sábado, 29 de setembro de 2018



29 DE SETEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

MORTE ENCEFÁLICA E AS VIDAS QUE PRECISAM CONTINUAR

Depois de um trauma cerebral grave (pancada, tiro na cabeça, hemorragia cerebral por derrame), o cérebro pode inchar muito. E, como ele está dentro de uma caixa óssea, não tem para onde expandir, de tal modo que, se a pressão dentro do crânio aumentar muito, acaba apertando as únicas estruturas compressíveis da massa cerebral, os seus vasos. Chega-se, então, a um ponto em que não passa mais sangue para o crânio, e o cérebro, que não tolera ficar mais de quatro ou cinco minutos sem oxigênio, começa a morrer porque a porta de entrada de oxigênio está definitivamente bloqueada.

Por que esse mecanismo da morte encefálica é importante de ser entendido?

Para que se perceba que não é possível provocar morte cerebral no hospital, a menos que alguém considere razoável que um paciente na UTI possa ser vítima de espancamentos ou tiroteios. Não há subtratamentos ou supertratamentos clínicos que acelerem a morte do cérebro conservando o coração a bater. Tudo o que se possa inventar sobre isso é ignorância, fantasia, ou uma terrível combinação das duas.

Qual o significado da doação de órgãos?

Há muito tempo, a doação de órgãos vem sendo usada como um marcador de desenvolvimento social, porque mede com precisão o nível intelectual de uma região ou país. Não por acaso, nos países subdesenvolvidos, as doações são escassas. A construção de uma cultura doadora é uma tarefa de civilidade, e só a educação consegue dar naturalidade a esse gesto grandioso na essência, mas difícil na prática, porque é solicitado que seja generosa a uma família traumatizada pela dor da perda. Daí a importância da comunicação do desejo de ser doador em um momento de saúde plena. Se alguém anunciar em vida esta determinação, a família, sempre soberana na decisão, certamente fará o possível para cumprir a última vontade expressa em vida.

Ensinar nas escolas básicas o que significa morte encefálica e como se processa a doação de órgãos devia ser objeto de portarias e leis que criassem a obrigatoriedade de educar para a cidadania.

Enquanto a educação não chega, a mídia, principal modelador contemporâneo do comportamento social, deve assumir com sobriedade este papel, evitando notícias estapafúrdias sem nem ao menos verificar a credibilidade da fonte. Uma sociedade desconfiada não doa e, com isso, milhares de pacientes que necessitam de um órgão para viver vão ser penalizados com a morte sem que tenham nenhuma culpa. Não se pode esquecer que o transplante é a única modalidade de tratamento médico que necessita da sociedade para que ela mesma seja beneficiada. Além disso, todos nós somos mais candidatos a receptores do que a doadores de órgãos, e podemos a qualquer momento necessitar de um transplante para continuar vivendo. Melhor pensar nisso antes que a desgraça lhe bata à porta

Por outro lado, cabe ao Estado a disponibilização de uma coordenação estadual efetiva, que ofereça com um máximo de agilidade os instrumentos de comprovação da morte encefálica, uma equipe altamente qualificada para o difícil momento da abordagem familiar para a doação e os cuidados de terapia intensiva para que aquele doador preserve viáveis o maior número possível de órgãos.

Com tudo isto disponível, estará montado o cenário para o transplante, esta prática médica que exige um alto nível de qualificação técnica e um incomparável índice de comprometimento pessoal dos envolvidos. O trabalho exaustivo que frequentemente vara madrugadas, a remuneração precária do SUS, financiador de mais de 95% dos transplantes, a burocracia exasperante, a infraestrutura deficiente de muitos hospitais, nada disso diminui o encanto daqueles que se alimentam da impagável e indescritível alegria de aliviar sofrimento. Uma sensação tão maravilhosa que quem já provou sabe bem, e a quem não, nem adianta explicar.

J.J. CAMARGO