segunda-feira, 31 de outubro de 2022


CLÁUDIA LAITANO

Nunca mais

Um filme e um livro recém-lançados convidam brasileiros e argentinos a revisitar a própria História - ao mesmo tempo em que permitem uma espiadela invejosa no passado do vizinho.

O filme. Argentina, 1985, de Santiago Mitre (Amazon Prime), relembra o julgamento civil dos nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de 1976. A trama acompanha o trabalho dos promotores Julio Strassera (Ricardo Darín) e Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), a quem coube levantar um conjunto robusto de provas das centenas de crimes cometidos pelos militares entre 1976 e 1983. 

Depoimentos dilacerantes de testemunhas foram registrados por centenas de jornalistas e ajudaram a opinião pública argentina a formar uma imagem mais clara do espetáculo de sadismo que se desenrolava nos porões da ditadura. O corajoso pronunciamento final de Strassera, na interpretação arrebatadora de Ricardo Darín, seria capaz de comover até as pedras da Praça de Maio: "A partir deste julgamento e da sentença que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória, não na violência, mas na justiça. Quero usar uma frase que não me pertence, porque já pertence a todo o povo argentino. Juízes ilustres: nunca mais".

O livro. PT, Uma História, do sociólogo Celso Rocha de Barros (Cia. das Letras), narra acontecimentos que se estendem do final dos anos 1970 aos dias de hoje. Pode ser lido, sem preconceitos (e com muito gosto), por quem nunca votou no PT antes das eleições de 2022 - e até por quem, por motivos que me escapam, votou nos candidatos que apoiam o atual governo (aprenderiam muita coisa, eu garanto). Ao contrário do que o título sugere, o livro não conta apenas a história da formação de um partido. Com o apoio de mais de 60 entrevistas, Celso monta um grande painel da reconstrução da democracia brasileira, mostrando como a articulação de diferentes forças políticas tornou possível o movimento das Diretas Já, o consenso em torno de Tancredo Neves, a Constituição de 1988 e a eleição de líderes como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao assistir a Argentina, 1985, brasileiros talvez fiquem com inveja da forma corajosa como os argentinos enfrentaram e puniram os crimes da ditadura. Ao ler PT, Uma História, argentinos talvez lamentem o fato de o país não ter conseguido substituir o peronismo por uma esquerda (ou centro-esquerda) mais moderna e articulada. De um lado e do outro da fronteira, há lições para aprender e erros a corrigir. Mas há também uma enorme dívida de gratidão em relação a todos aqueles homens e mulheres que defenderam a democracia quando ela estava sufocada e firmaram um compromisso com o futuro que nos toca renovar todos os dias, até o fim dos tempos: "Ditadura e tortura, nunca mais. Estado de direito, sempre".

CLÁUDIA LAITANO

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