quinta-feira, 25 de novembro de 2021


25 DE NOVEMBRO DE 2021
CARPINEJAR

Meu colega que dormia cedo

Eu descobri que existia alguma coisa errada na vida quando tinha sete anos, numa conversa distraída com meu colega no nosso recreio. As classes sociais conviviam diante da lousa - não havia nenhum medo dos pais de matricular o filho em ensino público para enfrentar o vestibular. As crianças iam para a escola mais perto de sua casa, em seu bairro. A localização influenciava decisivamente as escolhas educacionais. O que se levava em consideração era a dispensa de carona.

Até aquele momento, jurava que todos se mostravam iguais por dentro e por fora. Trajávamos a mesma camiseta branca com escudo da E.E. Imperatriz Leopoldina e a mesma calça azul com três listras nas laterais. Os mesmos cabelos desgrenhados de quem acordou de repente, as mesmas remelas, os mesmos silêncios profundos da manhã. Falávamos de rotina. Contei que eu dormia às 22h30min, depois de me esbaldar no sofá. Acabava a novela e não tinha mais mordomia. Nem adiantava espernear. Seguia de bico calado para debaixo das cobertas. Tentava enganar as horas matraqueando depois com os meus irmãos no escuro do quarto, em nosso telefone sem fio dos beliches.

Iragi me respondeu secamente que dormia às 20h. Eu fiquei assustado por ser tão cedo. Recém haveria anoitecido. A Lua nem piscaria os seus olhos de Georges Méliès. Concluí que sofria a repressão da família, ou enfrentava um castigo por alguma malandragem, ou aquilo consistia numa invenção de disciplina dos adultos.

Julguei a sua conduta de acordo com o meu mundo.

Foi quando ele me respondeu o motivo e quebrou as minhas pernas:

- Durmo cedo para não sentir fome.

Ele usava o sono para enganar a vontade de comer. Não jantava, a sua próxima refeição vinha a ser a merenda da escola, a única de seu dia.

- É mais fácil me esquecer do estômago roncando. Tomo muita água e deito. Ele não bebia água, comia água.

Explicou a situação com naturalidade, longe de qualquer ênfase de novidade, habituado a uma estratégia antiga de sobrevivência, com uma franqueza esgotada de mistérios.

Nunca mais falei por ninguém. Não tenho essa pretensão. Eu escuto. Escutar é ser um pouco o outro. Só posso ser um pouco. Um pouquinho.

Iragi passou a almoçar comigo ao meio-dia na minha residência. Não salvei a sua vida. A diferença é que o almoço virou seu jantar.

CARPINEJAR

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