DAVID COIMBRA
Eu, fora!
A Marcinha tem uma tia chamada
Percília, que é mesmo ótimo nome de tia. Pois deu-se que, tempos atrás, a Tia
Percília estava sacando dinheiro de um caixa eletrônico, numa daquelas salas
envidraçadas, e um ladrão entrou. O cara chegou sem cerimônia, como soem chegar
os ladrões, anunciando o assalto e ordenando com agressividade:
"Passa a grana! Passa a
grana!"
Os outros três ou quatro clientes que
estavam no lugar se alvoroçaram e, trêmulos, começaram a botar maços de
dinheiro nas mãos do bandido, enquanto a Tia Percília, rapidamente, girou nos
calcanhares, jogou uma mão para o alto e avisou:
"Eu, fora!" E saiu sem
mais explicações, deixando assaltante e assaltados perplexos na caixa de vidro.
Penso que a Tia Percília fez muito
bem. Sempre quis ter essa atitude em relação a certas exigências da vida, e só
não fiz assim antes por ter me faltado a ousadia que sobrou a ela. Mas é como
vou me comportar a partir de agora. Não venham tentar me envolver em coisas das
quais não quero participar. Não vou, e pronto. Eu, fora!
Lembro, por exemplo, de quando fui
fazer minha primeira carteira de identidade. Fiquei horas sentado numa
antessala de alguma repartição, acho que era uma delegacia. Horas! Recordo de
ter cogitado: "Por que estou sentado aqui? Por que tenho de fazer carteira
de identidade? Por que preciso me identificar? Eu sou eu, é isso que importa.
Se as pessoas perguntarem, responderei se quiser. Se não quiser, não me
identifico. Por que elas têm de saber quem sou? Só porque um sujeito trabalha
na polícia ele acha que sou obrigado a dizer meu nome para ele?"
Aquelas considerações me encheram de
revolta, mas depois um funcionário me chamou e botei minha impressão digital
naquele papel e assinei e saí humilhado.
A mesma coisa o passaporte. A
existência do passaporte é um absurdo filosófico. Por que um ser humano não
pode se deslocar de um lugar para outro livremente? Propriedade privada, tudo
bem, posso admitir, mas como é que podem tornar um país inteiro propriedade
privada? Não existem fronteiras para os bichos, o sabiá que canta no meu
quintal pode voar para o Uruguai ou para os Estados Unidos ou para a Coreia do
Norte, se tiver fôlego para isso. Cachorros, esquilos e elefantes não são
detidos em aduanas. Não é possível alguém achar que tem direito de me impedir
de caminhar por uma rua, qualquer rua, de qualquer cidade do mundo.
Então, eu deveria ter dito, lá atrás:
"Carteira de identidade? Eu, fora! Passaporte? Eu, fora!" CPF,
carteira de trabalho, carteira de motorista? Estou fora. Mas a mais escandalosa
de todas as exigências é a primeira delas, a certidão de nascimento. Eles
querem um documento que certifique que nasci! Se estou bem na frente deles,
como eu poderia não ter nascido? Inacreditável a pretensão dessa gente!
Por que um homem não pode
simplesmente fazer o que bem entender, em paz, se não estiver incomodando
ninguém? Por quê?
Mas a questão é que nunca disse
"eu, fora". Fui aceitando, me submetendo, me deixando moldar pela
forma de viver que eles impõem. Mas acabou. Não me pegam mais. Exercerei minha
liberdade com plenitude, como Tia Percília. Não preencherei formulários, não
aceitarei condições, não usarei hashtags, não me registrarei em lugar algum.
Cerimônias e seminários? Pagamento de contas? Filas? Tratamento de canal?
Doenças e envelhecimento? E agora, a última exigência coletiva, a covid-19? Não
contem comigo. Eu, fora!
DAVID
COIMBRA
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