quinta-feira, 4 de outubro de 2018


04 DE OUTUBRO DE 2018
CLÓVIS MALTA

O mundo dos pedintes


Se tem algo realmente perturbador e trágico nesta época em que nos coube contracenar juntos no planeta Terra é a cara dos pedintes de rua.

Já experimentou dar uma conferida na expressão de algum deles, mesmo rápida, assim como quem só espia?

É difícil, pois o medo nos toma até o espaço da compaixão. Hesitamos diante dessa síntese assustadora do que não queremos para nós, nem para os nossos. Como os políticos em geral, achamos melhor ignorá-los.

Ainda assim, se possível, tente olhá-los. Dá para vê-los passando diante da janela, em todos os semáforos, no portão de casa, na entrada e saída dos templos, colados no vidro do carro ao nosso lado, até mesmo entre as mesas de cafés ao ar livre nas quais, nesta época, as árvores majestosas despejam o esplendor de suas flores. Mais um pouco e poderemos descobri-los também embaixo da nossa cama, sob susto.

Pode até parecer, mas os que imploram por dinheiro a toda hora e em qualquer lugar não são iguais. Alguns malabaristas pintados de prata passam o chapéu orgulhosos de sua arte. Os engolidores de fogo se movimentam como quem agradece aplausos. E há esses que tentam explorar nosso amor por cães, exibindo-os no colo, mas não merecem sequer aquela moedinha de um centavo.

Alguns até tocam um instrumento, outros exibem silenciosamente um cartaz com a palavra fome em letras gigantes, ou têm a expressão de quem parece sonhar com trufas, de quem fantasia mastigar pão fresco bem devagarzinho. Mas o que dizer dos insistentes além da conta, dos que surgem do meio das trevas com um limpador de para-brisas em punho, dos que se desequilibram grotescamente sobre muletas improvisadas, dos que se mostram agressivos, ameaçadores, como quem vai partir para o ataque?

Podemos não vê-los, o que é sempre uma tentação. Podemos simplesmente tentar esquecê-los. Mas, se os encararmos, se levantarmos os olhos, assim, meio enviesados, vamos entender o que é o horror e o humano a um só tempo. Há muito mais que a máscara a nos encarar como se fôssemos uma máquina inesgotável de dinheiro fácil.

Impertinentes ou dóceis, os que dependem de nosso troco para sobreviver já atingiram ou estão próximos de um último e degradante estágio da condição humana. É um ponto a partir do qual ninguém mais recupera dignidade, pois se transforma em fera pela força dos ventos, do sol, do simples passar dos dias, das tempestades monumentais de primavera que se erguem do nada nesta época.

Então, aturdidos, ficamos a nos perguntar como foi possível. Onde estávamos quando deixamos vingar essas vidas secas, esse grande sertão: veredas, essa morte e vida severina a nos torturar continuamente em plena Porto Alegre?

A estupefação tardia tem a ver com a que se transformou num conhecido poema de Manuel Bandeira. É aquele em que o poeta, na sua faina, ao perceber comida sendo caçada entre detritos e engolida com voracidade, imaginou logo um animal, mas foi obrigado a concluir, aterrorizado: "O bicho, meu Deus, era um homem".

CLÓVIS MALTA