terça-feira, 19 de janeiro de 2021



19 DE JANEIRO DE 2021
NÍLSON SOUZA

Plano B 

Dona Julieta foi uma vizinha simpática na minha infância. Era uma senhora amável, gostava de crianças e ria alto com o seu inconfundível dente de ouro. Porém, toda vez que ela nos visitava, eu e meus irmãos nos escondíamos em algum canto menos acessível da casa ou buscávamos imediatamente a porta da rua para fugir. Costureira reconhecida na vizinhança, ela levava no currículo outra habilidade apreciada pelos adultos, mas amaldiçoada pela criançada: aplicava injeções.

- Não vai doer nada! - dizia suavemente, enquanto a água da caixinha metálica fervia com a seringa de vidro e algumas agulhas que já haviam furado a pele de quase todas as crianças e adultos do bairro. Sim, senhoras e senhores, naqueles tempos pretéritos era assim: não havia seringa descartável. O aparelho passava por uma fervura cuidadosa e estava pronto para ser utilizado novamente no combate às enfermidades rotineiras de uma população pouco assistida pelos serviços públicos de saúde.

Assim superamos sarampos, cataporas, coqueluches e outras infecções contagiosas de uma época marcada pela carência de recursos e de informação. Sobrevivemos todos - menos a própria dona Julieta, que já passou para outra dimensão, embora ainda viva na lembrança de suas antigas vítimas como uma mulher corajosa, humanitária e prestativa, que manejava agulhas para remendar roupas e salvar vidas. Tanto que pensei imediatamente nela ao ler a notícia de que a vacinação contra o coronavírus pode atrasar ou ser interrompida por insuficiência de seringas e outros insumos básicos para a imunização dos brasileiros.

Depois do apagão de oxigênio em Manaus, da ridícula disputa de paternidade política pela vacinação e da confusa negociação com a Índia, só o que nos falta é ter que voltar ao tempo da esterilização precária de agulhas no fogão da cozinha.

Em vez de dia D e hora H para a promoção de políticos mais interessados na própria imagem do que no bem-estar da população, precisamos é de um plano B para efetivamente salvar vidas e, ao mesmo tempo, reconhecer a ciência e os profissionais que - como minha antiga vizinha - fazem o que é preciso fazer, sem esperar sorrisos, agradecimentos e votos dos beneficiados.

NÍLSON SOUZA

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