quinta-feira, 13 de outubro de 2022


13 DE OUTUBRO DE 2022
CARPINEJAR

Nossos haitianos

A mais cruel cena de xenofobia de minha vida eu testemunhei numa academia, em Porto Alegre, há dez anos. O espaço nem existe mais, mas a dor da vergonha pela desumanidade presenciada não se extinguiu. Nem será apagado da minha memória o quanto o preconceito é cruel e vil.

Um cliente, contrário à contratação de um servente haitiano e sabendo que ele limpava o banheiro masculino toda manhã, espalhava as suas necessidades pelas paredes. Emporcalhava o ambiente de um jeito repugnante, irreal e demoníaco; qualquer um dos matriculados não aguentava o cheiro. Tudo para obrigar o funcionário a desistir do seu ganha-pão, o que acabou acontecendo.

Ele não fez isso uma vez, mas várias, e, por aquilo que sei, jamais foi descoberto, devido à inexistência de câmeras no toalete. Deve estar por aí, circulando impunemente, com a aparência de bom moço.

A discriminação de haitianos na Capital ganhou agora a roupagem sofisticada de desfalques financeiros por meio de mensagens no WhatsApp. E usando o recurso da chantagem emocional: trazer parentes do país caribenho, ainda sequelado pelo terremoto de 2010, ao Brasil.

Uma associação posou de salvadora da pátria, prometendo mobilizar agências de viagens e consulados para resgate dos parentes, a uma quantia de R$ 11 mil por pessoa. Documentos e passagens nunca foram emitidos. Não se tem noção se é irresponsabilidade, ou propaganda enganosa, ou golpe mesmo.

Todo roubo é indesculpável, mas se apropriar de recursos de quem não tem é imperdoável. Os haitianos deixaram de realizar as três refeições ao dia, adiaram pagamentos de contas, trabalharam em plantões intermináveis para economizar a milagrosa quantia diante de seu padrão social e recuperar a convivência com filho, ou esposa, ou irmão, ou pais.

Cerca de 140 haitianos fizeram ocorrência do possível estelionato na Polícia Civil e notificaram os seus prejuízos à prefeitura de Porto Alegre, aspirando a uma mobilização diplomática e amparo financeiro.

Meu colega de ZH, Humberto Trezzi, entrevistou 17 denunciantes da Zona Norte. Nos relatos, o que mais machuca é a tortura da esperança. Os haitianos telefonaram para os seus velhos e crianças prometendo que eles viriam, que já tinham custeado as despesas. São alegrias frustradas se convertendo em pesadas mágoas, em tristezas agouradas, em sofrimento silencioso.

Filhos que moram com avós estavam contando as horas para voltar a viver com os pais. Você pode imaginar a festa e a vibração deles? Agora estão sem perspectiva nenhuma, com a saudade amarga no velório dos sonhos.

Os trabalhadores de nosso Estado se encontram com muito menos do que quando chegaram aqui, deserdados e dilapidados até para a própria sobrevivência.

CARPINEJAR

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