23
de março de 2015 | N° 18110
L.
F. VERISSIMO
Restos
A
geografia e a história se cruzam com alguma ironia no Barrio de los Literatos
de Madrid. A rua onde morreu Lope de Vega hoje se chama Cervantes, que por sua
vez morreu na rua que hoje se chama Lope de Vega. E Góngora morou na esquina da
Quevedo com a Lope de Vega. Além desta incompreensão do mapa, artistas e
literatos de Madrid tiveram outra coisa em comum: seus restos desapareceram.
Velázquez
foi enterrado na paróquia de San Juan, uma das mais antigas da cidade, mas,
quando San Juan foi derrubada, o corpo do pintor e sua lápide não foram
encontrados. Lope de Vega baixou à sepultura na igreja de San Sebastián, mas
foi transladado para dar lugar ao corpo da irmã do pároco da igreja – e nunca
mais se ouviu falar nos seus ossos.
Os
restos de Calderón de la Barca andaram por várias igrejas e cemitérios até
acabarem na igreja de los Dolores, mas o registro de onde estavam,
precisamente, se perdeu durante a Guerra Civil. Ninguém sabe se eles ainda
estão lá, e onde. Não há dúvida de que os restos mortais de Goya estão na
Ermita de San Antonio de la Florida, que ele mesmo decorou. Há dúvida somente
sobre a presença ou não, entre os seus ossos, do seu crânio. Segundo uma
versão, Goya teria pedido que sua cabeça fosse enterrada junto a um pé da
Duquesa de Alba, não se sabe com que intenção.
Miguel
de Cervantes não escapou da confusão funérea. Foi enterrado em 1616 no Convento
de las Trinitarias, na atual Lope de Vega, mas não se sabia o local exato. Até
agora. Há dias, arqueólogos declararam ter achado sua ossada. Ainda não estão
cem por cento certos de que os restos sejam mesmo de Cervantes – que bom seria
se fossem, fantasticamente, de Dom Quixote! –, mas não falta muito para o local
se transformar numa atração turística.
Fora
da Espanha, os grandes escritores têm melhor sorte com sua posteridade. Mesmo o
túmulo de Leon Tolstoi, que, a seu pedido, não é identificado e pode estar em
qualquer ponto da sua fazenda, recebe visitas. O Westminster Abbey de Londres
tem seu Canto dos Poetas, onde está uma coleção de ossos ilustres que começou
com os de Chaucer, em 1400, por aí. Os restos de Shakespeare estão na igreja
Trinity, em Stratford-upon-Avon, com a famosa lápide em que Shakespeare –
talvez temendo um destino espanhol para seu cadáver – ameaça com uma praga quem
mexer nos seus ossos.
E no
cemitério Père-Lachaise, de Paris, está o túmulo de Oscar Wilde, cercado por
uma redoma de vidro. O vidro está sempre coberto de marcas de beijos. Mesmo
depois de morto, Wilde continua diferente.