13 DE OUTUBRO DE 2018
J.J. CAMARGO
O RESPEITO AO RITUAL
Porque as coisas importantes exigem um mínimo de ritual é que nos constrangemos tanto com bagunças em algumas formaturas universitárias ou ataques de riso em velórios.
Desde sempre, sabe-se que os momentos realmente importantes em nossas vidas, e são poucos, precisam ser marcados pela solenidade, para que se justifique a importância que pretendemos que tenham no imaginário de terceiros, pois nos nossos corações já os sabemos definitivos.
Coerente com isso, os registros fotográficos da vida dão realce ao nascimento, à graduação, à prole, à mudança de escalas do poder, ao matrimônio ou à morte. Afora esses instantes inesquecíveis, em que o formalismo é tão previsível que se torna espontâneo, existem outros em que o respeito ou não ao ritual pode agigantar ou encolher o que fazemos. Com a possibilidade de compras virtuais, em que ninguém vê a cara de ninguém, desapareceu o ritual do comércio antigo, em que os velhos comerciantes se sentiam ofendidos se o comprador fosse direto ao assunto, atropelando a cordialidade que permeava as relações entre duas pessoas que, antes de serem mercadores, eram seres civilizados.
Os funcionários das grandes lojas ainda tentam resgatar esse formalismo antigo que inspira cordialidade, e sistematicamente perguntam o nome do cliente, o que, em geral, serve para chacoalhar o freguês que, sempre apressado, tende a dispensar o "Boa tarde!", imagina o "Como vai?".
Os médicos da modernidade, encantados com a riqueza de informações asseguradas pelas técnicas contemporâneas de imagem, foram progressivamente abandonando o exame físico, convencidos de que não há nada que inspeção, palpação, percussão e ausculta possam detectar que a tomografia de última geração já não tenha informado, e com superioridade. Além dessa convicção ser mais pretensiosa do que verdadeira, ignora-se que o exame físico, reconhecido como um ritual, representa uma das maiores oportunidades de aproximação, tanto material quanto afetiva, entre duas pessoas reunidas pela aleatoriedade de uma doença que, vitimando uma, encaminhou-a ao socorro da outra.
Abraham Verghese, um infectologista e professor na Universidade de Stanford, relata uma experiência comovente, atendendo vítimas terminais da aids. Durante uma manhã, percorrendo a grande enfermaria de doenças infecciosas, visitou um desses pacientes que, semicomatoso, deveria morrer naquele dia. Tendo verificado o quanto a pressão estava baixa e o pulso quase impalpável, encerrou o exame e se preparava para sair, quando percebeu que o moribundo despertara e, num movimento meio desordenado de mãos trêmulas, tratava de abrir os botões do pijama e lhe oferecia o peito magérrimo para que ele auscultasse.
Como a dizer que não importava que aquela fosse a última vez: o ritual que os aproximara durante tantas semanas tinha que ser cumprido. E, naquele momento, serviria ao menos para anunciar que ambos, médico e paciente, estavam, ainda que temporariamente, equiparados na maravilha de continuarem vivos. Só isso já garantiria ao ritual ares de comemoração. Não cumpri-lo seria uma desnecessária antecipação da morte, que virá quando tiver que vir. Antes, não.
J.J. CAMARGO