sexta-feira, 19 de outubro de 2018



Janelas indiscretas de Letícia Lampert 

Lendo os textos em português e inglês e contemplando as fotos do belo e criativo livro Conhecidos de vista - Known by sight (Ideograf, Fumproarte), de Letícia Lampert, não há como não lembrar do celebrado filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, no qual um homem, imobilizado por causa de uma perna quebrada, espia o que julga ser um crime através da janela do vizinho. 

A obra é um culto aos desejos de viver através do olhar, uma ode ao tenso e libidinoso voyerismo. Impossível também não relacionar o livro de Letícia com o clássico Cidades invisíveis, ficção do genial professor e escritor italiano Italo Calvino. Nele, a fantasia mescla-se com a história e o viajante Marco Polo fala de 55 cidades que têm nomes femininos. Olhares, janelas, cidades, mundos infinitos. Lembrei também de uma janela de um prédio perto do meu que, de madrugada, tem frequentemente as luzes acesas. 

Não conheço o(a) insone, mas faz alguns anos que, olhando para lá, noto que tenho a companhia de um(a) desconhecido(a) íntimo(a) durante o silêncio da noite. Algum dia gostaria de saber quem é o notívago, mas não tenho pressa alguma. A noite é uma criança. Letícia esteve em mais de 50 apartamentos situados em áreas centrais de Porto Alegre. Escolhas foram feitas ao acaso, sem hora marcada. 

Mas a autora estabeleceu que os apartamentos deveriam ser localizados em ruas estreitas, com prédios de ambos os lados. Porteiros e zeladores tornaram-se os principais curadores do projeto, auxiliando na escolha dos moradores e facilitando o trabalho da fotógrafa. As fotos mostram janelas e sacadas quase sempre vazias, raras com pessoas. Em uma foto, operários num jaú suspenso trabalham. Em outra, um homem está sozinho na sacada e, em outra, uma faxineira limpa um vidro, cuidando-se para não cair lá das alturas. Boa parte das janelas está fechada, como se fossem olhos cerrados, adormecidos. 

Há fotos dos interiores dos apartamentos, sem os moradores e pequenos textos que contam suas histórias. Solidão, silêncio, fotos realistas (ou hiper-realistas), cores suaves, apartamentos parecidos com colmeias ou pombais e visões das luzes e das sombras daquelas muitas janelas, salas, cidades e habitantes, que não estão nas fotos de certo para não roubarem a cena. É possível conhecê-los pelos detalhes das cortinas, dos móveis, das camas desarrumadas e dos velhos aparelhos de TV. Penso que as fotos da Letícia me fazem lembrar meu pintor norte-americano preferido, Edward Hopper, o pintor da "solidão americana". 

As telas de Hopper têm pouquíssimas pessoas, geralmente sozinhas e, em geral, apresentam cenários, paisagens e casarios sem seres humanos. Não por acaso, ao que parece, Letícia escolheu áreas centrais e mais antigas da cidade, onde a pátina do tempo e o próprio tempo vão pousando lentamente, como acontecia há muitos anos atrás. 

Mas há vida dentro e fora das janelas, algum gato ou cachorro e, sim, sempre alguma mulher seminua sendo espiada e sempre alguns acontecimentos vão mostrar que o mundo não acabou. 

A propósito... 

As centenas de janelas, salas, cenários e os textos do livro mostram como existem muitas cidades dentro da nossa cidade. Muitas histórias contadas ou não. Mistérios e revelações. 

Moradores olham para as janelas dos vizinhos nas manhãs e ficam felizes quando a janela da velhinha que mora sozinha está aberta e aí eles não precisam se preocupar, vendo que a vida continua, que a vela não apagou, que os antigos elevadores sobem e descem, que os porteiros e zeladores seguem vigilantes, dando conta de tudo o que acontece ou que não acontece. Os olhos são as janelas da alma, disse Shakespeare, e as janelas são as molduras dos encontros ou das solidões. (Jaime Cimenti) - 

Jornal do Comércio 
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/10/652815-ensaios-de-ficcao-de-marcelino-freire.html