmente derrubadas pela força da correnteza. Entre elas, a ponte sobre o Arroio Grande.

Cartão-postais como Gramado e Canela, que atraem milhões de turistas no Dia das Mães, apresentam o acesso comprometido. Governo decreta estado de calamidade pública e adota o tom apocalíptico.

Não há vida cultural, social e turística acontecendo, somente sobrevivência. Eventos, jogos, shows e espetáculos foram cancelados. Dependemos de helicópteros e frotas de barcos do governo federal para rastrear sumiço de dezenas de moradores.

Seis meses depois da última enchente, que ocorreu em setembro, com 50 vítimas, enfrentamos uma nova enxurrada, de igual potência, porém ameaçando municípios que até então não haviam sofrido sequelas. A tragédia estendeu seus tentáculos pelo nosso mapa.

Mas não se trata mais de uma crise regional, é uma calamidade de proporção internacional. Santa Maria foi a cidade que recebeu o maior volume de chuva em todo o mundo. Lideramos o top 10 da desolação.

Os resgates não são imediatos, mas operosos e duros emocionalmente. Muitos dos moradores fragilizados não dispõem sequer de mobilidade para entrar numa canoa. A atuação do Corpo de Bombeiros ainda exige preparação psicológica para convencê-los da necessária evacuação.

Há quem demonstra resistência em ser socorrido.

Idosos não querem largar sua casinha, seus pertences, seu cantinho, porque pensam que não terão vida suficiente pela frente para recuperar seus bens. Eles se sentem vencidos pelo desespero, pela miséria súbita.

Em São Sebastião do Caí, nas margens da ERS-122, km 10, apesar da sua casa submersa, um senhor quase centenário, de 96 anos, negava-se a sair. Negava-se a ouvir os apelos. Negava-se a abandonar tudo o que conquistou a duras penas. Só chorava.

Enxergamos facilmente as águas de fora, mas não enxergamos as águas de dentro, tão volumosas quanto. Os choros infindáveis de quem perdeu tudo.

CARPINEJAR

03 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

AJUDA COORDENADA

O Rio Grande do Sul passa pelo pior desastre de sua história, como bem definiu o governador Eduardo Leite e como puderam constatar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua comitiva de ministros na rápida visita ao Estado. Neste contexto de sofrimento, foi alentadora a presença do primeiro escalão do governo federal em Santa Maria, ontem, quando ficou definido um plano de ação integrado entre a União, o Estado e os municípios para socorrer os desabrigados e reconstruir a infraestrutura destruída. Em manifestação pública compartilhada por seus assessores diretos, o presidente da República garantiu que não faltarão recursos para ajudar o Rio Grande.

E precisamos muito desta ajuda. O verdadeiro dilúvio que atinge a região deixa, além de irreparáveis perdas humanas, um cenário de destruição nas cidades alagadas e na infraestrutura de serviços públicos, incluindo hospitais, escolas, estradas, transporte, água, energia elétrica e habitação. Resgates dramáticos registrados diariamente pelas forças de segurança e por populares, especialmente de pessoas retiradas dos telhados de suas casas por helicópteros e barcos, dão uma ideia da dimensão da catástrofe. 

Apesar da grande mobilização de soldados, bombeiros, integrantes da Defesa Civil e voluntários, muitos deles protagonizando heroicas ações de salvamento, as operações de resgate ainda se mostram insuficientes para a necessidade e a urgência. Por isso, a atenção para com a vida humana, neste momento crucial, deve ser a prioridade de todos, do poder público e dos cidadãos.

Cabe aos governantes e às autoridades justificar a representação que receberam da população, cumprindo o que prometeram nas suas posses e os compromissos agora renovados. Nesse sentido, é impositivo reconhecer que tanto o governo do Estado quanto os prefeitos dos municípios atingidos e suas respectivas administrações vêm se esforçando para cumprir suas atribuições. Mas o trabalho dos agentes públicos precisa realmente ser organizado, para que ações dispersas não o tornem improdutivo. 

Por isso, é bem-vinda a proposta do governo federal de manter no Estado uma espécie de sala da situação, em conjunto com as autoridades locais, para que o trabalho seja coordenado e eficiente. O trabalho dos agentes públicos não se restringe a resgatar pessoas e acomodá-las em local seguro. Inclui, também, os cuidados médicos e sanitários, a alimentação e a distribuição racional das doações que chegam aos postos de coleta.

Porém, ninguém precisa ter credencial de autoridade para colaborar numa situação de crise. Cada cidadão pode fazer a sua parte. Mesmo que a pessoa não tenha meios para participar diretamente do mutirão de salvamento, ela já estará ajudando se evitar deslocamentos desnecessários e tratar da própria proteção. Este posicionamento será ainda mais efetivo se as pessoas mantiverem a calma e a sensatez, evitando corridas aos postos de combustíveis e aos supermercados, que só servem para gerar pânico e para agravar eventuais dificuldades de abastecimento.

OPINIÃO DA RBS


03 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

"Imploro por um helicóptero, pois tenho 11 famílias isoladas"

Terceira maior economia do Vale do Taquari, Arroio do Meio está embaixo d'água. Apenas duas quadras do centro ainda não foram tragadas pela correnteza do Rio Taquari. Com 22 mil habitantes, a cidade está isolada após a queda de cinco pontes e da interrupção de estradas, sendo impossível acessar Encantado, de um lado, e Lajeado, de outro.

- Não temos luz, vai começar a faltar água e comida - afirma o prefeito Danilo Bruxel.

Na noite de quarta-feira, Bruxel coordenou a retirada das famílias das áreas de risco. Por volta das 20h30min, foi para casa, no bairro Barra do Forqueta, a cerca de dois quilômetros do centro. Na manhã de ontem, não conseguiu acessar a cidade.

- Estou administrando pelo telefone. Já fizemos alguns resgates de barco, mas agora imploro por um helicóptero pois tenho 11 famílias isoladas onde não temos como chegar - diz Bruxel.

Cercado por ao menos quatro cursos d'água, Arroio do Meio viu o Rio Taquari subir dois metros acima do recorde anterior, em setembro, alcançando 38 metros. Cerca de 15 pessoas que passaram a noite ilhadas na praça central foram levadas para a Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e para a Casa de Cultura, depois que dois abrigos usados para acolher desalojados das enchentes do ano passado também ficaram alagados.

Residencial

Os abrigos foram esvaziados há duas semanas, quando 28 casas temporárias foram entregues no município. Famílias que estavam há oito meses morando de forma improvisada em uma creche e uma escola receberam residências de 21 metros quadrados cada. O residencial foi erguido em uma região elevada do bairro Novo Horizonte, a cinco quilômetros do centro.

- Passamos a noite com medo, mas aqui a água não chegou - suspira o operário Marcelo Rodrigues dos Santos, contemplado com um dos imóveis.

Muçum revive pesadelo da enchente

Cidade arrasada pelas cheias de setembro e novembro de 2023 contabiliza na semana 30 deslizamentos e 748mm de chuva

Epicentro das enchentes que devastaram o Vale do Taquari em setembro e em novembro de 2023, Muçum reviveu ontem o pesadelo de ver as ruas da cidade tomadas por uma correnteza lamacenta. Com 748mm de chuva registrados desde segunda-feira, segundo dados da prefeitura, o Rio Taquari alcançou 25m88cm, destruindo 80% da zona urbana e provocando deslizamentos em cadeia no entorno do município.

Isolados após a queda de pontes e bloqueio de rodovias, os 4,6 mil habitantes não têm como deixar a região nem receber socorro.

- Estamos com o gabinete de crise montado no hospital da cidade, que é o lugar mais alto, mas estamos encurralados - desabafa o prefeito Mateus Trojan.

Até o final da manhã, a prefeitura contabilizava 220 desabrigados acolhidos em espaços públicos e milhares de pessoas refugiadas nas casas de parentes ou amigos. A zona rural permanece isolada e sem comunicação. Não há energia elétrica nem sinal de celular na região.

Em comparação com as enchentes anteriores, choveu mais, mas em um espaço maior de tempo, sem repetir a violência mortífera. Até ontem, não havia registros de óbitos. Espremida entre o Rio Taquari e os morros que delimitam o lado oeste da Serra, Muçum registrou mais de 30 deslizamentos na semana, conforme levantamento da Defesa Civil e da Secretaria Municipal de Obras.

Desânimo

Tentando gerenciar o caos a partir de uma sala acanhada do Hospital Nossa Senhora Aparecida, único lugar com energia graças a um gerador, o prefeito resume o sentimento geral dos moradores de Muçum.

- Vamos precisar de comida, água, maquinário, gente. Precisamos de tudo, absolutamente tudo. Estávamos num momento de virada de chave, com o comércio se reerguendo, os espaços públicos sendo reconstruídos. Agora, tudo foi destruído de novo. Não consigo imaginar como recuperar a autoestima, o pertencimento, se nós mesmos não conseguimos nos motivar diante de mais um desastre natural - lamenta Trojan.



03 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Federasul compra 3 mil cobertores

No primeiro dia da campanha de arrecadação de fundos para ajudar as pessoas afetadas pelas enchentes, a Federasul conseguiu comprar 3 mil cobertores, que começarão a ser distribuídos com a ajuda da Gol e dos diretores que vivem no Interior.

Um dos vice-presidentes colocou seu helicóptero à disposição para chegar a áreas que estão isoladas.

As doações podem ser feitas pelo Pix sosrs@federasul.com.br.

Uma conta específica foi aberta no Sicredi. O número é 01299-5, agência 0116.

Cem toneladas de alimentos

Para ajudar pessoas atingidas pelas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul, a Rede de Bancos de Alimentos do RS e os Bancos Sociais da Fiergs disponibilizaram cem toneladas de alimentos à Defesa Civil Estadual. O montante equivale a 10 mil cestas básicas.

As entidades informam que os mantimentos "estão à disposição do Estado para retirada à medida que for necessário".

A dificuldade é fazer chegar ao destino, já que há várias cidades isoladas por terra.

Para ajudar, não é preciso sair de casa. Basta contribuir via Pix (CNPJ 04.580.781/0001-91), pelo site Doe Alimentos (doealimentos.com.br) ou na conta 13.000.284-4, agência 1001 do Banco Santander.

ROSANE DE OLIVEIRA

03 DE MAIO DE 2024
DANIEL SCOLA

Um avanço importante para todos

Ainda não é o ideal, o Estado precisa evoluir muito. Mas é justo reconhecer que a segurança pública evoluiu bastante nos últimos anos. Em 2018, o pior ano, o número de latrocínios (matar para roubar) chegou a incríveis 93 por ano. Naquela época, não se conhecia ninguém que não tivesse sido vítima de roubo de carro. Os bandidos roubavam até retroescavadeira. Havia criminosos presos várias vezes que continuavam roubando. Todo mundo tinha uma história traumática a contar.

Falava isso para amigos que moram na Europa e eles não acreditavam, achando que eu estava descrevendo um filme de terror. A sensação de impotência era permanente. Com a presença falha do poder estatal, proliferaram as empresas particulares de segurança privada. Com a alta de roubos de carros, os seguros aumentaram. Os bandidos eram tão ousados que assaltavam bancos em cidades pequenas e usavam os reféns como escudo para escapar. As autoridades passaram a chamar aquilo de "novo cangaço".

Para alívio geral, isso não é mais tão comum. Quase todos os indicadores de violência caíram. Houve um tempo em que a região metropolitana de Porto Alegre teve índices de homicídio iguais aos de países em guerra, como o Iraque. Hoje, o cenário ainda não é o ideal, mas pelo menos temos forças de segurança mais bem equipadas. 

Tudo começou a mudar a partir da implantação do programa RS Seguro. A ação é norteada por quatro temas cruciais para aprimorar a segurança: combate ao crime, políticas preventivas sociais, melhora do atendimento ao público e sistema prisional. É preciso entender que o crime se prolifera dentro de presídios superlotados. Quanto mais gente, melhor para os criminosos.

Além de todas essas medidas, as forças de segurança passaram a mapear as cidades com maior risco de crime e a combinar inteligência e integração das polícias para encarar em melhores condições esta guerra. Melhores armas, melhores viaturas, mais equipamentos de proteção, melhores instalações e , claro, salários melhores. A motivação financeira é um estímulo fundamental para aqueles que arriscam a vida por nós. É bem provável que o ideal seja inalcançável. Mas estamos avançando e isso é uma ótima notícia para todos nós.

DANIEL SCOLA


03 DE MAIO DE 2024
NFORME ESPECIAL

Com o coração na lente da câmera

Jornalistas que atuam em veículos de comunicação estão acostumados, por dever de ofício, a lidar com situações extremas. É o caso de Jeff Botega, que você vê na imagem acima, captada pelo repórter Lucas Abati, em Encantado, no Vale do Taquari.

Fotojornalista multipremiado, Jeff já cobriu muitas tragédias e viu de tudo em 28 anos de Grupo RBS. Ontem, ele chorou.

Com a câmera nas mãos, Jeff embarcou no helicóptero comandado pelo tenente-coronel Ingo Lüdke, do Corpo de Bombeiros Militar do RS. De dentro da cabine, testemunhou o esforço da equipe para salvar famílias ilhadas em Lajeado.

Ao contar a história na Rádio Gaúcha, ele não se conteve. A voz embargou. Chamei meu amigo no Whats para conversar.

- Foi uma das pautas mais tristes que já fiz - contou ele.

Jeff viu mãe e filhas no telhado de casa, pedindo ajuda, e percebeu a aflição do comandante, tentando ajudar, apesar das más condições de voo. O drama teve final feliz, mas a verdade é que ninguém - ninguém mesmo - sai ileso de uma catástrofe.

Mais do que apoio emergencial

Com cidades submersas, perdas irreparáveis e mais de 150 trechos viários bloqueados nos últimos dias, o Rio Grande do Sul vai precisar mais do que socorro emergencial da União. O compromisso assumido ontem, em Santa Maria, pelo presidente Lula - de que não faltará dinheiro para a reconstrução - foi um alento.

A dúvida é: será na velocidade necessária?

O que vimos depois da tragédia no Vale do Taquari, em 2023, não foi exatamente isso. A burocracia estatal (na origem, uma forma de proteção ao erário, para evitar desvios de recursos públicos) travou o que deveria ser urgente.

Agora, vivemos tudo outra vez, só que em escala ainda maior e sem trégua.

O governador Eduardo Leite não exagerou quando definiu a atual catástrofe climática como a pior da história do Estado (até aqui, se nada for feito).

Alvo de críticas de adversários políticos, Leite pode (e deve) ser cobrado por suas ações, mas agiu certo ao usar todos os meios possíveis (inclusive as redes sociais) para chamar a atenção de Lula. Ainda que o presidente jamais tenha se negado a atendê-lo, a situação pedia isso. Foi, também, uma forma de alertar o Brasil sobre o que enfrentamos no extremo sul de um país continental.

Não foi um evento climático qualquer. Estradas sumiram do mapa, pontes foram arrastadas, municípios ficaram isolados, pessoas morreram. A prioridade é resgatar vidas, mas o pesadelo, infelizmente, não vai terminar tão cedo, e o governador sabe disso.

JULIANA BUBLITZ

quinta-feira, 2 de maio de 2024


02 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Afogados nas próprias lágrimas

Uma das passagens mais assustadoras de Alice no País das Maravilhas centra-se em dois momentos sucessivos da narrativa imortal de Lewis Carroll: a personagem cresce sem parar, assusta-se com a sua súbita altura de edifício e começa a chorar; em seguida, diminui de tamanho e, transformando-se em uma miniatura de si mesma, acaba por se afogar nas lágrimas que verteu quando estava gigante.

Nosso desespero depende do que fazemos quando estamos por cima. Gotas de desleixo e indiferença podem virar oceanos na hora em que nos encontrarmos por baixo. Podemos nos afogar, assim como Alice, em nossas lágrimas.

Não dá para dizer que estamos suficientemente calejados, previdentes e conscientes das catástrofes climáticas que acometem o Estado de forma selvagem e sequencial nos últimos dois anos, mas melhoramos na sobrevivência.

Os avisos intermitentes dos serviços meteorológicos, a evacuação de residências ribeirinhas pela Defesa Civil com o toque pela madrugada de sirenes, o alojamento de moradores de terrenos críticos em ginásios, amparados com agasalhos, alimentação e donativos, e o controle rodoviário com bloqueios na estrada, em especial na Serra, pouparam existências com uma agilidade jamais vista antes.

Avançamos na cobertura dos danos. Entendemos os riscos de uma calamidade social com um volume pluviométrico de um mês - precipitação acumulada de 300 milímetros - acontecendo em apenas um dia.

Tanto que eventos e shows foram cancelados sem protesto, e o embate entre Inter e Juventude pela Copa do Brasil, previsto para o Beira-Rio, foi suspenso com o acordo tácito das partes.

Já existe uma aceitação das dificuldades, um discernimento público da gravidade dos alagamentos e deslizamentos de terra, um consenso em torno do socorro aos flagelados e de forças-tarefas para contornar rompimento de pontes e ilhamento de cidades.

Não mais nos espantamos com a força temperamental da natureza, com o desequilíbrio ecológico (mesmo que sempre lamentemos os danos), porém nos encontramos um passo atrás do ideal, que é nos mostrarmos soberanamente preparados para a súbita elevação dos rios, incorporando espontaneamente uma postura de abrigo antitragédia. Toda mobilização hoje é no sentido de salvar vidas. Respiraremos aliviados ao atingir o patamar de proteger vidas com antecedência. 

Só teremos tranquilidade quando não mais testemunharmos moradores se segurando no tronco de árvores para lutar contra a correnteza, ou buscando sair desesperadamente das janelas dos carros, ou acenando para helicópteros em cima dos telhados das suas casas submersas, ou soterrados, mantendo um fio de respiração e voz, debaixo de escombros. São cenas de que esperamos a extinção.

Pois uma vida perdida ainda é um universo inteiro, uma parte essencial da comunidade. Enquanto não zerarmos as mortes, não nos mostraremos devidamente escolados para o enfrentamento dos ciclones e tempestades.

Eu estava nos Estados Unidos com a família quando um terremoto de 4,8 de magnitude atingiu a região de Nova York, no dia 5 de abril deste ano. Vimos na metrópole americana um exemplo de organização contra tragédias ambientais.

Todos que se localizavam na área do sismo receberam, ao mesmo tempo, um alerta do tremor por SMS. Havia uma sincronia no movimento de defesa, pedindo que tivéssemos prudência e seguíssemos as orientações de resguardo numa nova oscilação. Espero um dia acompanhar essa proeza coletiva: os celulares dos gaúchos soando, simultaneamente, uma advertência de temporais. Para ninguém mais ser pego de surpresa.

CARPINEJAR

02 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

GRAVIDADE EXTREMA

As previsões meteorológicas para os próximos dias são verdadeiramente alarmantes e precisam ser consideradas por todos os gaúchos. O Rio Grande do Sul está vivendo um momento tormentoso de sua existência: inundações sem precedentes, um número crescente de mortes, populações inteiras desabrigadas, cidades alagadas, estradas interrompidas, pontes destruídas, solo encharcado e deslizamentos de encostas, uma verdadeira calamidade pública de proporções inimagináveis. Nesse contexto quase apocalíptico, nada pode ser mais importante do que a preservação de vidas.

Por isso, é também um momento de desarmamento de espíritos. Não contribui em nada, neste momento de aflição, ficar procurando culpados, como já se percebe em algumas manifestações inconformadas, especialmente nas redes sociais. Estamos todos no mesmo barco, lutando contra uma armadilha da natureza. Todos sabemos que o ser humano é, em grande parte, responsável pelo desequilíbrio climático, como já comprovaram fartamente estudos científicos sérios. 

O mundo está consciente disso. Governantes de todos os continentes vêm se reunindo periodicamente em conferências sobre o clima com o propósito comum de buscar soluções para o aquecimento planetário, para o desmatamento e para os desequilíbrios que ameaçam a humanidade.

Também é verdade que os avanços são lentos e que tem sido difícil superar a resistência dos países poluidores e do sistema de produção predatório que ainda é predominante nas nações mais desenvolvidas. Mas esse é o desafio de sempre. 

Não é agora, em meio a um desastre que a cada hora assume proporções mais aterradoras, que poderemos alterar o rumo da economia ou punir eventuais responsáveis. Vamos, primeiro, lutar pela sobrevivência das populações mais vulneráveis. Nesta semana trágica, gaúchos e brasileiros precisam, antes de qualquer coisa, unir esforços para enfrentar a catástrofe que desaba sobre o Estado.

E esse enfrentamento precisa ser feito muito mais com colaboração e trabalho do que com postagens acusatórias. Basta observar os noticiários dos meios de comunicação para se constatar que as autoridades públicas, em todos os níveis, estão comprometidas com o resgate das populações atingidas. A crescente onda de solidariedade, que inclui o envolvimento direto de pessoas no socorro aos flagelados e as doações para os desabrigados, também comprova que a maioria dos gaúchos já se deu conta da real dimensão do problema.

Até em respeito às vítimas e ao heroico envolvimento de anônimos na tarefa mais difícil, é preciso deixar a indignação para depois. Primeiro, vamos salvar vidas e nos salvar. Quem puder colaborar com os outros, que pelo menos procure se preservar de riscos, evite viajar, evite sair de casa quando não houver necessidade, pelos menos até que os riscos cessem. Não se trata de conformismo, mas, sim, de racionalidade.

O Rio Grande vive uma situação de gravidade extrema e precisa de todas as mãos, todas as vontades e todas as orações para atravessar essa correnteza de infortúnios e retomar a normalidade. Aí, sim, poderemos apurar responsabilidades por erros e buscar as devidas correções.


02 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Moradias e esperanças arrasadas

Elevação do nível do Rio Pardinho, no Vale do Rio Pardo, atinge residências, mata gado e interrompe ligações na região

As palavras saem aos solavancos e o choro toma conta de Márcia Jost ao descrever tudo que perdeu nos últimos dois dias. Dona de um sítio em Rio Pardinho, distrito de Santa Cruz do Sul, a agricultora viu as águas encorpadas pelo dilúvio que se abateu no Vale do Rio Pardo levarem de roldão seus bens acumulados em 51 anos de vida. Foram vacas leiteiras (que tinham nome, como é costume no campo), roupas, um automóvel Santana depredado pelo aguaceiro, o resfriador de leite. E a luz, sem a qual a vida no meio rural se torna inviável.

Afinal, o tambo depende da eletricidade para manter resfriado o leite retirado dos animais. Pois Márcia e seus familiares perderam vacas, equipamentos, silagens (pasto preparado para os meses de carência do inverno) recém ajeitadas para os animais e, claro, a maior parte dos bens da casa.

As águas do Rio Pardinho (que dá nome ao distrito) foram até o teto da residência, com pé-direito de quatro metros de altura. Arrasaram camas, sofás, cobertas, roupas. Tudo encharcado, enlameado, algumas arrastadas e sumidas. Os telhados desabaram, as cercas foram demolidas como gravetos, árvores foram parar nas hortas, destruindo verduras e legumes que tinham sido cuidadosamente cultivados.

- É muita tristeza. Dá vontade de desistir de tudo. Morei a vida toda aqui e nunca vi um desastre assim. Nem meus pais. O tambo de leite tá arrasado. Nem sei como vamos recomeçar - lamenta Márcia.

Rio Pardinho fica a meio caminho entre o núcleo urbano de Santa Cruz do Sul (principal cidade do Vale do Rio Pardo) e o vizinho município de Sinimbu, arrasado pelas tempestades. A ligação entre as duas localidades está totalmente interrompida pela enchente, depois de 24 horas em que as águas iam e vinham, dando um pouco de vazão ao tráfego. O veículo de ZH, uma caminhonete com tração nas quatro rodas, passou por dois pontos alagados, mas não conseguiu vencer um terceiro trecho em que a estrada virou uma cachoeira, com correnteza que levava troncos de árvore de arrasto.

Sinimbu, que fica numa serra acima de Santa Cruz do Sul, está ilhada. O último ponto transitável é próximo à residência de Vanderlei Jaeger, 59 anos, bancário aposentado, que mora no interior de Rio Pardinho. Ele diz que seus familiares chegaram na região em 1919 e jamais viram enchente como essa, que interrompesse totalmente o tráfego de veículos até Sinimbu.

- Temos três córregos aqui na Linha São João. Viraram rios furiosos, arrastando tudo que encontram pela frente. Estamos sem luz, sem telefone, sem internet - relata.

Apelo

Vizinho de Jaeger, o agricultor Arno Haas reforça o ineditismo do desastre ambiental vivido na região e pede ajuda.

- Ainda temos ligação com Santa Cruz, mas o pessoal que está mais no interior está ilhado. As autoridades precisam mandar mais helicópteros. Tem gente que nem sabemos se está viva ou morta - apela, com olhar entristecido.

Pelo menos oito pessoas estavam desaparecidas no Vale do Rio Pardo. E outras, incomunicáveis, sem que se soubesse seu destino.

HUMBERTO TREZZI

02 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Sob maior potencial de estragos

Localização e persistência das chuvas na faixa central do Rio Grande do Sul amplificam a destruição de pontes e estradas

Uma peculiaridade da chuva torrencial registrada nos últimos dias no Rio Grande do Sul agrava a preocupação de autoridades e da população: o elevado potencial de destruição e de bloqueio de estradas e pontes, o que levou ao isolamento de comunidades inteiras e dificulta a circulação entre algumas das principais cidades, como Santa Maria.

O estrago foi mais intenso e generalizado do que o testemunhado na grande enchente de setembro do ano passado, por exemplo, que assolou o Vale do Taquari e deixou mais de meia centena de vítimas. O alto grau de dano material visto agora se explica principalmente pela localização do epicentro das precipitações e pela característica "quase estacionária" do sistema meteorológico que atinge o Estado e supera a resistência das obras de engenharia. Há o risco de que os prejuízos se intensifiquem devido à continuidade do mau tempo hoje.

Em setembro, as chuvas mais fortes se concentraram nas cabeceiras dos rios das Antas e Taquari, no Extremo Norte. A enxurrada desceu o vale inundando cidades inteiras ao longo do caminho, mas foi mais localizada. Agora, conforme o doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental Fernando Dornelles, o mau tempo se abate sobre ampla faixa central do Estado, onde há tanto uma grande concentração de córregos e rios, como o Jacuí, o Pardo e o Caí, quanto vasta malha de vias municipais, estaduais e federais e farta infraestrutura de pontes por se tratar de zona mais urbanizada.

- Tivemos grandes volumes de chuva em pouco tempo nessa região mais média do Rio Taquari e nas sub-bacias do Forqueta, do Guaporé, também do Jacuí. Isso fez com que bueiros e pontilhões fossem levados por causa da erosão provocada pela água nas suas bases. O número de estruturas danificadas foi maior porque se trata de uma região mais densamente ocupada - avalia Dornelles, que também é professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Santa Maria foi um dos municípios mais atingidos: a chuva comprometeu pelo menos 11 pontes e provocou danos em acessos fundamentais como a RS-287, a BR-158 e a BR-392. Além disso, problemas em adutoras chegaram a deixar 70% da cidade sem abastecimento de água. Outras localidades como Candelária e Caxias do Sul também apresentaram transtornos significativos de infraestrutura relacionados ao mau tempo, incluindo quedas de barreiras e deslizamentos.

Sucessão

Além de ter desaguado sobre uma zona mais sensível, a sucessão de tempestades trouxe volumes de chuva em níveis raramente vistos. Muitos locais registraram graus de precipitação três vezes superiores à média prevista para todo o mês de abril - em Segredo, no Vale do Rio Pardo, a medição indicou o acúmulo de 321 milímetros em apenas 24 horas, por exemplo.

O engenheiro ambiental e também professor do IPH da UFRGS Fernando Fan teme que os mais recentes prognósticos confirmem agravamento maior da situação.

- Com a continuação da chuva no sentido da bacia do Rio Taquari, os modelos estão sugerindo a ocorrência de cheias ali da ordem do que ocorreu ano passado. Confirmadas as previsões, creio que estaríamos diante do maior desastre dos últimos anos - alerta Fan.

MARCELO GONZATTO

02 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Leite diz que RS vive pior desastre da história e faz apelo a moradores

Governador anunciou suspensão temporária das aulas na rede estadual e pediu à população que deixe as áreas de risco

As chuvas que atingem o Rio Grande do Sul desde o começo da semana provocam o maior desastre climático da história do Estado, projetou o governador Eduardo Leite ontem. Leite afirmou que os estragos da crise atual vão superar o impacto das enchentes de setembro do ano passado, que provocaram 54 mortes e devastaram municípios, principalmente no Vale do Taquari.

Em entrevista coletiva na sede da Defesa Civil, o governador pediu que a população que vive perto de rios, em morros, encostas ou em outras áreas de risco em 48 municípios deixe imediatamente suas casas para evitar risco à vida (veja a lista das cidades abaixo).

O governador explicou que a tempestade atinge um número maior de municípios, na comparação com a enchente do ano passado, e que os resgates de pessoas isoladas está sendo prejudicado em razão da continuidade da chuva. Por isso, o número de mortes tende a aumentar. Ele classificou o cenário como de guerra e fez apelo por ajuda federal.

- Veremos ainda um aumento nos níveis dos rios. É crucial que as pessoas se protejam e busquem abrigo em locais seguros, longe do perigo das inundações. Também pedimos que tomem cuidado com locais de encostas, onde pode haver deslizamentos devido ao encharcamento da terra - disse.

Leite anunciou a suspensão das aulas em toda a rede estadual e alertou que há risco de rompimento da barragem 14 de julho, da Ceran, que fica entre Cotiporã e Bento Gonçalves, na Serra.

O governador afirmou que a devastação na infraestrutura viária e na estrutura dos municípios superará a da enchente de setembro.

Até o final da tarde, 913 pessoas já haviam sido resgatadas pelas forças de segurança, a despeito das dificuldades dos helicópteros do governo do RS em chegar aos pontos isolados. Leite ainda relatou ter conversado por telefone com o presidente Lula.

Além da rede estadual, as aulas foram suspensas, hoje, nas redes municipais de ensino de Porto Alegre, Canoas, Cachoeirinha e São Leopoldo. Já em Santa Maria, Gravataí e em Eldorado do Sul, as aulas foram suspensas até sexta-feira.

PAULO EGÍDIO


02 DE MAIO DE 2024
TULIO MILMANN

O que estamos pedindo

Os 10 mortos e os 15 feridos no incêndio na Pousada Garoa, em Porto Alegre, acionaram, novamente, um conhecido mecanismo de reação imediata: buscar culpados. Eles existem e devem ser apontados, sem dúvidas. Porém, antes que as enchentes e o próximo escândalo apaguem o calor desse assunto, nos cabe aprofundar outros aspectos dessa tragédia inaceitável, porque era fácil evitá-la. Bastaria que cada um fizesse a sua parte.

Como princípio teórico e filosófico, acredito que a fiscalização nada mais é do que um mal necessário. No fundo, quando clamamos pela intervenção do poder público em algo que não precisaria dele, estamos confessando a nossa própria incompetência. Mais do que culpa, devemos analisar a dinâmica. Vejo um excesso de peso no tema "fiscalização", como se ela fosse imprescindível para que cada indivíduo, seja ele o dono da pousada ou um agente público, agisse da forma correta, que é definida, primeiro, por valores morais e éticos e, depois, pelas leis.

A fiscalização é o nosso bode expiatório. O motorista trafegava a 160 km/h e causou um acidente. A obra desmoronou porque foi mal construída. Não havia extintor e pegou fogo. Uma senhora de 90 anos caiu em uma calçada mal conservada e se machucou. O que pedimos? Fiscalização, fiscalização, fiscalização, fiscalização. Quem acredita na capacidade e na responsabilidade do indivíduo, deveria apontar o dedo para outro lado.

Não quero aqui parecer romântico e utópico. A certeza de punição diante do erro grave é parte fundamental do processo educativo. Nós, humanos, precisamos disso. É claro que, pela natureza do serviço prestado e pelo uso de recursos públicos, a prefeitura precisa dar explicações, e muitas. Meu questionamento, porém, é sobre a quantidade de cada ingrediente, e não sobre a receita. Se não nos questionarmos sobre isso, em breve estaremos aplaudindo um Estado cada vez mais invasivo, controlador e onipresente. Não é essa a função desse ente necessário, que nos representa, mas não deve nos oprimir.

Quando pedimos mais e mais fiscalização, estamos avisando que somos incapazes de nos organizar, de nos respeitar e de conviver. Nesse momento, para mim, existe uma pergunta fundamental, baseada nas informações disponíveis: por que o dono da pousada, que deveria conhecer a realidade e os riscos como ninguém, não fez o que deveria ser feito para evitar a tragédia? Alegar a certeza de que a fiscalização era deficiente é a parte menos importante da resposta.

TULIO MILMAN

quarta-feira, 1 de maio de 2024


01 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Rodrigo e Bibiana barrados no Municipal

Eu já tirei várias fotografias na escadaria interna do Theatro Municipal de São Paulo, um dos postais da capital paulista. É um costume de todos os turistas que passam pelo templo arquitetônico inspirado na Ópera de Paris, inaugurado em 1911, encravado na Praça Ramos de Azevedo. Aquele lugar exala história e cultura. Lá eclodiu a Semana de Arte Moderna, o marco inicial do modernismo no Brasil. Lá lendas se apresentaram, como o tenor italiano Enrico Caruso, o bailarino russo Rudolf Nureyev e a diva do jazz americano Ella Fitzgerald.

Mas um casal de Camaquã foi barrado e constrangido a não fazer selfies no local por "usar fantasia". Na verdade, Wendell Coelho e Pati Viegas vestiam a pilcha, a nossa roupa tradicional. O episódio ocorreu no último sábado.

Eles não portavam equipamento profissional que pudesse depender de autorização, como câmera, refletores e rebatedores, somente seus celulares.

Para entrar no recinto, suportaram a fila pacientemente, entre ingleses, americanos e brasileiros, muitos com camisetas de futebol. Quando se dirigiam para a aguardada pose no tapete vermelho, estendido em glamourosos degraus, receberam a interceptação de funcionária:

- Não pode fazer fotografia com fantasia. Wendell tentou argumentar: - Não é fantasia. Você não viu o BBB? O vice-campeão Matteus Amaral circulava na casa com a vestimenta. - Aqui é uma fantasia! - ela rebateu.

A questão é que o casal formado pela prenda típica e o bagual de bombacha, para o desconhecimento regional dos funcionários do saguão, não estava produzindo um book fantasiado. Registrava simplesmente a sua passagem por São Paulo, na condição de gaúcho, assim como fez em Salvador, Rio de Janeiro e Ouro Preto, lugares que visitou antes sem nenhuma censura ou estranhamento.

A indumentária não era um figurino de época, com peças do cabide da minissérie O Tempo e o Vento. A dupla não reencarnava o capitão Rodrigo Cambará e Bibiana Terra, célebres personagens de Erico Verissimo.

Exibia roupas praticadas no Estado, comuns em qualquer cidade da Campanha, roupas que até viraram decreto de lei, alçadas ao patamar de "traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do Sul" pela Lei 8.813, de 1989, da Assembleia Legislativa do Estado. Um dos artigos, inclusive, admite o seu emprego em substituição aos ternos escuros e vestidos longos de festa em atos oficiais.

A restrição intempestiva e desinformada não faz jus a uma abordagem oficial na capital mundial do multiculturalismo. Wendell e Pati são um orgulho de nossas raízes. Ficaram em segundo lugar no Festival Internacional de Folclore, Rimini Fest, na Itália, em junho de 2023 (somente atrás de um dueto da Ucrânia), com uma coreografia que reunia vários ritmos gaudérios: xote, chico sapateado, milonga, chamamé.

Tanto que aproveitaram o giro pelo mundo para dançar em pontos turísticos de nove países da Europa e divulgar o tradicionalismo.

Enquanto realizavam a versão nacional de suas andanças de bota e sapatilha, houve esse sobressalto. Eu fico imaginando: e se o par começasse a dançar chula no Theatro Municipal? Seria preso?

CARPINEJAR

A CATÁSTROFE E A MOBILIZAÇÃO

No momento em que o Rio Grande do Sul está sendo atingido por uma catástrofe climática sem precedentes em sua história, com volumosas precipitações pluviométricas em pouco tempo, cidades inundadas, habitações destruídas e tragédias humanas, mais uma vez o espírito de luta e de solidariedade do povo gaúcho aparece como fator de superação. 

Desta vez, as pessoas foram menos surpreendidas do que em setembro do ano passado, quando um ciclone atingiu o Vale do Taquari e provocou mortes e destruição. Nesta semana, graças aos alertas dos serviços meteorológicos, amplamente divulgados pelos meios de comunicação, e à mobilização rápida das autoridades e da Defesa Civil, muitas vidas estão sendo salvas.

Mas a tempestade ainda não passou. De acordo com os especialistas em clima, nas próximas horas o Estado ainda corre o risco de ser atingido por chuva intensa, vendaval, granizo e raios. Por conta desta anormalidade, em dezenas de municípios gaúchos, a população está sendo desalojada de suas casas e precisando de abrigo, alimentação e apoio. Portanto, a hora é de ação, de salvar vidas, e toda ajuda é bem-vinda.

Neste contexto de preocupações, serve de alento constatar que algumas lições de tormentas passadas parecem ter sido aprendidas. Algumas, inclusive, estão sendo bem aplicadas. Pelo que se sabe, em várias áreas de risco, as sirenes tocaram na madrugada, alertando os moradores sobre a subida repentina dos rios. Em outras, as autoridades municipais promoveram ações preventivas, retirando as pessoas de locais críticos e encaminhando-as para abrigos. 

Ao mesmo tempo, uma imensa rede de solidariedade começa a se formar nas comunidades, com vizinhos, amigos, parentes e até desconhecidos colocando-se à disposição para socorrer e dar proteção aos desabrigados. O Rio Grande da solidariedade é sempre mais forte do que seus percalços.

Porém, embora seja prematuro passar à próxima etapa quando esta ainda nem foi superada, cabe lembrar que nem todas as lições de desastres passados foram assimiladas. Uma delas é a dificuldade dos administradores públicos para evitar que habitações irregulares se instalem em áreas de risco. Os habitantes dessas áreas periféricas, que na maioria das vezes não têm outro lugar para morar, costumam ser os primeiras atingidos por alagamentos e deslizamentos de terra. 

Também é atribuição do poder público zelar pela infraestrutura das cidades e das estradas. Pontes que não resistem à correnteza, asfaltos que se desintegram, estradas interrompidas por pedras e árvores, esgotos que entopem, barragens que transbordam, tudo isso pode ser colocado na conta de gestores que se descuidaram da qualidade e da manutenção de suas obras.

Mas, neste momento de urgência, parece-nos mais adequado focar os acertos e as providências que estão sendo adotadas em vários pontos do Estado para atenuar o sofrimento da população atingida. Mais uma vez, os gaúchos estão sendo desafiados a lutar e a resistir. Bravura nunca nos faltou. Por isso, não é hora de apontar culpados nem de lamentar a má sorte. É, isto sim, mais uma oportunidade para o Rio Grande mostrar que sempre cresce na adversidade. 


Segredo é se manter ativo na terceira idade

Afazeres auxiliam a preservar a motivação após a aposentadoria

Planeta Terra, universo, física, matemática, tabela periódica. A cada dia, o expediente de Angela Maria Vega Coelho, 70 anos, começa em um setor e com um tema diferente. Ela apresenta dinossauros, brinca com espelhos, acomoda-se no chão para contar histórias para crianças.

Há sete meses, a psicóloga aposentada circula pelos três andares do Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) naquele que garante ser o emprego dos sonhos. Entre mais de mil candidatos, Angela foi uma das selecionadas para as quatro vagas de atendente de museu do programa Genial Idade, destinado a pessoas a partir de 65 anos. Cumpre quatro horas diárias, de terça-feira a sábado, com salário, carteira assinada e benefícios.

- Tenho o maior orgulho. Me formei aqui - conta, mostrando o crachá que leva no peito.

Durante a carreira profissional na psicologia, Angela manteve consultório e depois trabalhou em uma empresa. Estava aposentada havia nove anos quando soube da oportunidade no museu. Pediu ajuda para a filha para ajeitar o currículo e se submeteu a uma seleção, que incluiu um depoimento em vídeo.

- Ficava mais em casa, mas não é o meu perfil ficar parada. Aqui tem duas coisas de que gosto: pessoas e conhecimento - diz Angela, feliz por ter sido bem aceita pelos colegas, na casa dos 20 anos. - Não tive dificuldades com o grupo, eles me aceitaram. Pedi que não me chamem de dona Angela - acrescenta, rindo.

Diversificar a faixa etária dos colaboradores estava entre os objetivos da administração.

- Entendemos que, para a natureza da atividade, a diversidade geracional seria válida. Nosso programa não visa à caridade. Acreditamos, e isso está se provando, que seria positivo para a equipe e para o visitante. São pessoas com mais paciência e mais conhecimento - justifica o diretor da instituição, Marcus Klein.

Manter-se ativo na terceira idade é uma iniciativa que beneficia fortemente a esfera cognitiva do indivíduo. Priscila Abiko, médica geriatra do Hospital Edmundo Vasconcelos, de São Paulo (SP), destaca que ter interação social e compromissos a cumprir diminui a ocorrência de demência e também a progressão da demência já instalada.

- O fato de se sentir útil, ter um papel na sociedade, reduz depressão e ansiedade, que são causas de demência e perda de memória - complementa Priscila.

Planos

Simone Scremin, psicóloga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, também ressalta a importância dessa sensação de utilidade para evitar ou aplacar o sofrimento emocional. Manter os papéis desempenhados na família e em uma atividade laboral, mesmo que não seja com o mesmo desempenho e a dedicação de antes, é fundamental para que o idoso não se sinta um peso para quem o cerca.

- Quando temos objetivos, planos, metas a alcançar, a tendência é a gente estar melhor psiquicamente. Às vezes, a cabeça está superbem, mas o corpo não alcança mais, então tem que adaptar, ressignificar as coisas- afirma Simone.

Segundo a psicóloga, o apoio dos familiares é fundamental.

- Talvez não seja todos os dias, mas que tenha uma atividade duas ou três vezes por semana: exercício, clube de melhor idade, chamar amigos, jogar carta. (...) Se for um quadro mais deprimido, talvez precise de avaliação e medicação. A família tem que estar junto, acompanhar - acrescenta Simone.

Praticar atividade física regular também é fundamental, pontua a médica Priscila Abiko. Exercícios reduzem o risco de eventos cardiovasculares, como infarto e acidente vascular cerebral (AVC), e o de quedas, além de proteger os ossos. Tarefas diárias como limpeza da casa e passeio com o cachorro são positivas, mas o ideal é realizar atividades programadas, com duração mínima de 150 minutos semanais, orienta a geriatra. 



01 DE MAIO DE 2024
pOLÍTICA +

Hospitais aceitam negociar com IPE

O presidente da Federação dos Hospitais do Rio Grande do Sul, Cláudio Allgayer, refuta a hipótese de que as instituições que suspenderam o atendimento aos segurados do IPE Saúde estejam fazendo chantagem.

Allgayer garante que os hospitais não querem compensar no superfaturamento dos medicamentos o que perderam com a mudança na forma de remuneração: - Queremos que isso seja repassado para diárias e taxas, cobrindo os custos.

O governo diz que aceita negociar a valorização dos serviços, desde que dentro do orçamento e da razoabilidade.

Além das despesas ordinárias e da pressão dos servidores por reajuste, o governo estadual terá novos gastos fora das previsões com a chuvarada que está destruindo estradas e pontes, e com o atendimento às famílias atingidas pela enchente.

Prejuízo certo para consumidor

O consumidor vai sentir no bolso o efeito do corte dos incentivos fiscais, porque nenhum empresário vai deixar de repassar o que perder com a supressão de benefícios.

A partir de hoje, com o corte de benefícios, devem ficar mais caros produtos como pão, leite, carne, arroz, feijão, farinha, e erva-mate. Em janeiro de 2025, frutas, legumes e hortaliças, hoje isentos de impostos, passarão a pagar ICMS.

Nos últimos meses, empresas que perderão benefícios ameaçaram deixar o Rio Grande do Sul, alegando perda de competitividade. A novela do ICMS não termina hoje. Terá novos desdobramentos nos próximos meses, com o possível retorno da discussão após as eleições.

ROSANE DE OLIVEIRA

01 DE MAIO DE 2024
MÁRIO CORSO

Pecados de Portugal

Semana passada, sem dizer como, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, disse que o país precisaria reparar os crimes da escravidão. Seria um primeiro passo, o segundo seria perguntar o preço que o país pagou por essa trágica escolha.

Resumo das palavras de um português do século 18, António Ribeiro Sanches, no seu livro Cartas Sobre a Educação à Mocidade, de 1759. Intelectual que, por suas ideias, abandonou o país e nunca retornou.

Para Sanches, a escravatura era uma tragédia moral e um erro estratégico. O uso desse modelo desumaniza o escravo, ao mesmo tempo que embrutece e estupidifica seus amos. Portanto, seria impossível educar os jovens - esse era o intuito de seu escrito - no cultivo das virtudes da humanidade, do senso de justiça, se eles estavam anestesiados pela bestialidade infligida aos escravos.

Economicamente, a escravidão teria criado um ânimo venenoso na comunidade, tornando os brancos soberbos, indolentes e incapazes. Com a mão de obra mais barata possível, o dinheiro chegando fácil das colônias, o reino pôde escolher não se educar. Enquanto a Europa alfabetizava-se e industrializava-se, Portugal comprava de seus vizinhos novos bens, sem entender sua tecnologia. Além disso, corroeu-se o valor do trabalho, afinal, isso seria coisa de escravo.

Em síntese, um modelo econômico errado construiria uma sociedade errada e, por consequência, um modelo educacional errado. A escolha por uma riqueza a curto prazo condenaria o país, a longo prazo, a um empobrecimento moral, intelectual e econômico.

A velha piada que dizia que a vantagem de Portugal era ser perto da Europa subentendia a profecia de Sanches. Eles perderam o bonde da industrialização europeia.

Infelizmente, incorporamos o modelo. O Brasil, embora não goste de reconhecer, é filho de Portugal, na soma de suas virtudes e vícios.

Quando vejo, num supermercado, uma pessoa com o olhar bovino, esperando que alguém empacote o que acabou de comprar, enxergo a raiz da dificuldade de fazer algo manual. Ela espera que algum serviçal faça isso por ela. O trabalho, por menor que seja, avilta tais pessoas.

Crimes custam caro a todos, ainda não sabemos o caminho para sair dessa armadilha, nem como, principalmente, reparar o mal causado.

PS: Soube de Sanches pelo historiador português Rui Tavares, no seu podcast Agora, Agora e mais Agora, confira, é deveras instrutivo.

MÁRIO CORSO


01 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Novo prédio no Hospital Moinhos

Com investimento estimado em R$ 150 milhões, o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, está construindo um novo edifício (veja acima a projeção de como ficará quando estiver pronto).

O espaço terá 33 leitos de UTI, 20 leitos de internação, dois andares destinados ao Centro de Material Esterilizado e quatro salas de hemodinâmica (procedimentos cardiológicos minimamente invasivos). A expansão, segundo Mohamed Parrini, à frente da instituição, vai duplicar a capacidade instalada do complexo hospitalar, que oferece atendimento privado e via convênios. O acesso ao novo prédio será pelas entradas tradicionais, nas ruas Ramiro Barcelos e Tiradentes. As obras já começaram.

A estrutura deve ser entregue no primeiro semestre de 2025, mas a previsão é de que os leitos de internação estejam disponíveis antes disso, ainda neste ano.

A novidade faz parte do plano de Parrini de transformar o Moinhos - que conta, hoje, com 485 leitos - em referência no Brasil. O assunto foi inclusive tema de reportagem na revista Exame, em abril.

Aos negacionistas climáticos

Mais de 300 milímetros de água despencaram sobre o Rio Grande do Sul em apenas 24 horas, o triplo do volume de chuva previsto no mês. Rodovias e pontes cederam com as enxurradas. Vidas foram perdidas. Comunidades ficaram ilhadas, muitas delas na região onde nasci, o Vale do Rio Pardo.

Durante todo o dia, ontem, recebi fotos e vídeos de amigos e parentes assustados com a violência da natureza. O que era um riacho perto da casa dos meus pais, em Santa Cruz do Sul, se transformou em um rio barrento e nervoso. No interior, conhecidos ficaram presos, sem ter como se deslocar, porque a água levou a estrada. Não é força de expressão.

E o pior, infelizmente, ainda está por vir, segundo os meteorologistas - que, dessa vez, acertaram em cheio as previsões. Quem dera, eles tivessem errado. Quem dera...

Não bastasse toda a desgraça em curso, ainda tem gente fazendo troça da emergência climática. Ou politizando um assunto que deveria passar longe das discussões ideológicas rasas, que morrem em si mesmas.

O colapso do planeta não é de direita nem de esquerda. Estamos testemunhando, mais uma vez, o inferno (ou dilúvio) que nós mesmos criamos, ao apostar no progresso a qualquer custo. A história ambiental mostra, com fartos exemplos, como chegamos até aqui, e a ciência - que também é resistência - já indicou o caminho para evitar o ponto de não retorno.

Quando vamos acordar?

JULIANA BUBLITZ

terça-feira, 30 de abril de 2024


30 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

O desamparo da infidelidade

Quem trai nunca diz toda a verdade. Esta é a verdade que não se comenta. Ele conta somente parte da história, a parte mais inofensiva, mais aceitável do envolvimento paralelo.

Há uma edição da narrativa para evitar conflitos maiores e constrangimentos morais. O infiel não esclarece quantas vezes saiu com o outro, quantas viagens bancou, quantos passeios realizou, quantos programas românticos executou na surdina, quantos presentes ofereceu, quantas confissões partilhou, onde se encontravam e em quais horários.

Não descreve minúcias e detalhes da escapada. Mal fala da terceira pessoa. Mantém os rumores sufocados no silêncio. Se tudo fosse dito de uma vez por todas, o ódio conheceria uma única explosão, um único surto, uma única catarse. Mas, na infidelidade, você desmascara a farsa aos poucos, por capítulos. Por isso que dói tanto.

Você perde gradualmente a cumplicidade, a admiração, a amizade e, no fim, não sobra nem o respeito.O chifre não é apenas uma coroa do deboche, um adorno do desastre que se coloca na cabeça: suas pontas serão fincadas em sua pele devagar, em sua alma lentamente, com sucessivas incisões e desdobramentos, fazendo uma cicatriz irreversível.

É como ter a sua casa furtada. A cada dia, vai descobrindo mais um objeto que sumiu, mais um sentimento que foi subtraído de seu lar. É sempre algo a mais que se leva do patrimônio emocional da relação, e você se desespera de raiva, por não acreditar em monumental desdém e frieza.

É sempre mais uma mentira que você desvenda no decorrer dos fatos. Viverá abastecido por uma rede de informantes arrependidos ou culpados pela sua tristeza. Um amigo ou um colega próximo adicionará um elemento, uma cena dos amantes, uma situação da duplicidade, de que você não desconfiava.

A sensação é de que todo mundo sabia do que estava ocorrendo nos bastidores, menos você. O que aumenta a sua perplexidade diante da dissimulação do parceiro, transformando o que era intimidade em completa estranheza, a ponto de questionar: "Com quem eu vivi até agora?".

Depois da infidelidade, não é possível ficar junto. Exige-se no mínimo um tempo longe para ver o tamanho do estrago. Não contar que traiu tampouco salva o casamento. Só vai adiar o fim certo e líquido.

A infidelidade não prescreve. Pode-se esconder a verdade por cinco anos, por 10 anos, por 20 anos. Quando ela vier à tona, a dor não terá esfriado, a vergonha não será esquecida, a injúria não será perdoada.

Não importam o tamanho da convivência depois do caso, as alegrias que surgiram posteriormente, as conquistas mútuas. Assim como não faz diferença se a infidelidade foi um flerte de uma noite ou uma aventura demorada.

Ninguém aguenta ser enganado.Em Nápoles, na Itália, um idoso de 99 anos decidiu se divorciar de sua mulher de 96, após 77 anos de matrimônio. Ele localizou cartas de amor escondidas num gaveteiro antigo, e ela confirmou um romance secreto nos anos 1940.

O desamparo da traição não tem idade.

CARPINEJAR