sábado, 21 de janeiro de 2017



21 de janeiro de 2017 | N° 18748 
ANTONIO PRATA

DO ROCK


Eu não precisava ir ao supermercado. Comprar água com gás foi uma desculpa que arrumei pra sair um pouco de casa depois de dois dias sem ver a rua, trabalhando e cuidando das crianças. Percebi que era uma desculpa quando me flagrei, já com a garrafa solitária no fundo do carrinho, vagando pelo linóleo bege dos corredores. Fiquei com certa pena daquela garrafa, entendi que a pena era de mim e decidi que, se a ideia era passear, eu merecia coisa melhor do que a gôndola de enlatados do Pão de Açúcar.

Sento no balcão do bar. Peço um chope. Há um casal, por ali. Estão um de frente pro outro, numa mesa, de lado pra mim, de modo que posso xeretá-los sem incomodar. Vestem camisas de bandas de rock, jeans pretos, coturno, ela, ele um All Star que talvez traga na sola resquícios da lama do primeiro Rock’n Rio. Devem ter quarenta, quarenta e cinco anos. Dividem uma garrafa de cerveja e há dois copinhos vazios sobre a mesa. Me agrada pensar que eram duas doses de Jack Daniel’s. Roqueiros bebem bourbon.

Uma década atrás, eu acharia meio ridículo pessoas de quarenta, quarenta e cinco anos vestidas de roqueiro – ou de punk ou de rapper ou de rastafári. Ainda próximo à adolescência, eu via esses estilos como fantasias, adereços falsos que meninos e meninas escolhiam para se darem bem no colegial. Lembro do meu assombro ao voltar de umas férias, olhar o pátio da escola e me sentir num baile de Carnaval. Não havia piratas nem baianas, mas branquelos de dread e nerds recém convertidos ao Iron Maiden não ficavam muito atrás no quesito alegoria.

O casal, porém, não parece fantasiado. Pelo contrário, os dois soam autênticos naquele estilo, tão autênticos, que olho a minha bermuda, minha camiseta e meu Nike Air com meia soquete e começo a me sentir incomodado. Eles estão certos, eu é que pareço imaturo, bagunçado, como se aos trinta e nove anos ainda não tivesse encontrado meu lugar no mundo. Encaro os dois com admiração e, logo em seguida, com inveja.

O rock é uma coisa bonita que a humanidade criou no século 20, esse século tão marcado por horrores. Foi a trilha sonora da emancipação da juventude, da revolução sexual, de todo tipo de contestação. O rock é cético em relação à política, não acredita “no sistema”, mas acredita no amor, sem medo de ser piegas. Manda um Welcome to the Jungle no lado A, mas não tem vergonha de assoviar Patience no lado B.

Talvez o parágrafo anterior tenha soado meio piegas. É que neste momento da crônica eu já estou no segundo chope. Sigo espiando meu casal. Não consigo imaginar aqueles dois brigando no Facebook, falando do Moro e do Dória e do petrolão. Se Deus ou algo que o valha baixasse agora neste bar, me segurasse pelos ombros e perguntasse “O que você fez hoje à tarde?”, eu falaria do trabalho, de um artigo que li sobre o Trump, de uma briga com a tia Madalena no Wapp da família. 

O meu casal talvez respondesse “Nós achamos um vinil do George Harrison na Galeria do Rock e ouvimos While my Gitar gently Weeps. Taí algo de útil a fazer com a sua vida ou, pelo menos, com a sua tarde – o que vem a ser, convenhamos, a mesmíssima coisa.