terça-feira, 10 de maio de 2022


10 DE MAIO DE 2022
TICIANO OSÓRIO

Os 25 anos da piscadinha que abalou as estruturas

Vinte e cinco anos atrás, no dia 14 de maio de 1997, Michael Haneke dividiu o Festival de Cannes ao apresentar Violência Gratuita (Funny Games), filme disponível na plataforma de streaming Reserva Imovision. Uns aplaudiram, outros acharam incômodo demais. Certo é que ninguém fica indiferente ao cinema do diretor austríaco.

Premiado por filmes como A Fita Branca (2009) e Amor (2012), Haneke, hoje com 80 anos, especializou-se em provocar mal-estar na plateia. Sem pudores, reflete sobre assuntos espinhosos: intolerância, xenofobia, ressentimento de classe, o excesso de conforto que cria uma sociedade incapaz de encarar a realidade, o fetiche das imagens e da cultura midiática. O crítico Marcelo Miranda enumerou elementos formais: "a brutalidade filmada fora de quadro, o uso do som para perturbação, a inserção de imagens de vídeo como propulsores da narração, o profundo rigor nos enquadramentos e em longos planos, a personalidade gélida dos protagonistas, a visão amarga e política do universo retratado". O tom pessimista e o gosto pelo choque são armas para obter "a primeira e principal" coisa que Haneke espera do público: uma reação.

- Em todos os meus filmes, eu uso os extremos, sejam incidentes ou comportamentais, como forma de mostrar o que é típico em nossa sociedade. É por meio desses casos extremos que você pode representar melhor a normalidade - disse certa vez.

No filme de 1997, Haneke, nas palavras do saudoso crítico de ZH Tuio Becker (1943-2008), "discute as consequências da violência na mídia e da mídia como produtora de violência". Os jovens Paul e Peter aterrorizam uma família de férias em casa à beira de um lago na Áustria: Georg, Anna e o menino Georgie. É o típico enredo dos filmes sobre invasão domiciliar, mas Haneke acrescenta um terceiro fator: o próprio espectador.

Quando Paul pratica um jogo cruel que envolve o cão da família, o personagem se vira para a câmera e, em close, pisca um olho marotamente. Essa piscadinha abala nossas estruturas, porque nos tira de uma posição passiva e nos torna conscientes do papel como consumidores da violência. Viramos voyeurs do martírio alheio, cúmplices da agressividade.

Depois, Paul volta a se dirigir diretamente para a câmera, questionando se já estamos fartos ou se queremos mais daquele suplício físico e psicológico. Aos reféns torturados, Haneke acena com uma reviravolta para, logo em seguida, refazer os caminhos traçados. Em outra subversão do subgênero da casa invadida, subtrai a habitual catarse. Ao usar um controle remoto para rebobinar a cena em que Anna se solta e mata o agressor Peter, Paul não está assumindo o lugar do cineasta, mas, sim, o de um de nós, ávidos pelo terror - talvez por um caráter sádico, talvez por masoquismo, talvez por usarmos a ficção como um reflexo invertido de nossas vidas felizes (a questão do balanço, do equilíbrio de sentimentos opostos).

Dez anos depois, Haneke refilmou Violência Gratuita, agora com elenco de Hollywood - Naomi Watts, Tim Roth e Michael Pitt -, mas o impacto não foi o mesmo. É provável que a audiência já estivesse anestesiada por títulos como Desejo e Obsessão (2001), Irreversível (2002), Alta Tensão (2003), Jogos Mortais (2004) e O Albergue (2005). Aliás, àquela época até desenhos animados investiam em atos brutais - vide Happy Tree Friends, sucesso na internet, onde estreou em 2000, e na TV, a partir de 2006.

Mas não sou hipócrita nem falso moralista: às vezes, a violência, ou melhor, a fantasia da violência cumpre papel importante. Pego como exemplo Resgate, lançado pela Netflix em 24 de abril de 2020, dia em que mais de 2,7 milhões de casos de covid-19 já haviam sido confirmados no mundo, com 192 mil mortes. Estávamos todos acuados pela emergência sanitária, pela crise econômica e pela turbulência política.

O filme ofereceu descanso para o cérebro e um banho de adrenalina. Projetamos no mercenário encarnado pelo carismático Chris Hemsworth a fé e a esperança de que, no final, tudo vai dar certo. Sob a guarda da ficção, nos permitimos a violência abominável na vida real, mas libertadora e até fascinante quando de mentirinha. Tipo um videogame, podíamos inclusive matar - e o cruzamento desse limite moral era favorecido pela abundância de inimigos sem rosto, que se multiplicavam como os vírus que devíamos eliminar para preservar a vida.

TICIANO OSÓRIO

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