terça-feira, 25 de janeiro de 2022



25 DE JANEIRO DE 2022
NÍLSON SOUZA

O homem do guarda-chuva

Montado num fogoso alazão dourado, o príncipe ergue a sua espada. Dez integrantes de sua comitiva (provavelmente os bajuladores do cercadinho da época) erguem seus chapéus. Trinta soldados com uniforme de gala, todos a cavalo, também levantam suas armas para o alto em apoio ao líder. Atrás deles, um solitário civil, usando uma cartola de mágico, ergue pateticamente o seu guarda-chuva. Completam a cena três legítimos penetras: o homem que conduz a carreta de bois com toras de madeira, outro cavaleiro anônimo e um cidadão negro ao lado de um jumento de carga.

Assim, com esses curiosos personagens, ficou gravada a imagem mais famosa da história do Brasil, O Grito do Ipiranga, obra do pintor Pedro Américo concluída em 1888, mais de 60 anos depois da data oficial da Independência. Pois estamos nos encaminhando para a celebração do bicentenário do brado retumbante e a obra um tanto fantasiosa do paraibano continua sendo um dos principais documentos da nossa soberania nos museus e nos livros didáticos.

Hoje, talvez com exceção de alguns monarquistas mais fanáticos e dos terraplanistas de sempre, todo mundo sabe que não foi bem assim. Garantem os historiadores que Dom Pedro viajava montado numa mula e até que estava com dor de barriga no dia do rompimento com Portugal.

Há, inclusive, o depoimento de um tal coronel Marcondes de Oliveira Melo, então subcomandante da guarda de honra e mais tarde Barão de Pindamonhangaba, contando que a montaria do imperador era uma "baia gateada".

Pedro Américo sequer tinha nascido quando as margens plácidas do Ipiranga ouviram o suposto brado do príncipe-regente. Porém, depois de receber uma bolsa de Dom Pedro II para estudar em Paris e de ser contratado pela família imperial para retratar o acontecimento, o artista não teve dúvidas em dar matizes épicos à cena famosa. Mais tarde, justificou-se: "Um pintor não pode ser escravo da realidade".

O personagem mais intrigante da tela, para mim, é mesmo o homem do guarda-chuva. Dizem alguns estudiosos que o próprio autor deu um jeitinho de se colocar no entrevero - tornando-se, assim, testemunha do momento histórico. Não sei, não. Desconfio de que aquele sujeito estava prevendo as tormentas que o país recém-emancipado enfrentaria ao longo de sua história.

NÍLSON SOUZA

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