domingo, 31 de janeiro de 2021


30 DE JANEIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

O melhor bauru do mundo 

Comi o melhor bauru da minha vida, dias atrás. Precisava imortalizar em papel esse acontecimento. Eu estava no Centro, tive de ir ao Centro.

Adoro ir ao Centro. O Centro é a alma de Porto Alegre. Embora esteja deteriorado pela vulgaridade dos tempos modernos, ainda é um lugar charmoso, repleto de bela arquitetura e espaços arejados, que pode se tornar até sofisticado, se a cidade quiser.

Então, fiz o que tinha de fazer e fui visitar o meu amigo Guilherme, da Beco dos Livros, para ver se encontrava lá algumas novas antiguidades. Cheguei à livraria e ele não estava - o Guilherme é de almoços tardios. Escolhi alguns livros, entre eles Os Últimos Dias, da maior dupla de jornalistas políticos da História, Bob Woodward e Carl Bernstein, e os deixei de lado no balcão. Naquele momento, surgiu-me no baixo ventre um laivo de fome, e pensei: vou descer aqui a Rua da Ladeira e fazer uma boquinha no Tuim. Depois volto para conversar com o Guilherme.

E lá fui eu. Sentei a uma mesinha e perguntei ao famoso garçom Marquinhos Gaiteiro o que havia de realmente apetitoso para espancar uma fome vespertina. Ele, surpreendentemente, puxou do celular e mostrou uma foto de um bauru. Era um bonito bauru, de aparência suculenta. O Gaiteiro informou:

- Esse eu fiz em casa, tentando imitar o daqui. O daqui é especial, porque é feito com carinho, um a um, é um bauru artesanal, não industrial.

Fiquei encantado com aquela veemência. Disse, só podia dizer:

- Bauru, pois! É o que quero.

Ele sorriu.

- E um chope - acrescentei.

Enquanto esperava, André, o dono do Tuim, chegou. Parou à porta. Ficamos falando de amenidades, como o desempenho dos imunizantes que carregam o RNA mensageiro, e, em seguida, estacionou ao lado dele um daqueles tipos característicos do Centro, aqueles sujeitos que ficam zanzando pelas ruas, parando aqui e ali, conversando com um e com outro, bicando uma bebidinha de vez em quando. Ele vestia bermudas, era magro e seus cabelos já tinham embranquecido. Fez uns dois ou três comentários aleatórios e, num rompante, suspirou:

- Minha mãe tem 85 anos e eu nunca mais falei com ela.

O André estranhou:

- Por quê?

Ele desenhou um sorriso triste debaixo do nariz:

- Ela não gosta de mim...

- O que tu aprontaste, para ela não gostar de ti? - quis saber o André.

- Eu bebia... Faz 20 anos que não falamos... Ela não gosta de mim...

E começou a chorar, sem nem se incomodar em desfazer o sorriso. Fiquei olhando da minha mesa, e bem naquele momento o bauru chegou. Estava cheiroso e quente. Um outro conhecido da região parou por ali. E o cara de bermudas repetiu:

- Minha mãe não gosta de mim...

Desta vez, ninguém comentou nada. Dei a primeira dentada no meu bauru. E vi a luz, e o som de fanfarras preencheu o ambiente, e faltou pouco pra compreender o sentido da vida, para onde vamos, de onde viemos.

- Está ótimo! - exclamei para o Gaiteiro.

- Eu não disse? - ele sorriu, satisfeito.

Realmente, o bife não tinha gordura ou nervo. Era batidinho e fino, como os que fazia a minha mãe. O pão cervejinha estava crocante na medida certa. E o queijo... sei que o queijo no bauru é polêmico, mas prefiro com. Pois o queijo se estendia em fiapos derretidos e se grudava no miolo do pão. Era o bauru perfeito.

- Artesanal! - falei para o Gaiteiro. - É mesmo artesanal!

- Artesanal! - ele concordou.

Ao cabo da última dentada feliz, levantei a cabeça do prato e, então, percebi que o filho rejeitado se fora. A excelência do bauru me distraiu daquele drama familiar. Balancei a cabeça. Lamentei: será que não devia ter prestado mais atenção à dor do pobre homem? Afinal, ele parecia estar pedindo socorro... Devia ter dito algo para consolá-lo, quem sabe sugerir que procurasse a mãe e pedisse perdão, sei lá. Fiquei um pouco chateado com minha negligência e quase filosofei a respeito da pouca empatia que temos uns com os outros, de como qualquer prazer nos desvia da angústia alheia e tudo mais. Olhei para o Gaiteiro:

- Acho que vou beber outro chope.

Suspirei, enquanto o chope era tirado. Mais um problema do mundo que não consigo resolver.

DAVID COIMBRA

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