quarta-feira, 31 de agosto de 2022


31 DE AGOSTO DE 2022
ALMANAQUE GAÚCHO

Ditador uruguaio entre os laureados da UFRGS

O texto a seguir é uma colaboração do jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (Editora L&PM, 2008), e parte dessa história está no Anexo I, chamado O Uruguai Sequestrado.

Vi a matéria sobre a justa cassação, pela UFRGS, dos títulos honoris causa, concedidos pela universidade, aos generais Médici e Costa e Silva. Um de 1970 e outro de 1967, no auge de suas estripulias como ditadores. Curioso, fui conferir a lista completa dos 231 homenageados no site do conselho universitário (Consun), onde a dupla desfrutava da companhia de gente decente e ilustre como Paulo Freire, Mario Quintana, Raymundo Faoro, Erico Verissimo, José Saramago e Umberto Eco, entre outras figuras memoráveis.

Na lista, para minha surpresa, encontrei o nome de Aparicio Méndez (1904-1988) agraciado com o título de Doutor Honoris Causa da UFRGS, em 7 de maio de 1957. A sessão solene foi em 16 de março de 1959, quase dois anos depois. O homenageado é o advogado uruguaio e professor de direito da Universidad de La República, em Montevidéu, a mais importante do país, onde lecionou entre 1934 e 1955.

Ele deixou de lecionar na universidade depois que os estudantes o acusaram de usar a sala de aula para defender Mussolini e o regime fascista italiano. Ele entrou na História do Uruguai pela porta dos fundos, quando foi nomeado o terceiro dos quatro presidentes enxertados no poder pelos generais na ditadura de 1973-1985. Antes de chegar ao poder, Méndez foi membro do Conselho de Estado, o órgão inventado pelos generais para substituir o Congresso Nacional, fechado pelo golpe militar de junho de 1973.

O antecessor de Méndez no cargo, também nomeado pelos generais, foi o advogado e historiador Alberto Demicheli, um fantoche da ditadura que durou só três meses no posto. Dócil, Demicheli assinou os dois primeiros Atos Institucionais dos nove que a ditadura implantou, repetindo o modelo autoritário do regime que a inspirava, a dos generais brasileiros, que chegaram ao poder nove anos antes, em 1964.

O AI-1 do Uruguai, de junho de 1976, suspendeu as eleições presidenciais previstas para aquele ano. Dias depois, o AI-2 de Demicheli inventou o Conselho Supremo da Nação, composto por cinco civis bem-comportados e pelos 21 oficiais-generais das forças armadas que, naquele momento, mandavam no país.

Nem o manso Demicheli topou assinar o AI-4, que cassava, por 15 anos, os direitos políticos de cerca de 15 mil cidadãos, a maioria políticos - praticamente a elite dirigente do país, os que ousaram disputar no voto a presidência, da direita à esquerda. Demicheli caiu e, naquele mesmo dia, 1º de setembro de 1976, assumiu Méndez, que disciplinadamente assinou o AI-4 exterminador.

Méndez fechou o ciclo autoritário no Uruguai, firmando, entre outros, o AI-7, que extinguia a segurança de emprego de 150 mil funcionários públicos do país e classificava os cidadãos em níveis de adesismo ideológico, a partir de um bizarro "certificado de fé democrática". No seu governo de fachada, Méndez foi derrotado no plebiscito que os generais convocaram, para novembro de 1980, que aprovaria uma constituição esculpida para legitimar a ditadura.

Os generais pensavam que o povo iria escolher patrioticamente a papeleta azul-celeste, impressa na cor da bandeira nacional, onde constava o "sim". Mas a "ingrata" maioria dos uruguaios preferiu a papeleta do "não", impressa em amarelo.

Méndez, um medíocre jurista de 72 anos, para bajular os generais que lhe deram o emprego, poucos dias após a posse de Jimmy Carter na Casa Branca (1977), atacou duramente a inusitada política de defesa de direitos humanos de Carter, que deixava em sobressalto todas as ditaduras do Cone Sul, declarando: "O Partido Democrata dos EUA é uma cova de comunistas!"

Vale lembrar que, no infame período de governo de Méndez, de 1976 a 1981, aconteceu, em Porto Alegre, o sequestro dos uruguaios Universindo Díaz e Lilián Celiberti e de seus dois filhos, executado em novembro de 1978 com a presença clandestina de um comando da repressão do exército uruguaio, atuando em cumplicidade com o Dops gaúcho do afamado delegado Pedro Seelig. Foi o único fiasco internacional da Operação Condor, graças ao testemunho involuntário de dois jornalistas gaúchos que, alertados por um telefonema anônimo, quebraram o sigilo da empreitada, denunciaram o crime e, com isso, salvou-se a vida dos sequestrados.

O comandante do exército uruguaio que cometeu o sequestro em Porto Alegre era o general Gregorio Goyo Álvarez, que sucederia Méndez na presidência, em setembro de 1981, como o último governante da ditadura.

Como os generais revogados, Méndez não merece conspurcar a excelsa lista de personalidades que a UFRGS homenageia."

ADÃO WONS

31 DE AGOSTO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

SAFRA DA RECUPERAÇÃO

Como virou tradição, a Emater divulgou ontem, durante a Expointer, em Esteio, a primeira projeção para a safra de verão do Rio Grande do Sul. O resultado final, na forma de volume de produção e rendimento, como sempre, dependerá em boa medida do clima ao longo dos períodos mais importantes para cada cultura. Mas os números que expressam a intenção de área a ser plantada indicam, mais uma vez, otimismo especialmente para a soja e o milho, lavouras de sequeiro que sofreram perdas severas no último ciclo devido à estiagem que castigou o Estado.

O ímpeto de ampliar a extensão cultivada demonstra que, a despeito de anos pontualmente ruins, os agricultores seguem confiantes no futuro. As perspectivas de mercado são animadoras, suplantando incertezas como o aumento significativo dos custos, caso dos fertilizantes, cujos preços dispararam devido à guerra no Leste Europeu.

Conforme a Emater, a soja se espalhará por 6,56 milhões de hectares, crescimento de quase 3% sobre a safra anterior. A produtividade esperada da lavoura mais importante em termos de valor bruto é de 1.131 quilos por hectare, uma alta de 112%. Caso se confirme, a safra gaúcha chegaria a notáveis 20,5 milhões de toneladas, 124% acima do colhido neste ano e montante próximo ao recorde registrado no ciclo 2020/2021. A ratificação dessa estimativa seria de extrema importância para a economia do Rio Grande do Sul, indicando um potencial de avanço substantivo do PIB gaúcho em 2023. Tanto pelos efeitos diretos quanto pelos indiretos nos demais setores, como indústria, comércio e serviços, gerando mais negócios e renda. Cabe lembrar que, como consequência imediata da seca e da frustração da última safra de verão, a atividade econômica teve um tombo de 3,4% no primeiro semestre no Estado, conforme índice do Banco Central.

O ânimo se repete entre os produtores de milho, cultivo de grande relevância também para o desempenho da cadeia de carnes. A Emater projeta que a área das lavouras destinadas à produção de grãos (há também plantio voltado à silagem) será de 831.7 mil hectares, 6% acima da extensão semeada no ano passado. Confirmando-se a produtividade esperada, a colheita chegaria a 6,1 milhões de toneladas, mais do que o dobro do volume obtido na safra anterior. Como é uma cultura mais sensível à falta de umidade, espera -se que também cresça a abrangência da irrigada no Estado.

A nota dissonante aparece no arroz, devido a problemas de preços e custos. A área com o cereal deve cair quase 10%, mas os produtores tendem a buscar mais a alternativa de rotação de cultura com a soja e o milho, elevando a renda. Mas, no total, a área cultivada com culturas de verão no Estado, incluindo o feijão, tende a se aproximar de 8,3 milhões de hectares, com uma produção estimada de 33,8 milhões de toneladas de grãos. Por quanto, os prognósticos climáticos não trazem qualquer alarme. Assim, salvo algum contratempo inesperado, a dedicação, a capacidade e o profissionalismo dos agricultores gaúchos, que a cada ano incorporam novas tecnologias em busca de maior produtividade, tendem a levar à recuperação dos prejuízos recentes, com uma nova safra recorde a caminho.

OPINIÃO DA RBS

31 DE AGOSTO DE 2022
EDIÇÃO N 23

Noite de celebração com o Troféu Guri

Em evento de plateia lotada, o Troféu Guri foi entregue a 11 personalidades de destaque em suas áreas, dentro e fora do RS. A solenidade ocorreu na noite de ontem na Casa RBS, durante a programação da 45ª Expointer, no Parque Estadual de Exposições Assis Brasil, em Esteio, com presença do governador Ranolfo Vieira Jr.

Receberam as homenagens Baitaca (cantor e compositor de música tradicional gaúcha), Frederico Wolf (produtor rural e agropecuarista, proprietário da Wolf Agricultura e Pecuária e membro da Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos), Iro Schünke (presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco), Ivane Maria Remus Fávero (turismóloga, mestre e consultora em turismo, criadora de conteúdo digital do blog Viajante Maduro), José Renato Hopf (co-founder & CEO da 4all e presidente do South Summit Brasil), Lauro Barcellos (oceanógrafo e diretor do Museu Oceanográfico de Rio Grande), Liliana Cardoso Duarte (apresentadora, declamadora, patrona dos Festejos Farroupilhas do RS 2021 e autora e curadora do livro A Matriz da Cultura Negra no Gauchismo) e Nadine Clausell (cardiologista, diretora-presidente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professora da Faculdade de Medicina da UFRGS, com atuação destacada no combate contra a covid-19).

No Troféu Guri - Gaúcho por Escolha, foi homenageado Luiz Eduardo Batalha (empresário paulista que cultiva oliveiras no RS, maior produtor de azeite do país). Também foram concedidas duas homenagens póstumas, em memória de dois grandes nomes do jornalismo gaúcho, que morreram neste ano: David Coimbra e Armindo Antônio Ranzolin. As homenagens foram recebidas pelo filho e esposa de Coimbra, Bernardo e Marcia, e a de Ranzolin, pela filha e apresentadora, Cristina Ranzolin. O troféu busca valorizar pessoas que se destacaram em suas áreas de atuação e que contribuem para o desenvolvimento e a cultura do Rio Grande do Sul.


31 DE AGOSTO DE 2022
ACAMPAMENTO FARROUPILHA

Cachaça foi enterrada como tesouro de pirata no parque

A maior parte dos 230 piquetes já está montada no Acampamento Farroupilha, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia), em Porto Alegre. O acendimento da Chama Crioula, em 7 de setembro, vai inaugurar oficialmente a abertura do evento deste ano, que marca o retorno presencial dos participantes e do público ao Harmonia.

Na segunda-feira, era possível ver os últimos galpões sendo erguidos, o vaivém de pessoas pilchadas carregando material de construção e sentir no ar, entre tantas árvores e verde, o cheiro da carne sendo assada na brasa. Ao mesmo tempo, histórias permeiam o ambiente e são contadas de boca em boca, como a de uma garrafa de cachaça enterrada em local secreto como se fosse um tesouro de pirata.

- Essa história da cachaça começou como uma brincadeira entre dois piquetes: o Laços de Amizade e o Chilena de Ouro - conta o aposentado Milton da Silva Matos, 59 anos, patrão do primeiro piquete mencionado.

Conforme narra, ao final de cada acampamento, uma garrafa de cachaça artesanal era enterrada longe dos olhares de curiosos em um esconderijo situado em algum ponto do parque. O lugar era marcado à faca com um "x" em uma árvore próxima ao buraco no chão. A tradição, que é repetida há uma década, chama atenção de quem visita o piquete. Todos querem provar a tal bebida, garante Matos.

- Com a pandemia, a cachaça ficou dois anos e meio enterrada. Nossa preocupação era ver se a bebida ainda estava onde deixamos da última vez. Foi uma alegria quando vimos que sim - afirma.

Em seguida, agacha-se e solta parte do assoalho de madeira. Lá do fundo, com cuidado, puxa a garrafa com o líquido de cor amarelada. No momento, o esconderijo se encontra dentro do próprio piquete. Mas, ao final desta edição do evento, a cachaça voltará para debaixo da terra, protegida por uma embalagem plástica, e ficará lá até o próximo ano.

Resistência

A última edição totalmente presencial do Acampamento Farroupilha ocorreu em 2019. Em razão da pandemia de covid-19, os dois anos subsequentes do evento foram marcados por programações virtuais.

Agora, o cenário é de retomada. Tanto que a estimativa é de que mais de que 1 milhão de visitantes passem pelo local até o encerramento, em 20 de setembro - feriado que marca a data de início da Revolução Farroupilha. O tema dos festejos deste ano será Etnias do Gaúcho: Rio Grande, Terra de Muitas Terras.

A presidente da Comissão Municipal dos Festejos Farroupilhas, Liliana Cardoso Duarte, acompanha a montagem dos piquetes quase que diariamente no Harmonia e resume o significado desse recomeço:

- O sentimento é de resistência e de resiliência. Cada galpão que se ergue é como um quero-quero altivo no Pampa, sempre de vigília nos dando saúde e força depois de dois anos de perdas e sofrimentos.

 ANDRÉ MALINOSKI


31 DE AGOSTO DE 2022
OITO ANOS DE ABANDONO

Vizinhos do Olímpico vivem uma rotina de insegurança

Prefeitura dará prazo de um ano para que obras comecem. Brigada Militar e Grêmio se esforçam para impedir furtos no local

A inauguração da Arena, em dezembro de 2012, tirou do bairro Azenha uma potência econômica. Entre 1950 e 2010, o Estádio Olímpico foi palco fundamental na construção da marca à frente de uma receita anual na ordem da centena de milhões de reais, fidelizou a sexta maior torcida do Brasil e promovia eventos que levavam em média 20 mil pessoas por semana à região entre as avenidas Carlos Barbosa, Erico Verissimo e Azenha. Mais do que a casa de 5 milhões de gremistas, as cercanias do Largo dos Campeões eram consideradas um bom lugar para morar, apesar do movimento antes e depois de jogos.

Oito anos após a saída do Tricolor da Azenha, a Karagounis, braço da construtora OAS e futura proprietária do terreno de R$ 200 milhões, ainda não conseguiu cumprir o acordo para explorar comercialmente esse ponto central da cidade, originalmente idealizado com condomínio e shopping. Quem ficou por lá, contando com a ação prometida pela empreiteira, atingida na Operação Lava-Jato, sofre com a insegurança trazida pelo abandono do septuagenário "velho casarão".

Hoje, o Olímpico em ruínas virou uma mina de ouro para quem troca qualquer metal por pequenos valores. No último dia 16, o prefeito Sebastião Melo se reuniu com o Ministério Público Estadual para dar um ultimato aos proprietários: se não começarem a construir na área em até um ano, a prefeitura da Capital tomará atitudes que podem chegar à desapropriação do imóvel.

Entre terça e sexta-feira da semana passada, ZH circulou nas imediações do estádio conversando com moradores, comerciantes e trabalhadores que convivem com o abandono da área diariamente. A reportagem flagrou furtos de materiais retirados de dentro das arquibancadas, conheceu histórias de quem tenta sair de lá e de quem aprendeu a gostar da tranquilidade sem jogos.

Os anos de impasse judicial entre a empresa baiana e o clube gaúcho fizeram as barulhentas multidões de torcedores serem trocadas por sorrateiros andarilhos. A equipe de 10 seguranças que circula dentro dos portões do Olímpico - custando, segundo o Grêmio, R$ 100 mil por mês - não é suficiente para impedir que moradores de rua se acumulem nas vias vizinhas ao estádio nem que entrem e saiam do local.

Sem-teto

Quem enxerga o movimento de longe não consegue identificar se quem pula os portões do estádio são de fato usuários de drogas ou moradores de rua buscando abrigo. O fato é que os acampamentos de pessoas sem residência se multiplicaram pelas calçadas e canteiros nos últimos 10 anos.

- Clientes têm se queixado de serem muito abordados por moradores de rua entre o Menino Deus e a Azenha, algo que não acontecia quando o Grêmio estava aqui - diz Heitor Colar, 54 anos, açougueiro da feira de hortifruti que funciona ao lado do estádio desde 1988.

Nos canteiros centrais mais próximos à Rótula do Papa, na Avenida Erico Verissimo e na Rua José de Alencar, lonas, cordas e estruturas de madeira servem de abrigo aos sem-teto. Segundo moradores da região, os esforços das autoridades em retirar as pessoas daqueles locais são superados pelo retorno e remontagem poucos dias depois.

Quando a Carris fez acordo com o clube e estacionou na área do Olímpico seus ônibus fora de uso durante a pandemia, ou quando a Brigada Militar e os Bombeiros utilizaram o terreno para cursos e treinamentos, em junho deste ano, a situação melhorou. O relato dos moradores que têm teto na região mostra que os desabrigados procuram mais o Olímpico e a vizinhança quando o acesso ao interior do estádio é menos difícil. 

ROGER SILVA

terça-feira, 30 de agosto de 2022


30 DE AGOSTO DE 2022
CARPINEJAR

Há um morto no meu banheiro. Convivo com ele fazendo de conta que não existe.

É um morto já totalmente pálido, ocupando um espaço imerecido num ambiente que não é tão grande. Já estava lá quando cheguei, quando comprei o apartamento, e não questionei, não pedi a sua remoção, até porque eu não seria atendido pela antiga proprietária. Tirá-lo seria muito dispendioso. Minha esposa e eu fingimos que é normal a sua existência extinta, sem nenhuma utilidade, sem nenhuma serventia.

O falecido incômodo é o bidê, de origem francesa, comum nas casas de famílias mais abastadas até os anos 1980. Uma privada paralela, atualmente inútil com a sua substituição pela ducha higiênica.

Era usada para a limpeza íntima. Juro que não entendo como alguém poderia se lavar ali, realizando um deslocamento nada natural, ou talvez só natural a um sapo que pula. Trata-se de uma patética dança das cadeiras, tendo que ir ao vaso vizinho para um asseio de duas etapas. Não tem como não se sentir um bife à milanesa, posto na farinha antes de fritar.

Quem se senta no bidê, sem a tampa protetiva, afunda. Tem quem fique encalacrado. Será necessário gritar por ajuda e chamar um guindaste.

Aquilo é um chafariz, um esguicho automático de grama. O jato não tem direção definida e se espalha pelo alto a partir da pequena válvula com furinhos. Vai ensopar o banheiro transbordando líquido pelos cantos. Qual o fundamento do ralo com tampão de metal? Não é uma hidromassagem. Você vai encher aquilo para qual finalidade? Para brincar de barquinho enquanto faz suas necessidades?

Ninguém, em pleno exercício de sua saúde mental, banhará seu bebê naquela estreita redoma sabendo que já foi empregada para fins menos nobres. Nem é cautela, e sim uma questão de nojo retrospectivo.

No formato de bacia, sequer os pés encontram refúgio confortável. É como enfiar o pé na jaca, com a perna de apoio em desequilíbrio pela altura. Já pensei em lavar as minhas solas sempre encardidas por andar descalço pela casa, mas quase caí para trás na posição perneta. Não suportei o alongamento.

Hoje, no máximo, sua superfície seca serve como purgatório do cesto da lavanderia, como um apoio para depositar as roupas sujas antes do banho. Não entendo como se vivia com o bidê. Imagino, imagino, porém não chego a uma conclusão plausível, a uma realidade palpável. Ele é um bebedouro de traseiro. E, como todo bebedouro, você aperta de um lado e a água sai do outro.

CARPINEJAR

30 DE AGOSTO DE 2022
CARLOS GERBASE

Meu patriotismo

Estamos iniciando uma semana da pátria especial. Passaram-se 200 anos desde que o imperador D. Pedro I deu seu grito de suposta rebeldia contra a potência colonizadora europeia que ele mesmo representava. Lembro bem dos festejos dos 150 anos. Tinha até uma musiquinha tocando nas rádios e antes das sessões de cinema. Começava assim: "Marco extraordinário/ Sesquicentenário da Independência/ Potência de amor e paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz". Eu, com 13 anos, realmente nem imaginava o que o Brasil, em plena ditadura, estava fazendo. 

Mas, poucos anos depois, minha consciência estava ampliada. Em 1984, codirigi o filme Verdes Anos com Giba Assis Brasil. Há uma cena em que um bando de adolescentes entra num cinema, em 1972, com a tal musiquinha no fundo. Eles, como nós no início dos anos 1970, nem questionavam se a "potência de amor e paz" era realmente amorosa e pacífica. O filme mostra um ritual de passagem da absoluta alienação para uma aproximação, mesmo que imperfeita, da verdade histórica.

Chegar mais perto da verdade fez muita gente repensar o conceito de patriotismo, que na escola sempre foi mostrado como positivo. Duvido que alguém da minha geração, quando criança, tenha escapado de desenhar a bandeira do Brasil na semana da pátria. Contudo, quando percebi que a musiquinha mentia sobre a realidade da minha pátria, passou a ser impossível amá-la incondicionalmente. 

E, a partir daí, ficou tentador pensar como Samuel Johnson (em 1775) e declarar, com certa raiva, que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Basta pesquisar um pouco, entretanto, para descobrir que James Boswell, biógrafo de Johnson, registrou que o grande literato inglês não se referia a um amor real pela pátria, e sim ao "pretenso patriotismo que tantos, em todas as épocas e países, têm usado como um manto para os próprios interesses".

Obrigado, Boswell! Matou todas as minhas apreensões! Eu ainda posso me emocionar de verdade durante o Hino Nacional (mesmo que ele seja longo demais e tenha versos quase incompreensíveis). E ainda posso declarar meu amor pelo Brasil, minha nação, meu chão, meu lugar no mundo, meu quintal de brincadeiras e de muito trabalho, meu espaço de comunhão com seres humanos de todos os gêneros, de todas as etnias, de todas as classes sociais, de toda rica diversidade que caracteriza esse país tão cheio de problemas e injustiças, mas que ainda merece ser amado. Meu patriotismo não depende do governante do momento ou de seus interesses espúrios. Amar a pátria é o primeiro passo para torná-la realmente mais amorosa e mais pacífica.

CARLOS GERBASE

30 DE AGOSTO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

O PAPEL DOS DEBATES E SABATINAS

A partir do início da campanha eleitoral, passam a ser mais recorrentes debates, sabatinas e entrevistas dos postulantes especialmente aos cargos do Executivo. Faltando pouco mais de um mês para o primeiro turno, é a oportunidade de os cidadãos se apropriarem melhor das ideias e propostas dos candidatos que disputam o voto dos brasileiros.

Esses encontros, em um momento em que naturalmente se eleva o interesse da população pelo pleito, têm uma característica ímpar: tiram os candidatos da zona de conforto dos discursos sem contestação. Nos debates, são forçados a tratar dos mais diversos temas e questionados por jornalistas ou opositores sobre suas contradições, histórico e posições, com perguntas incômodas e submetidos a réplicas. Esse cotejo, quando feito em nível elevado, é um instrumento essencial para a definição do voto e, portanto, para o fortalecimento e o amadurecimento da democracia do país.

Um bom exemplo foi o debate entre seis concorrentes ao Palácio do Planalto, no domingo à noite, na TV Bandeirantes, promovido por um pool de veículos de comunicação. Um pouco mais restritas, mas também úteis, foram as entrevistas, ao longo da semana passada, no Jornal Nacional, na TV Globo. As pesquisas eleitorais, que devem ser compreendidas apenas como um instrumento que mostra o provável cenário do momento, vêm apontando uma polarização em torno do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas há alternativas aos polos à disposição. 

A presença de outros desafiantes - de partidos com representação mínima exigida no Congresso - nestes encontros, com paridade de tempo para suas explanações, permite ao eleitor uma chance de conhecer melhor outras opções não tão familiares à grande massa de eleitores. Assim, podem considerar outros caminhos ou mesmo firmar convicção em torno de um dos dois presidenciáveis que hoje mais dividem as paixões dos brasileiros.

Idealmente, no entanto, a escolha deveria ser mais pautada pela razão do que pela emoção, sentimentos despertados e rejeições. O Brasil tem uma série de sérios desafios à frente em áreas como educação, economia, emprego, desigualdade, meio ambiente, ambiente de negócios, reformas e saúde, entre outras. São problemas que, mais do que carisma, exigem competência e propostas viáveis para solucioná-los. Quando o eleitor acompanha de maneira desapaixonada debates e sabatinas, tem melhores condições de formar um juízo embasado em argumentos factíveis.

Estão previstos outros debates e entrevistas até o fim do primeiro turno, tanto para os candidatos aos governos estaduais quanto com os pretendentes ao Palácio Planalto. Em respeito ao eleitor e em nome do interesse público, espera-se que os principais concorrentes não se esquivem de comparecer aos encontros agendados. Aguarda-se, ainda, que em vez de ataques pessoais priorizem propostas para sanar os problemas inadiáveis que inquietam a população. O país precisa ser devolvido aos trilhos de um crescimento mais robusto e sustentável. 


30 DE AGOSTO DE 2022
NÍLSON SOUZA

Histórias para crer no ser humano

Esta primeira circula na internet, talvez seja ficção, mas é tão comovente que decidi recontá-la. O velho professor caminhava pela rua quando foi abordado por um jovem: "O senhor se lembra de mim?". Diante da negativa, o outro informou que havia sido seu aluno e que, por causa dele, também se tornara professor. O mestre então quis saber o que exatamente o havia inspirado. Contou o rapaz:

- Um dia um colega chegou com um relógio novo e bonito. Então, eu decidi roubá-lo. Tirei do bolso dele sem que visse. Quando percebeu, reclamou para você, que parou a aula e pediu que o autor do furto devolvesse o objeto. Como ninguém se manifestou, você fechou a porta, pediu que todos se levantassem e ficassem de olhos fechados para a revista. Você encontrou o relógio no meu bolso, mas continuou revistando todos os demais. 

Quando terminou, apenas anunciou que o relógio fora encontrado, devolveu-o ao dono e não disse a ninguém quem o havia roubado. Naquele dia, o mais vergonhoso da minha vida, você salvou minha dignidade. Nunca me falou nada, não me repreendeu nem me deu lição de moral, mas eu entendi a mensagem e percebi o que é ser um verdadeiro educador. O senhor não se lembra disso?

Respondeu então o professor:

- Lembro-me do episódio e do relógio devolvido, mas não sabia que era você, pois também fechei os olhos durante a revista.

Já esta outra eu atesto como totalmente verdadeira, pois aconteceu com dois jovens da família. Namorados, passaram um fim de semana em Florianópolis e já estavam na rodoviária para voltar a Porto Alegre, com passagem comprada, mas sem dinheiro sequer para o lanche. E teriam que esperar pelo ônibus por mais de seis horas. Famintos, sentaram-se num banco e começaram a conversar sobre o assunto. Poucos minutos depois, um homem que estava próximo (e que certamente ouvira a conversa) levantou-se, agachou-se perto deles e fingiu juntar um dinheiro do chão;

- Vocês deixaram cair isso! - falou, enquanto largava as notas no banco e se afastava sem esperar agradecimento.

Por fim, uma que aconteceu comigo, quando terminava o Ensino Médio na escola pública do meu bairro. Alguns colegas fariam vestibular, mas eu não tinha o dinheiro da inscrição. O professor de História ficou sabendo, me procurou, colocou discretamente um envelope no meu bolso e se justificou:

- Recebi um aumento de salário e não estou precisando.

Tinha exatamente o valor da taxa de inscrição. Foi graças ao professor Harry Bellomo, até hoje um querido amigo, que aprendi a contar histórias.

NÍLSON SOUZA

segunda-feira, 29 de agosto de 2022


29 DE AGOSTO DE 2022
CARPINEJAR

Um milhão de gaúchos na Expointer

A Expointer é o atalho do campo para as crianças urbanas. A infância de apartamento tem a chance de conhecer a lã das ovelhas, a diferença entre touros e bois, como aprumar a sela e montar nos cavalos, quais as estações do plantio de diversas culturas e os efeitos meteorológicos na colheita, numa imersão com os mistérios e os encantos da vida rural. E não é somente uma exposição para olhar, tem-se o direito de experimentar tirar leite de vaca, subir nos tratores, brincar com os coelhos e chorar alto de birra querendo levar um no colo para casa.

Há uma experiência inédita com mais de 6 mil exemplares de animais num único lugar. A cultura gaúcha se abre com os desfiles e leilões das principais raças bovinas e equinas e com as provas de laço.

Mais do que a roda-gigante nas dependências da feira, ingressa-se em diversões reais e inspiradoras do nosso Interior. É sair da virtualidade para pisar no feno, na palha e na grama, para se aproximar do cheiro do celeiro e dos estábulos. Ensina-se o respeito a uma existência prodigiosa que sustenta a nossa agricultura e pecuária.

Eu criei meu filho Vicente na Expointer. Tudo o que faltava para ele de contato e convívio com os bichos, eu busquei corrigir entre três centenas de expositores. Lembro que íamos de trensurb, atravessávamos a passarela de mãos dadas, e seus olhos mudavam de brilho quando avistavam de longe as esferas cromáticas - "as bolas coloridas", como ele chamava. Eu explicava que aquelas estruturas reproduziam as cores da bandeira do Rio Grande do Sul e que vieram da Alemanha, em 1972, ano de meu nascimento.

- Então, são muito antigas, pai - ele me dizia, achando sempre que eu era velho.

Todo pai é sempre velho para os seus rebentos. Mas, durante os nove dias da festa em Esteio, às margens da BR-116, eu me sentia especial, até inteligente, e ultrapassava os limites do meu papel para me tornar um pouco professor de meu filho, repassando a minha vivência em fazendas.

Quem é pai ou mãe não tem ideia do superpoder que ganha dentro de sua residência, com o qual se prova ser capaz de se lembrar daquilo que nem sabia que sabia, das histórias dos avós e dos entardeceres no pampa.

Experimente acordar a memória no sangue: somos centauros na alma, com garupa e pernas de cavalo - por isso fazemos questão de levar nossos pequenos no lombo e nas costas quando eles estão cansados. Somos mochileiros dos nossos eternos bebês.

Talvez tenha sido ali que tive os melhores momentos da minha paternidade, onde dei uma aula de laço nas rédeas, nó que nunca foi desfeito pelo tempo e que firmou meu relacionamento com Vicente.

Além dos negócios, além das cifras, além do aspecto empresarial, além da expectativa de R$ 4 bilhões em vendas no setor de máquinas, a Expointer é o nosso programa familiar preferido.

Começou no sábado e vai até o dia 4 de setembro. Está na sua 45ª edição. Leve o seu lar para o Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio. Não deixe para amanhã. Não fique adiando. A previsão é de 600 mil visitantes, mas acredito que podemos atingir 1 milhão, dois terços da população inteira de Porto Alegre. Um milhão de pessoas para encher a boca de orgulho e mostrar a importância do Estado para o país e para o mundo.

CARPINEJAR

29 DE AGOSTO DE 2022
ARTIGOS

CIGARRO ELETRÔNICO TAMBÉM É CIGARRO

Hoje é o Dia Nacional de Combate ao Fumo. A redução no número de fumantes na população adulta brasileira, hoje em torno de 10%, é um motivo para comemorar. Por outro lado, o uso do cigarro eletrônico por um em cada cinco jovens causa grande preocupação. Apesar de proibido no Brasil desde 2009, o chamado vape pode ser comprado tanto na internet como em algumas lojas físicas.

Na realidade, é uma versão do cigarro em uma "roupagem" mais tecnológica e não é inofensivo à saúde. No cartucho do aparelho está presente a nicotina, em doses que podem ser extremamente altas - muitas vezes acima do descrito na embalagem -, causando dependência. Há ainda inúmeras outras substâncias irritantes ao organismo, algumas delas cancerígenas.

Embora os efeitos do uso do vape em longo prazo não sejam totalmente conhecidos, sabe-se dos efeitos nocivos da nicotina ao sistema cardiovascular. Agudamente, o vapor pode causar constrição dos brônquios, tosse e piorar a evolução de doenças respiratórias prévias. Partículas muito pequenas do vapor chegam aos alvéolos pulmonares e podem, através da corrente sanguínea, atingir outros órgãos do corpo.

Em 2019, uma nova doença, associada ao uso do cigarro eletrônico - que recebeu o nome de evali - foi descrita nos EUA. Mais de 2,8 mil casos de lesão pulmonar aguda grave, principalmente em jovens, foram relatados. A maioria necessitou de internação em UTI e ventilação mecânica. Cerca de 260 morreram. Também há vários relatos de explosões de baterias de cigarros eletrônicos, causando queimaduras, lesões de pele e até fratura de vértebra.

O cigarro eletrônico também não é uma alternativa para quem quer parar de fumar, pois cerca de 80% das pessoas que o utiliza acabam viciadas nele depois de um ano. Tratamentos eficazes, seguros e que quebram o ciclo de dependência à nicotina estão disponíveis para abordagem do tabagismo.

Cigarro eletrônico também é cigarro. É urgente que se iniba sua comercialização. É o momento de pais, professores e profissionais de saúde se unirem na campanha para proteger crianças e jovens desta nova cilada!


29 DE AGOSTO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

CONSCIÊNCIA PARA O VOTO

O melhor voto é o voto consciente. Os gaúchos acompanharam nos últimos dias o início da campanha eleitoral, com os candidatos ao Palácio Piratini se apresentando e mostrando as suas propostas para governar o Rio Grande do Sul pelos próximos quatro anos. Na busca por subsidiar os cidadãos para as suas escolhas, veículos da RBS começaram a divulgar, na sexta-feira, a série Vida Real.

Os conteúdos podem ser conferidos em Zero Hora, GZH e no programa Atualidade, na Rádio Gaúcha. A série consiste, basicamente, em expor a posição dos concorrentes de partidos com representação no Congresso acerca de temas concretos que impactam o dia a dia da população ou são controversos e atuais. O material será publicado ou irá ao ar sempre às sextas-feiras, até o final do primeiro turno.

Para sufragar um candidato de maneira consciente, o eleitor precisa estar bem informado. Isso só é factível se conhecer minimamente a opinião dos postulantes sobre os mais variados assuntos. Com este panorama amplo, é possível compreender melhor o conjunto de ideias dos concorrentes ao governo gaúcho e decidir de maneira consistente, com menores chances de decepções e surpresas negativas. As escolhas materializadas nas urnas, afinal, têm consequências.

O primeiro tema apresentado na sexta-feira foi sobre os planos de concessão de rodovias estaduais, um assunto sempre polêmico no Rio Grande do Sul. O Estado tem em curso uma proposta de passar à administração privada a gestão de mais de 1,1 mil quilômetros de estradas por 30 anos. Como é um prazo longo, requer um modelo bem pensado. Infraestrutura é uma matéria que influencia a economia e diz respeito à segurança de quem trafega pelas vias gaúchas. Assim, é essencial saber quem está de acordo com os preceitos atuais, quem vê a necessidade de ajustes nos editais e identificar quem pretende rever os termos. Há ainda a necessidade de debater a questão devido à decisão do Piratini de adiar o leilão do bloco 2, que estava marcado para o dia 2 de setembro.

A série Vida Real vai ainda abordar tópicos como a possibilidade de privatização do Banrisul, a desestatização da Corsan, a distribuição de recursos a hospitais, o fechamento de escolas em localidades com queda na quantidade de alunos e o regime de recuperação fiscal (RRF), entre outros. A iniciativa está alinhada às diretrizes da cobertura eleitoral do Grupo RBS, voltada a melhor informar a população gaúcha e focar principalmente em temas relacionados ao cotidiano da população, nos principais problemas do Estado e nas propostas para solucioná-los, dando especial atenção à exequibilidade das ideias. É uma colaboração para robustecer a democracia e a consciência cidadã, a partir de informações precisas e organizadas que permitam a comparação, ajudando no desenvolvimento do Rio Grande do Sul. 


29 DE AGOSTO DE 2022
+ ECONOMIA

Para pegar o bonde da economia verde

A descarbonização da economia até 2050 é prioridade em países, que, juntos, represen-tam mais de 90% do PIB global. O mercado voluntário de carbono, por sua vez, é um dos eixos de solução. Tem as funções de mitigar emissões de gases de efeito estufa e estruturar modelos de créditos para capturar o que ainda não pode ser abatido no processo.

No Brasil, onde o cavalo parece passar encilhado, sem chamar a devida atenção das políticas públicas e de regulações, um grupo de grandes empresas e organizações uniu forças para destravar esse mercado. São elas: Amaggi, Auren, B3, Bayer, BNDES, CBA, Dow, Natura, Rabobank, Raízen, Vale, Votorantim e Votorantim Cimentos. A meta é contribuir com o cenário global de créditos de carbono, também chamados de offsets (leia na entrevista ao lado).

Nada mais "natural", tendo em vista que, de acordo com dados da McKinsey & Company, que coordena os conteúdos gerados a partir da iniciativa, em um mercado que movimenta US$ 15 bilhões (deverá chegar a US$ 100 bilhões em 2030) só 15% da demanda é doméstica. O restante vem da exportação dos offsets às empresas.

A questão, alerta o sócio e líder da McKinsey & Company, Henrique Ceotto, é que, hoje, os créditos gerados por aqui são os de conservação e os de abatimento de aterros energéticos, quando o real interesse estaria na restauração dos biomas.

Para se ter uma ideia, o potencial nacional chega a 1,9 giga toneladas (GT) de crédito offset por ano - 1,5 GT, ou 80%, originado no reflorestamento, outros 10% na conservação e a sobra na agricultura e aterros. Apenas no agronegócio, há 160 GT de potencial não explorado, muito mais do que em toda a Europa.

- Há grande oportunidade de criar um mercado e ajudar as metas de descarbonização do mundo e a endereçar a mudança climática - resume.

Diante dos números, fica fácil perceber que a temática deixou de ser "papo de ambientalista" e se tornou crucial para a evolução da economia "verde" global. Com tamanhas possibilidades, talvez, o Brasil seja "salvo" pelo próprio potencial. Mas, a julgar pelo interesse da pauta no debate público, até agora, o bonde da história parece correr livre sob os olhos desatentos das políticas e regulações do país. A boa notícia: ainda há tempo de conseguir um lugar para sentar-se à janela.

RESPOSTAS CAPITAIS

Henrique Ceotto Sócio e líder da McKinsey & Company

"País precisa entender seu papel ambiental"

Sócio e líder da prática de sustentabilidade da McKinsey & Company, Henrique Ceotto comenta o que a iniciativa que junta grandes empresas para destravar o mercado de carbono no país pretende entregar nos próximos meses para mitigar barreiras e gerar mecanismos de ativação de oferta e demanda.

Qual é a proposta?

Há dois tipos de mercado de carbono. O regulado, que é o tema de um decreto que passou pelo governo e o voluntário, que é o que as companhias que se comprometeram com a descarbonização usam para acelerar esse processo e até chegar à neutralidade antes com os créditos. O nosso trabalho é focado nesses mecanismos voluntários em que o Brasil é o país que tem o maior potencial de geração desses créditos, também chamados de offsets no mundo. 

Se avaliarmos só as soluções naturais, como reflorestamento, carbono em solo na agricultura, conversão de metano para gás carbônico (gerando energia), o país tem 15% do potencial global, mas explora menos de 1% disso. É um mercado muito pequeno, que gerava em torno de US$ 200 milhões há três anos. No ano passado, atingiu quase US$ 2 bilhões e a projeção é que represente até US$ 100 bilhões em 2030, multiplicando-se em 2050. É uma grande oportunidade para o país e a jornada até o net zero (compromisso de reduzir as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera).

E os créditos?

Os offsets ajudam a manter estoques de carbono na atmosfera dentro dos limites do Acordo de Paris (discutido na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas - COP21 - em 2015 por 195 países para reduzir o aquecimento global). O objetivo é sempre a redução das emissões e, só no final, utilizar esses offsets. O objetivo da iniciativa é destravar esse potencial brasileiro e criar mecanismos para que isso ocorra. 

Em um paralelo com o mercado de energia renovável, percebemos que o crescimento está vinculado a legislações adequadas, estrutura de financiamento de projetos, como a inaugurada pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) que permitia aportes em um ciclo de investimento longo, em que primeiro se faz a infraestrutura e a receita só começa a ser gerada em sete anos. Tem-se os contratos futuros para definição de preços que retiram os riscos comerciais, ferramentas de liquidez para o mercado livre, uma empresa de economia mista (CCEE) que o regula. Ou seja, para criar um mercado de carbono no tamanho que estamos projetando, é preciso pensar nesses mecanismos. É nisso que a iniciativa foca.

Quando estará em prática?

A ideia é tornar público esses mecanismos em alguns meses até para receber críticas. Tomamos o cuidado de interagir com os entes do setor, mas, no final, é preciso abrir para consulta e pegar ainda mais contribuições. Isso deverá gerar mais ajustes do que alterações estruturais, mas a ideia é que ocorra ainda este ano. É isso que vai escalar o mercado, na prática. O mercado já existe, mas o ano que vem será muito importante. Gostaríamos que parte dos mecanismos já estivesse ativa em 2023, mas há um processo para isso. O Brasil precisa exercer o papel e entender a grande oportunidade de criar um mercado e ajudar metas de descarbonização.

RAFAEL VIGNA INTERINO

29 DE AGOSTO DE 2022
CHAMOU ATENÇÃO

Viagem à Lua começa hoje

Está prevista para hoje a partida da espaçonave Orion, do portão 39B do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, nos Estados Unidos. A viagem do foguete mais poderoso do mundo, tendo a Lua como destino, deve começar entre 9h33min e 11h33min no horário de Brasília e poderá durar até 42 dias.

Se não houver condições para o lançamento, a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) prevê outras duas possíveis datas: em 2 de setembro, quando a viagem duraria 39 dias, ou 5 de setembro, voltando ao plano original de 42 dias.

A Orion permanecerá no espaço pelo maior tempo que uma nave sem humanos já ficou até agora sem atracar em uma estação espacial. 

Quando retornar para a Terra, estará mais quente e mais rápida, por isso, a missão ajudará em ajustes técnicos para a próxima viagem. O foguete vai atingir o período de maior força atmosférica em 90 segundos.

Ao longo da viagem, é normal ver a separação de módulos, que nada mais é do que o descarte de propulsores, painéis e dos motores do estágio principal que, desligados, se separam da nave. A primeira separação deve acontecer cerca duas horas após o lançamento.  

Ainda na órbita terrestre, alguns ajustes são necessários para dar um “grande impulso” para que a Orion consiga continuar o trajeto. Para que a Orion alcance a velocidade necessária, contará com módulo de serviço oferecido pela Agência Espacial Europeia (ESA), que fornecerá o principal sistema de propulsão e energia da espaçonave.

Para falar com o controle da missão em Houston, a Orion mudará do sistema de satélites de rastreamento e retransmissão de dados da Nasa e se comunicará por meio da Deep Space Network. 

A viagem de ida à Lua levará vários dias, e durante esse período os engenheiros avaliarão os sistemas da espaçonave e, conforme necessário, corrigirão sua trajetória. Entre 100 mil e 200 mil visitantes são esperados para o lançamento da missão Artemis 1, hoje pela manhã. 

A “natureza histórica” do voo, o primeiro de vários do programa norte- americano de retorno à Lua, “certamente aumentou o interesse público”, disse à AFP Meagan Happel, do Escritório de Turismo da Costa Espacial.

sábado, 27 de agosto de 2022


27 DE AGOSTO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

A conversa na sala

Todo casamento passa por altos e baixos, e quando termina é uma pequena morte. Apostou-se que aquele amor seria o definitivo, ou que, ao menos, a amizade erótica resistiria firme às provocações inevitáveis do destino, mas algo se quebrou e não há mais o que fazer a não ser tentar ser feliz de outro jeito. Fica a tristeza e a frustração, mas o pior momento acontece antes de a porta fechar com alguém do lado de fora: é quando os filhos precisam ser avisados.

Uma separação sem filhos dói também, mas não igual. A dor é singular, uma implosão.

Havendo filhos, é um castelo de vários quartos que desmorona, não apenas uma torre. Se a separação for litigiosa, precedida por gritos e agressões, o desfecho será um alívio, mas a um custo dilacerante. Se, ao contrário, for uma separação consensual, ficha limpa, sem fissuras visíveis, será menos dolorida, mas nunca descomplicada. Afinal, há inocentes envolvidos - de todas as idades.

Quando meus pais se separaram, eu era uma mulher de 20 anos, já trabalhava, mas diante da ruptura, mesmo que amigável, voltei à infância primária. Caminhei uma tarde inteira sem ter para onde ir, não queria chegar a lugar nenhum. Em trânsito, eu me preparava para a nova história que iria começar, como se eu fosse nascer outra vez. E assim foi, nasci, e voltei a nascer outras tantas vezes nesta vida repleta de mortes pontuais.

Imagino a garotada de oito, 10, 11 anos. Apegam-se à fantasia da continuidade, ao conto de fadas universal, à segurança garantida por dois adultos no comando de um projeto de felicidade, até que descobrem que mãe e pai se desiludem, falham, mudam. O "pra sempre" é apenas uma farsa bem-intencionada: o mundo externo atrai nossos super-heróis com desejos subversivos. Ambos fizeram juras no altar, mas não passam de reles humanos, que decepção.

"Queridos, desliguem o computador, deixem os celulares de lado, vamos conversar ali na sala". Tensão. Os pequenos olham para nós, incrédulos, enquanto usamos as palavras mais ternas, prometendo estar sempre a postos e que ter duas casas vai ser divertido, que o amor não sofrerá nenhum abalo. De fato, mas cada um organiza sua desconstrução em silêncio. 

Hoje a cena parece banal, mas os pais que um dia tiveram esta conversa sabem que é uma tortura: tão dedicados a proteger os filhos do sofrimento, são obrigados a provocá-lo. Atenuante, só vejo um. Que o "pra sempre" deixe de ser uma promessa. Que a eternidade da relação passe a ser vista por todos como uma benção, não mais como regra. Sem prejuízo ao amor, que ao assumir-se finito, trocará o romantismo por uma edificação mais sólida - e bonita como só a verdade consegue ser.

MARTHA MEDEIROS

27 DE AGOSTO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Era inevitável, e os números anunciavam o processo havia décadas. O censo indicava, a cada novo levantamento, o encolhimento da parcela de católicos. Sim, a religião oficial da Colônia e do Império não cessava de perder a fatia demográfica dominante. O Brasil era, ano a ano, mais evangélico.

O período de 2025 a 2035 foi decisivo. Pesquisas independentes revelaram que os católicos já estavam abaixo de 40%. O eleitorado evangélico cerrou seus votos nos candidatos exclusivos das igrejas reformadas. A virada no Congresso foi perto de 2032: 70 senadores declaravam-se ligados a alguma grande denominação pentecostal ou neopentecostal. Dois eram luteranos e um, presbiteriano. Havia um ateu declarado. Poucos ainda se diziam católicos.

O avanço numérico e político resultou em novas leis. O feriado de 12 de outubro foi mantido como o Dia da Criança Brasileira, mas não mais como a festa de Nossa Senhora Aparecida. Começou um movimento de reorientação geográfica. O Cabo de Santo Agostinho (PE) foi rebatizado como Cabo Só Jesus Salva. A cidade de Santa Maria (RS) tornou-se, em 2033, a Cidade do Evangelho. A batalha dos nomes foi mais forte em São Paulo. Por um tempo, dividiu-se o público entre os que chamavam de São Paulo e aqueles que diziam morar na cidade do Apóstolo Paulo. Por fim, a Câmara dos Vereadores aprovou a mudança em 2054, a tempo de comemorar o quinto centenário da metrópole.

O pastor Samuel de Oliveira e Silva foi eleito presidente pela aliança O Brasil É de Jesus. Sua vice era a bispa Francisca de Almeida. As verbas publicitárias corriam para a rede Record; escasseavam na Globo e na Bandeirantes. As novelas bíblicas estavam cada vez mais elaboradas. Surgiu até um Big Brother da família cristã. O paredão era para quem tivesse praguejado ou se esquecido de orar.

As lojas elegantes de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou da Oscar Freire, em São Paulo, passaram a vender a onda fashion evangélica. Aumentou a produção de ternos para homens. As roupas de praia passaram a utilizar mais tecido. Havia uma nova estética em ascensão.

O feriado católico de Corpus Christi virou o Dia Nacional da Marcha com Jesus. As ruas de todo o país foram tomadas de entusiasmados manifestantes. Em todos os campos, a vitória evangélica era visível. Alguns aderiram por convicção pessoal. Outros, especialmente políticos e empresários, entenderam que votos e verbas eram mais fáceis com participação em cultos. Como na vitória do Cristianismo, no Império Romano, a nova crença crescia nos corações, nos cérebros e nos bolsos.

A bispa que era vice do presidente Samuel foi eleita após os dois mandatos do pastor. Surgiu uma constituinte, e o Brasil foi declarado oficialmente cristão. Quebrava-se o verniz da laicidade do Estado que a República tinha tentado. Os novos feriados nacionais eram religiosos: o Dia da Bíblia, o da Família Cristã e a Festa do Dízimo. Aboliu-se o Carnaval, substituído por uma animada micareta de salmos. O Galo da Madrugada, no Recife, anunciava que Pernambuco também era de Jesus. Foi instaurado o concurso nacional de versículos. Ganhava o aluno do Ensino Fundamental que mais soubesse passagens de cor - da versão João Ferreira de Almeida, claro!

A mudança universitária foi rápida. Sendo porta de acesso à função de pastor, o curso de Teologia tornou-se o mais procurado Em 2040, havia mais candidatos por vaga na USP, para o Instituto Teológico da Universidade de São Paulo, criado cinco anos antes, do que para Medicina ou Engenharia Mecatrônica.

Grandes igrejas católicas iam sendo adaptadas para o culto evangélico. Foi comemorado o dia em que a Catedral da Sé, de São Paulo, virou um novo Templo de Salomão. A basílica de Aparecida removeu as obras do artista Cláudio Pastor e transformou-se na Igreja da Família Evangélica.

O mundo artístico tinha mudado. Anitta tornou-se militante da Assembleia de Deus; seus shows com vestido preto comprido cantando louvores eram emocionantes. Pablo Vittar era, agora, Apóstolo Rodrigues da Silva. Seus depoimentos de como tinha encontrado Jesus a caminho de Campinas (SP) bombavam nas redes. Ele havia sido derrubado da garupa de uma moto e ficado cego com uma luz intensa. Batizado, recuperou a visão. O TikTok era de louvores, apenas.

O turismo passou a conviver com novos roteiros como "a caminhada de Abraão", que ia de Parati a Tiradentes _ a pé. No caminho, encenações do sacrifício de Isaac e do encontro com Melquisedeque. As pousadas bíblicas, todas familiares, exigiam o certificado de casamento para hospedar um homem e uma mulher no mesmo quarto.

Não seria completo este relato histórico se eu não falasse do que ocorreu comigo. Após uma vida de ateísmo, aceitei ser batizado na Igreja Deus É Amor. A cena foi televisionada e alcançou muito ibope. Emergi das águas transformado e passando a rodar o Brasil, narrando a mudança. Agora, aos 75 anos, percorro a nova Terra de Santa Cruz, sempre dando o testemunho como um João que viu um novo Céu e uma Nova Terra.

Minha piedosa leitora e meu piedoso leitor: minha breve ficção produziu esperança ou medo em você? É utopia profética ou distopia? Sonho ou pesadelo? Bem, tente viver mais alguns anos e seja feliz. Amém!

LEANDRO KARNAL

1 BILHÃO DEADEPTOS ATÉ 2035

A regra é levar pouca coisa junto. Roupas, produtos de higiene e utensílios de cozinha, já que gostam de deixar a casa alugada por aplicativo com a sua cara. Não podem esquecer dos notebooks, fundamentais para trabalharem de qualquer lugar. Colocam tudo dentro do carro e partem para o próximo destino, onde devem ficar um ou dois meses, não mais do que isso, até escolherem outra cidade para morar.

A vida sem residência fixa tornou-se possível quando Stephanie Pedron e Eduardo Zanotto, de Porto Alegre, ambos com 34 anos, passaram a trabalhar em casa durante a pandemia. Vivendo em São Paulo, para onde se mudaram em 2019, quando ele aceitou uma proposta de um banco digital, já estavam cansados de ficar isolados em um apartamento. Decidiram cair na estrada sem precisar entrar em férias ou largar o emprego. Tornaram-se nômades digitais.

A ideia surgiu no inverno de 2021, durante um período de descanso em Capitólio (MG), onde se revigoraram em cachoeiras e trilhas após um ano trancafiados pelo medo do coronavírus. Ao retornarem à capital paulista, não fazia mais sentido manter os gastos na cidade grande se os chefes sequer exigiam que comparecessem ao trabalho. Todas as tarefas já eram cumpridas a distância, na frente do computador.

- Voltamos para São Paulo e decidimos: vamos entregar o apartamento e morar em Airbnb. Então vendemos toda a nossa mobília. Não sobrou nada - conta Eduardo, que trabalha como gerente de tecnologia.

Escolheram viajar pelo Brasil. Alugaram um carro e foram a Santos, no litoral paulista, e depois a Paraty (RJ). Em uma breve visita para matar a saudade da família no Rio Grande do Sul, fizeram uma parada em Garopaba (SC), onde prolongaram a estadia para três meses, mais do que o planejado. Ali, foi difícil dar adeus às amizades que acabaram criando.

Só cruzaram as fronteiras do país quando tiveram de cumprir um compromisso profissional de Eduardo no México, o que exigiu organização com o fuso horário. Mesmo no Exterior, Stephanie seguiu trabalhando para um aplicativo de pagamentos brasileiro, onde atua como gerente de produto. Precisou se alinhar com o horário comercial da empresa e só quando encerrava o expediente podia sair do hotel e conhecer a cultura dos mexicanos, batendo perna pelos bairros e visitando museus.

A preferência deles, no entanto, são os lugares menos badalados. Quando concederam entrevista a ZH, haviam retornado a Minas Gerais, dessa vez para ficar em Mariana, município conhecido pela arquitetura barroca. Alojaram-se em uma casa de dois andares em meio a construções de estilo colonial, com direito a um pátio onde mantêm uma horta.

Toda vez que são bombardeados com perguntas sobre a vantagem de não terem um lugar para chamar de seu, respondem com argumentos que podem dar inveja em quem só consegue viajar durante as férias.

- Claro que em vários momentos é um desafio ficar sempre se planejando para estar em outro lugar. Mas a gente tenta manter uma rotina, cuidar do corpo. Eu, por exemplo, sempre quis aprender a surfar. Em Garopaba, comecei a fazer aulas de surfe. Também pensava: será que não vou sentir falta da minha cozinha, com as minhas coisas? A experiência de viver em casas diferentes nos ajuda a pensar como será a nossa casa, no futuro. Brinco que virei sommelier de Airbnb. Se a gente viesse de férias para Mariana, nunca iríamos viver essa cidade como estamos vivendo - diz Stephanie.

Ser nômade digital é diferente de ser um turista, que deixa os compromissos de lado enquanto viaja, ou mesmo de alguém que se desloca para uma cidade a trabalho. Como observa a turismóloga Ivane Fávero, mestre em Turismo, o nômade digital agrega tudo: as obrigações e a vontade de conhecer um novo destino.

- O conceito tradicional de turismo é o de lazer não remunerado. O nomadismo digital quebra isso. A pessoa consegue trabalhar, estudar e fazer turismo em qualquer parte - define.

Embora já fosse tendência antes de 2020, a pandemia foi o empurrão que faltava para popularizar esse estilo de vida. De acordo com o relatório Tendências de Imigração 2022, emitido pela Fragomen, especializada em imigração, cerca de 35 milhões de pessoas aderiram ao trabalho remoto durante a crise sanitária. A estimativa da empresa é de que, até 2035, existam em torno de 1 bilhão de nômades digitais pelo mundo.

Além disso, segundo a Fragomen, 29 países já têm programas para facilitar o ingresso dos nômades digitais, entre eles o Brasil. Não há pesquisas sobre o número exato de nômades digitais no país, mas desde janeiro o Ministério das Relações Exteriores emite um visto específico para estrangeiros que comprovem vínculo de trabalho em outro país. Até 10 de agosto, haviam sido concedidas 124 autorizações. Outras 84 foram solicitadas até julho por pessoas que já estavam por aqui, sendo que 37 foram deferidas.

De acordo com o governo federal, a elaboração desse visto especial segue uma tendência de "migrações por estilo de vida" e foi formulado levando em conta experiências de países como Portugal, Austrália, República Tcheca, Tailândia, México, Costa Rica, além de polos mundiais de nômades digitais, como Bali, a Ilha da Madeira e as cidades de Lisboa e Berlim.

Em março deste ano, o Brasil também regulamentou o trabalho remoto, inclusive para estagiários e aprendizes, permitindo que o empregado exerça suas funções em outro país.

- A partir da pandemia, aprendemos que dá para trabalhar em casa, enquanto as empresas entenderam que isso é até vantajoso, porque há economia de despesas e a produtividade dos funcionários não cai. Em alguns casos, até melhora. Com o desejo acumulado de viajar, as pessoas estão tirando o atraso - afirma Ivane.

Mas ser um nômade digital não é para todos. Professora da disciplina de Sistemas de Informação do MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Neiva Coelho Marostica lembra que algumas profissões jamais vão permitir essa prática:

- Há profissões que não podem aderir ao nomadismo digital, como um atendente de varejo, por exemplo, já que ter alguém ali, presencialmente, é uma parte importante para o relacionamento com o cliente. Por outro lado, profissões que envolvem um ambiente digital, como produtor de conteúdo, desenvolvedor de sistema, designer, essas conseguem.

Foram os ventos que levaram Sara Bagatini ao Ceará. Aos 33 anos, ela vive na praia de Cumbuco, a 30 quilômetros de Fortaleza. Divide a rotina entre a função de gerente de produto em uma rede de lojas de eletrodomésticos no Rio Grande do Sul e a prática do kitesurfe, que depende de uma boa lufada de ar para deslizar pela água.

Também foi na pandemia que Sara mudou de vida. Entregou o apartamento em Porto Alegre porque já não precisava mais aparecer na empresa, sediada em Cachoeirinha, na Região Metropolitana. Com amigas que também trabalham a distância, passou a dividir o aluguel de uma casa em Ibiraquera, no litoral catarinense, onde aprendeu kitesurfe. Juntas, decidiram ir para o Nordeste, onde as condições de vento são ideais para o esporte.

Tudo muito diferente do que Sara havia vivido até 2019. Acostumada a bater ponto diariamente na empresa, enfrentava uma hora de trânsito para ir, outra para voltar. Não fazia esportes. Com a vida de nômade, deixou o carro na garagem da casa dos pais, em Guaíba. A carga horária de trabalho é a mesma, mas pode cumpri-la usando chinelos nos pés. No intervalo, pega o equipamento de kitesurfe e cai no mar.

- Valorizo o meu bem-estar. A Sara de hoje prioriza mais a saúde. Física e mental - frisa.

 KARINE DALLA VALLE