18 de janeiro de 2017 | N° 18745
CAPA
A amante gaúcha de George Orwell
FILHA DE PAIS INGLESES e nascida no Rio Grande do Sul, Mabel Fierz teve papel decisivo na carreira do autor de 1984, segundo biografias
Este ano completam-se nove décadas de uma das decisões mais arriscadas tomadas por um dos maiores escritores do século 20. Em 1927, George Orwell (1903 1950) largou a estabilidade respeitável de um servidor do Império Britânico e lançou-se numa trajetória de vagabundagem que culminaria em seu primeiro livro, Na Pior em Paris e Londres. Uma das personagens fundamentais para a publicação deste livro nasceu no Rio Grande do Sul: Mabel Fierz, amiga, amante, patrocinadora entusiasmada e a pessoa que lhe deu a oportunidade de tornar-se George Orwell e não apenas Eric Arthur Blair, seu nome verdadeiro.
Mabel Lilian Sinclair Fierz (1890 – 1990) ocupa um papel importante nos primeiros tempos da carreira literária do autor de 1984. O escritor havia servido, entre 1922 e 1927, como integrante da Polícia Imperial na Birmânia. Em 1927, pediu baixa. Os cinco anos seguintes Orwell passou sem emprego fixo, arranjando biscates e ocupações sub-remuneradas. De volta à Inglaterra, foi viver com os pais em Southwold, no leste da Inglaterra, pintando aquarelas, colhendo lúpulo, servindo como preceptor para famílias inglesas em férias e lutando para dar forma a algumas obras.
Foi ali que conheceu Mabel Fierz e seu marido, Francis Fierz, em agosto de 1930. Orwell pintava na beira da praia. O casal dava um passeio, e a conversa que entabularam daria origem a uma amizade que mudaria o futuro de Orwell e da literatura. Mabel escrevia resenhas literárias. Sua figura também foi esboçada por D.J. Taylor em George Orwell, de Gordon Bowker, de 2003: “Francis e Mabel Fierz eram da América do Sul. Tinham uma casa em Hampstead Garden Suburb e ambos eram muito cultos. Francis era um amante de Dickens; Mabel, uma mulher vivaz e opiniática que gostava da companhia de jovens artistas, acreditava que tinha um olho para o talento e a determinação para trazê-lo à tona”.
Treze anos mais velha do que Orwell, Mabel, embora seja muitas vezes apresentada como uma figura maternal, foi amante do então jovem escritor – e nasceu no Rio Grande do Sul. As duas informações estão na biografia Orwell: Wintry Conscience of a Generation, de Jeff Meyers, publicada em 2000 – e que teve, como fontes, os filhos de Mabel, Adrian e Fay. Meyers a identifica como nascida em 1890, “no Rio Grande do Sul, no Brasil”, filha de pais ingleses.
Meyers se estende um pouco mais, comentando que ela foi educada em casa, falava português e só voltou com a família à Inglaterra quando já contava 17 anos, em 1908. Do Brasil, voltou ligada à Igreja Católica (minoritária na Inglaterra anglicana). Seu marido, cujo nome completo era Francis Ernest Fierz, também consta como nascido no Brasil no censo inglês de 1911, o que explica a citação de Bowker de que eram “sul-americanos”. Ambos se casaram em dezembro de 1919, em Londres.
De acordo com o depoimento dos filhos do casal a Meyers, Mabel era, além de uma personalidade viva e cativante, uma mulher de interesses intelectuais ligados à esquerda. Isso também ajuda a explicar parte da fascinação dela pelo jovem que havia desistido da “máquina colonial” para conhecer de perto a vida dos miseráveis. Também mantiveram um caso por certo tempo – admitido para o filho já quando ela tinha idade avançada, segundo Meyers. No mais puro espírito inglês, dado que o caso era discreto e nada escandaloso, Francis Fierz preferiu não tomar conhecimento.
Mabel Fierz foi uma figura fundamental para a fase inicial da carreira de Orwell. Peter Stansky e William Miller Abrahams, em The Unknown Orwell: Orwell, the Transformation, publicado em 1974, afirmam que “ela fez o melhor que pôde, especialmente após conhecer Orwell, para ser mediadora entre pai e filho, ainda que sem resultados visíveis” – o pai do futuro escritor, Richard Blair, ex-funcionário público e homem de sólida consciência burguesa, desaprovava o filho por haver se demitido do serviço imperial e viver como um vagabundo com aspirações a artista.
Orwell havia passado dois anos tentando emplacar a narrativa de suas incursões pelo baixo-mundo com o título provisório de Diário de um Lavador de Pratos. Uma primeira versão havia sido recusada por Jonathan Cape em setembro de 1931. Uma versão retrabalhada e batizada de Dias em Londres e Paris foi enviada no fim do mesmo ano aos cuidados de T.S. Eliot na Faber & Faber – sempre com a intermediação de Mabel, que, encantada pelo brilho intelectual do jovem, ainda não havia sequer lido o texto.
O livro foi rejeitado por Eliot no início de 1932, e Orwell deixou o manuscrito com Mabel para que ela o jogasse fora. Tendo finalmente lido a obra, Mabel insistiu para que o agente literário Leonard Moore também o lesse e arranjasse uma editora para o jovem. Na Pior em Paris e Londres foi publicado em 1933, assinado por “George Orwell”. O nome seria adotado por Eric Blair para assinar seus principais trabalhos, entre eles A Revolução dos Bichos e 1984 – onde imaginou a figura do “Big Brother”, adotada por um reality show.
Na Pior em Paris e Londres foi dedicado aos Fierz. Francis morreu em 1979. Mabel, em 1990, aos cem anos. Ambos estão enterrados no cemitério municipal de Surrey, na Inglaterra.