sexta-feira, 29 de janeiro de 2021


23 DE JANEIRO DE 2021
ENSAIO

KAFKA e o conavírus 

Estou relendo Franz Kafka (1883-1924), numa edição da Pinguim Companhia, com bela apresentação de Modesto Carone, e percebo, à medida que avanço na leitura, principalmente no conto intitulado A Metamorfose, como esse visionário previu os tempos atuais.

Kafka foi importante para a jovem estudante do Direito e das Leis, ao indicar que a "burocracia", em todos os níveis, com seus carimbos, entrava o avanço da caminhada humana, sem nunca chegar ao Castelo dos entrincheirados no Poder ou na promulgação da Justiça aos desvalidos do Processo.

Muito me marcou uma frase de sua escrita: "A lógica não pode impedir um homem que quer viver". A lógica, não como coerência das leis do raciocínio, mas sistema da burocracia e do descaso das pessoas.

Entendo que, lendo Kafka, pior do que as guerras é a burocracia da justiça tarda, da vida tarda, da fraternidade tarda. Os violentos se apressam em destruir e aviltar, e os mansos deixam para depois o que deve ser salvo e preservado. Adiam a felicidade do bem comum.

Tive a honra, já madura, então Patrona da Feira do Livro de Porto Alegre de 2018, de agradecer à República Tcheca, homenageada daquela edição da Feira, por ter dado ao mundo esse patrimônio cultural e humano que foi Kafka, que, ao morrer, delegou a seu editor a tarefa de queimar seus escritos inéditos. Max Brod ficou na história por ter salvo esses inéditos quando entendeu que os mesmos eram para o fogo da leitura de outros olhos, seus leitores futuros.

Pois bem, Gregor, o personagem do referido conto, acorda do sonho para um pesadelo real de ter se transformado num inseto. Tudo ao contrário de quando temos um alívio de despertar de um pesadelo e verificar ofegante a nossa existência livre do seu peso. Sim, estamos vivendo um pesadelo nunca previsto. Talvez anunciado pelo descuido com o nosso planeta.

Com o vírus, enquanto não vier a bem-vinda vacina, somos frágeis como insetos, mas não somos uma "nuvem de gafanhotos" que navega conforme os ventos e tem como bússola apenas o instinto selvagem. Somos comunidade, com a responsabilidade recíproca de preservar a vida, através de sábias orientações da ciência e da sociedade que partilhamos. Se, antes, algumas nações eram gregárias, agora temos o dever de ser realmente um povo unido como nação alicerçada em valores éticos e sociais. Se, antes, desfrutávamos e desperdiçávamos os recursos da terra, agora temos o dever de passar a mesma aos vindouros, que têm o direito de encontrar essa morada propícia a uma existência sadia.

Porém, neste tempo em que estamos vivendo, com tantos exemplos de heroísmo e cordialidade, o que mais me espanta e causa indignação é que, apesar da pandemia, alguns senhores, detentores de cargos públicos portam-se como negociadores da burocracia e do espólio público. E continuam a fazer falcatruas, igualando-se a insetos salteadores na lavoura do bem comum.

Pergunto a Kafka: haverá uma vacina contra a burocracia?

Ele me responde, com um sábio aforismo para nossa meditação: "Existem dois pecados capitais, dos quais todos os outros derivam, a impaciência e a indolência. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do paraíso, por causa da indolência eles não voltam."

Ainda podemos recuperar o paraíso terrestre e sermos sementes de uma nova geração. 

MARIA CARPI

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