terça-feira, 21 de maio de 2024


21 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Olhar de mil jardas

O olhar do gaúcho mudou depois de maio. Pois havia um outro olhar antes de maio. Não se nota mais aquela nossa confiança do inesperado, aquela nossa esperança curiosa, aquele nosso brilho da atenção, aquele nosso humor implicante.

Talvez seja o que o escritor Salman Rushdie concluiu a respeito de Nova York, com o ataque terrorista às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001: todo mundo, na cidade, tentava lembrar como era a sua vida em 10 de setembro.

Ao falar com as pessoas no meu Rio Grande, parecia que elas me escutavam e não me registravam. Tampouco eu as registrava. Fazíamos uma conversa sem memória presente. Como se toda a memória já estivesse abarrotada, ocupada de cenas violentas, de enchente e despejo, de gritos e resgates, de socorros e sustos. Como se não houvesse mais espaço na memória para acrescentar novos fatos, novos acontecimentos. Você está ali, mas não consegue estar inteiramente ali. Existe uma dispersão estranha, fixa, fantasmagórica.

Não diria que é um olhar vazio, mas um olhar cheio, nublado, turvo. Um olhar traumatizado pelos impactos e consequências do maior desastre ambiental da história do país. Procurava definir o olhar. Recordava algo que tinha folheado nos livros de arte.

E o promotor de Justiça Diego Pessi me deu a senha: disse que experimentamos um ângulo de visão de "mil jardas". Veio-me à mente, de imediato, o quadro de Thomas Lea, de 1944, That 2,000-Yard Stare (O Olhar de Duas Mil Jardas), que retrata um fuzileiro naval atônito, na Batalha de Peleliu, durante a Segunda Guerra Mundial.

O combatente tem um olhar arregalado, desligado do que vem ocorrendo ao seu lado, em meio a caças atirando e canhões respondendo, em meio a explosões e colegas feridos. Ele fica temporariamente insensível para se proteger do horror.

A pintura icônica, que foi capa da revista Life, cunhou a expressão "olhar de mil jardas". A jarda corresponde a 91 centímetros. A Inglaterra e os Estados Unidos, diferentemente do Brasil, utilizam-na como medida de comprimento. Essa aferição consiste na distância entre o nariz e a ponta do polegar, com o braço esticado. Nos jogos de futebol americano, a jarda serve para o juiz marcar a distância entre a bola e a barreira, a partir da sua contagem por passos.

O olhar de mil jardas ou de quase mil metros é, portanto, uma mirada distante, com um traço de dissociação que costuma atingir vítimas de acidentes, conflitos armados e catástrofes.

A tragédia no Rio Grande do Sul, que afetou 458 dos 497 municípios, produziu um lastro de destruição sem precedentes, com meio milhão de desabrigados, mais de 150 mortes e dezenas de desaparecidos. Estamos anestesiados. Sabemos a gravidade da fatalidade, mas ainda não podemos calcular os danos.

O olhar de mil jardas do gaúcho é de quem não acredita em tudo o que foi obrigado a enfrentar nas últimas semanas. O cérebro congelou, não aguenta mais tanta tristeza.

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