sábado, 6 de agosto de 2022


06 DE AGOSTO DE 2022
ELIANE MARQUES

ERINLÉ E A VERGONHA NOSSA DE CADA DIA

A morte é raramente obtida com a vergonha; mas, dificilmente, alguém deixou de morrer de vergonha. Sobre isso, Erinlé pode nos falar. Na coluna anterior, o abandonamos morrendo de vergonha porque lhe faltava dinheiro para suas dívidas; nesta coluna, ele morrerá de vergonha, ao que parece, porque foi acusado de crimes. Por sua generosidade e habilidade na caça de elefantes e de outros animais, Erinlé era admirado pelo povo de Ijebu. Mas havia os invejosos que um dia o acusaram de ter subtraído cabras e ovelhas do rei, de ter escondido suas peles e espalhado por aí que se tratava de carnes de animais selvagens. 

O rei então determinou que o acusado fizesse sua defesa. Afirmando que sua caça falaria por ele, o caçador trouxe ao rei as peles dos animais que havia caçado - presas de elefantes e de javalis, peles de antílopes, gamos e veados. Reconhecida a inocência do acusado, o rei ordenou que ninguém mais falasse no assunto. No entanto, a acusação seguia falando em Erinlé que, triste e inconformado, nunca mais caçou ou comeu com seu povo. Erinlé, em desespero, fustigava seu corpo com a chibata até que entrou em um rio e nunca mais foi visto, tornando-se o orixá do rio.

Ao trazer a vergonha como elemento mestre, o itán transcrito evidencia o corpo, a imagem e o olhar como constituintes do laço social, isso que nos une ou nos separa uns dos outros - o corpo fustigado do caçador, sua imagem íntegra rompida pelo crime e o olhar acusador do povo, do rei, mas também dele próprio. É pela imagem, pelo corpo e pelo olhar que a vergonha nos despe de algo até então caríssimo em nossa subjetividade. Como sujeitos habitados pela linguagem, a vergonha nos despe mesmo das palavras, falando ela mesma de algo que ainda não se simbolizou.

Erinlé fustiga sua pele, o invólucro do "eu", como se estivesse castigando as peles dos grandes animais que lhe deram fama ou dos pequenos animais que foram emaranhados na mentira contada ao rei por alguns do povo. Os animais integram a metáfora do fracasso erinleliano. As peles deles são a pele de Erinlé, dividida, recortada entre o herói do povo e o mentiroso.

Assim como em outro itán Iemanjá fala por Erinlé, que teve sua língua cortada por ela; neste, as peles falam por ele, quer a pretensa verdade ou a pretensa mentira. Por isso se diz que há correspondência entre sintoma e inconsciente, sendo um o avesso do outro. O sintoma revela como cada um organiza discursivamente o seu gozo. Todavia, se há alguma verdade com Erinlé é a de que sua vergonha nasce de um buraco, furo, falha, não como defeito, mas como algo que nos estrutura como sujeitos - não há como ser sempre o mesmo, ter sempre uma imagem íntegra (inteira) para si e para os outros de si, algo mancará.

Assim, a vergonha mostra o buraco que o pudor tenta encobrir com a virtude. Erinlé experimenta a vergonha ao se surpreender com a dissolução de sua identidade de grande caçador amado pelo povo. Nesse momento de ruptura com a imagem totalizante, ele se apronta para a morte.

ELIANE MARQUES

Nenhum comentário:

Postar um comentário