12 de janeiro de 2017 | N° 18739
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Bodum
CONHEÇA UMA DAS CURIOSAS propriedades do sufixo "-um"
Nesta primeira coluna do ano que inicia, aproveito para saldar as dívidas do ano que terminou. O leitor João Paulo K., por exemplo, quer saber por que o mês sempre começa com um numeral ordinal (primeiro), enquanto todos os demais dias são numerais cardinais (dois, três, etc.). A causa, caro leitor, desconheço – mas esse é o costume no Brasil, ao contrário de Portugal, que usa o cardinal para todos. Lá se comemora o Dia do Trabalho no um de maio, e os portugueses mais desavisados levam todo tipo de trote no um de abril. Cada roca com seu fuso, cada terra com seu uso.
Já a leitora Ritinha, de São Gabriel, quer saber o que significa a palavra avec numa frase que encontrou em suas leituras: “Quem quiser vir avec, tudo bem, mas para o bem da sua felicidade matrimonial, não recomendo”. Ora, Ritinha, isso é gíria dos anos 60. A palavra avec quer dizer “com”, em Francês (Il est venu avec sa femme fica, em vernáculo, “ele veio com sua esposa”). Lembro que, no meu tempo de estudante de Letras, um convite para festa ou jantar muitas vezes especificava se era para a gente ir avec ou não – isto é, sozinho ou acompanhado. Era empregado até como substantivo, no sentido genérico de cônjuge, namorado(a), amante, caso, rolo e outros quetais: “O compositor e sua avec foram recebidos pelo presidente”.
Por sua vez, Anita P., de Curitiba, traz uma queixa mansa: “Eu sempre digo muito dó, no masculino, mas quase todos os meus colegas me criticam, alegando que é feminino. Mostrei o dicionário para um deles, mas ele não acreditou. O que posso fazer? O que o senhor recomenda?”. Olha, Anita, não há muito o que fazer contra a ignorância proativa. Não dê atenção à opinião desses colegas e siga em frente, com a espinha ereta, atravessando essa horda de bárbaros. Todos os dicionários registram dó como masculino, assim como pó ou nó; os escritores dizem amém (“Tanta lástima e carinhos, tanto dó, nenhum rigor!” – Garret; “Os perros não houveram nenhum dó de nós” – F. Mendes Pinto). O que mais eles querem?
Por fim, o leitor Mengálvio G., escrevendo de lugar incerto e não sabido, comparece com uma pergunta interessante: “Professor, se gado vacum vem de vaca, posso concluir que bodum vem de bode?”. Confesso que nunca tinha pensado nisso; fui estudar o esquisitíssimo sufixo -um e... bingo! Não é que nosso leitor tinha razão? Uma das propriedades deste sufixo é justamente formar adjetivos que têm “relação com animais, predominantemente domésticos”. Além de vacum, temos ovelhum e cabrum (“O gado ovelhum e cabrum é de 145 cabeças, não se incluindo nesse número a criação pertencente aos colonos” – Afonso Arinos).
Houaiss também registra carneirum, gatum (relativo ao gato – e praticamente irmão do gatuno) e galinhum (credo!). É nesse rol que entra o bodum, que Bluteau já definia como “mau cheiro do cabrão ou bode”. É claro que esta pitoresca terminação não poderia deixar de atrair os que brincam e se divertem com as palavras; em 1871, o Alabama, “periódico crítico e chistoso”, fala de um sítio que reúne não só numeroso “gado vacum, mas também gado porcum, carneirum, bodum, patum, galinhum e principalmente cachorrum”. Que beleza!
Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.