sábado, 29 de setembro de 2018

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29 DE SETEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

COMO TRATAR ALGUÉM?

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Jovens, confiem no tio: existia um tópico em Português chamado pronomes de tratamento. Estudávamos toda a lista: Vossa Senhoria, Sua Excelência, Ilustríssimo, Vossa Magnificência, Reverendíssimo, suas respectivas formas abreviadas, usos corretos e, refinamento final, quando usar Sua Excelência e Vossa Excelência. O uso era maior do que hoje: quase toda carta chegava ao meu pai com Ilmo. Dr., e nós olhávamos a abreviatura com a tranquilidade de quem sabia o significado. Todos os mais velhos eram senhor e senhora. Meu pai usava o já arcaico senhorita seguido da expressão por obséquio. 

O mundo tinha matizes, vieses, vernizes e salamaleques. O tu e o você eram reservados para intimidades enormes e total isonomia: mesma idade, mesmo gênero, mesma renda. O uso do Seu era um pouco mais comum para pessoas que exerciam funções simples. Difícil saber se chamar o jardineiro de Seu era um gesto de respeito ou uma demarcação de espaço social. No Rio e no Nordeste, com muita frequência, sou chamado de Seu Leandro e acho simpático. Em São Paulo e Brasília, noto mais o doutor.

Gosto muito do título de professor. Sinto-me um professor, vivo a profissão, tenho orgulho dela. Quando alguém diz "mestre" como se fizesse alusão ao próprio Yoda de Guerra nas Estrelas, acho mais deslocado. Professor sempre me agrada. Meu pai, professor e advogado, sempre era doutor. Eu, professor com grau de doutoramento, quase sempre sou professor. Nunca tive anel de formatura, mas os advogados usavam rubi; os médicos, uma cintilante esmeralda. Nós, professores, teríamos direito a uma pedra negra, ônix, não sei se metáfora de algo.

Os títulos caíram de moda. Cintilam ainda em encraves como o ambiente clínico, o jurídico ou o diplomático. Lá, são obrigatórios e esperados. A gravata ou o estetoscópio demandam o tratamento. Nunca fiz muita questão de respeito demonstrado em pronomes, mas, confesso, a intimidade excessiva e sem base histórica de relação é mais incômoda do que ser chamado de professor-doutor.

Há uma paralaxe, um desvio, que preciso ressaltar. As pessoas são mais íntimas minhas do que eu delas. Algumas afirmam: "Durmo com você todas as noites" e, por mais que eu perscrute o rosto da interlocutora, nenhuma memória de infração do sexto mandamento vem à lembrança.

Quanto mais subimos o mapa do Brasil, mais temos uma sociabilidade que inclui o corpo e o toque. Chama-se pelo nome, toca-se muito, fala-se a uma distância de invasão da zona de conforto. A intimidade sem nenhum lastro prévio é algo inquietante para mim. Ouvi, há anos, uma anedota envolvendo Jânio Quadros, por certo apócrifa. 

Uma repórter faz uma questão chamando-o pelo nome de batismo e ele, empertigado, responde que "intimidade gera filhos e problemas" e que ele não desejaria nenhuma das duas coisas com a dita profissional. Em um país de corpos enlaçados, a figura mesoclítica de Jânio deveria causar espécie, mas, confesso, existe uma discreta fraternidade minha com o falecido presidente em torno da anedota. Quando lidamos com pessoas não conhecidas, o cordão sanitário é algo desejável.

O brasileiro é cordial, assevera mestre Buarque de Holanda. Ao encontrar alguém, abraçamos, retiramos pó do ombro, espanamos, mexemos nos botões e invadimos regiões do corpo alheio inadmissíveis para o padrão europeu. Chamamos quase todos pelo nome e já inventamos apelidos no primeiro contato.

Sou um homem de 55 anos que gosta de ser tratado de senhor por aqueles que eu não conheço e pelo título de professor em casos profissionais. Com os íntimos, gosto do nome. Nunca tive apelidos e o surgimento de Lê ou Lelê só me irrita. Acho "Seu" pouco e "Doutor" excessivo. Sei que quem me chama de "Mestre" ou "Seu" não está me atacando ou diminuindo, apenas usando algo do seu universo de sociabilidade.

Alguém poderia pensar que sou conservador e que, no mundo atual, qualquer formalidade pode ser dispensada. Na mesma esteira, mas em outra direção, poderiam dizer que apenas gosto de enaltecer diferenças e hierarquias entre pessoas que, Deus ou a República, tornam iguais a mim. Talvez essa crítica seja válida, mas, se eu tomar a mesma argumentação a meu favor, poderia dizer que justamente por desconhecer alguém, seus limites, gostos e idiossincrasias, além de saber que essa pessoa partilha o mesmo direito que eu tenho, aproximo-me com cautela e respeito. 

Meu receio de incomodar, cruzar fronteiras sem ser convidado, torna imperativa a regra de certas condutas de etiqueta pronominal e contenção das mãos, abraços e beijos. Formalidade nunca ofende. Forçar intimidade sempre o faz. Em suma, para responder à pergunta que está no título: trate a pessoa a sua frente como imagina que ela gostaria de ser tratada e não como você gostaria de ser tratado. Se não a conhece, use da formalidade sem perder o espírito republicano.

Como sempre, despeço-me com súplicas de que este texto os encontre bem, reforçando aos senhores, senhoras e senhoritas, caríssimos leitores e leitoras, meu mais inefável respeito. Deixo-lhes com votos de estima e consideração: é preciso ter esperança!

LEANDRO KARNAL