Ferreira Gullar
Tragédia desnecessária
Hoje, muitas clínicas
psiquiátricas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos
A morte de Eduardo Coutinho
chocou o país e particularmente os seus amigos. Morrer assassinado era a última
coisa que alguém poderia prever que ocorresse com ele. Por isso mesmo, ao
chegar em casa e ver seu rosto na televisão, me detive pensando que se tratava
de alguma notícia relacionada com sua atividade de cineasta. Não era, logo ouvi
o locutor dizer que ele havia morrido, e fiquei surpreso. E logo acrescentou
que havia sido morto por seu filho Daniel, de 41 anos.
Não dava para acreditar naquilo,
era absurdo demais. Não obstante, aos poucos, aquele quadro trágico ia se
completando e ganhando realidade. O filho era doente mental e consumia drogas.
Matara o pai a facadas e tentara fazer o mesmo com a mãe; em seguida,
esfaqueou-se a si mesmo, mas não morreu.
Teria declarado a um vizinho que
fizera aquilo para libertar os pais e a si mesmo. Sem dúvida, é preciso estar
louco e surtado para pensar e agir dessa maneira. Depois de saber essas coisas,
não restava dúvida: Daniel agira tomado por um surto esquizofrênico.
Não sabia que Eduardo Coutinho
tinha um filho com esse problema. Segundo ouvir dizer, parece que ele não
admitia que o filho fosse doente mental e, se isso for verdade, certamente
evitava tratá-lo com tal. Pode não ser verdade mas, se for, não seria o único
caso de uma família não admitir que algum de seus membros seja louco. Conheci
uma família que manteve trancado num quarto, por mais de uma década, um filho
com problemas psíquicos.
Esse tipo de comportamento
decorre quase sempre de uma visão preconceituosa da doença mental, como se sua
incidência na família fosse uma espécie de maldição. Era assim no passado.
Hoje, no entanto, são pessoas avançadas que negam a existência da doença
mental. Segundo elas, trata-se apenas de um relacionamento diferente com o
mundo real. Admitir que alguém é louco seria nada mais nada menos que um preconceito.
Certamente, quem pensa assim
nunca viveu de fato o problema. Como pega bem mostrar-se avançado, aberto,
antirrepressivo, muita gente não apenas nega que a loucura seja doença como,
coerentemente, se opõe à internação nos chamados "manicômios". Criaram
até um movimento que se intitula "antimanicomial", que visa, de fato,
acabar com as clínicas psiquiátricas, uma vez que o que se chama de manicômio
não existe mais.
É verdade que, no passado, a
internação nesses hospitais implicava em agressão física e choques elétricos,
mas não por simples crueldade e, sim, pelo desconhecimento das causas da doença
e de medicamentos apropriados.
Com a descoberta dos remédios
neuroléticos, os hospitais psiquiátricos mudaram radicalmente. Hoje, muitas
dessas clínicas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos. Já não
lembram em nada os hospícios de antigamente, que mais pareciam prisões.
Os adeptos da nova psiquiatria
fazem por ignorar essa mudança para justificar sua tese contra a internação.
Essa tese surgiu em Bolonha, onde foi implantada com resultados desastrosos: os
doentes pobres terminavam nas ruas como mendigos.
Isso já começa a acontecer no
Brasil que, tendo adotado a tal nova psiquiatria, levou à extinção de mais de
30 mil leitos em hospitais públicos. Quem tem recursos interna seus doentes em
clínicas particulares, enquanto os doentes pobres morrem na rua. E isso é obra
de um governo que diz trabalhar em favor dos necessitados.
Tive oportunidade de conversar
com pessoas que se opõem à internação de doentes mentais e me dei conta de que
nada sabem da doença e aceitam a nova psiquiatria por acreditarem que favorece
aos doentes. Na verdade, a internação só tem cabimento quando o doente entra em
surto e consequentemente torna-se um perigo para si mesmo e para os outros. Foi
o que aconteceu no caso de Eduardo Coutinho.
Desconheço a situação por que
passava sua família naquele momento, mas não resta dúvida de que o filho
Daniel, que é esquizofrênico, entrou em surto. Não sei por que os pais não
solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que, se
o tivessem feito, aquela tragédia dificilmente teria ocorrido.
Espero que esse exemplo terrível
leve as pessoas refletirem melhor sobre essa questão.