sábado, 30 de setembro de 2017



30 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

A felicidade de cada um

Somos, entre tantas coisas - animais predadores, meio obtusos, às vezes gloriosos -, uns eternos buscadores. Deve ser uma das molas de nossa vida, mais até do que sexo e poder. Essa busca meio indeterminada que nos faz sair da cama, tomar café, ver notícias no jornal e na TV (porque nos julgamos de ferro), ir para o trabalho ou a escola ou simplesmente ficar em casa. Buscamos eternamente, eu sei, essa estranhíssima coisa chamada felicidade: tão diferente em diferentes fases e até diversos lugares.

Quando menina, felicidade era segurança amorosa: os pais ali perto, o irmãozinho, as funcionárias que cuidavam de nós, o jardineiro conversando com plantas, a chuva na vidraça, o vento nas árvores, a lareira ou a perspectiva da praia, um dia de feriado para não ter de ir à escola (não, não fui boa aluna...). Sobretudo, estar ali em nossa casa, no meu quarto, a cama embutida em prateleiras cheias dos meus melhores amigos. Décadas depois, alguém me contou que, ao visitar meu pai, em seu escritório em casa, e admirar as prateleiras de livros forrando as paredes, meu pai fez um gesto simples e disse: "Esses são os meus amigos".

No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo, como certa vez quando, falando com jornalistas antes de uma palestra em São Paulo, um deles, muito jovem, disparou a pergunta que nunca tinham me feito: "Qual é o seu sonho de consumo?". Parei, sorri, surpreendida, e sem precisar pensar respondi: "Meu sonho de consumo? Ficar quieta". Era uma longa fase de muitas viagens para palestras e lançamentos. Era bom curtir o afeto dos leitores, era bom promover um livro.

No avião, voltando para casa, fui monologando coisas como: "Ora, se eu quero mesmo ficar mais quieta, por que não faço isso? Por que não diminuo esse giro de viagens e encontros e não curto mais o sossego que me falta?". Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar - nada fácil. Os convites mais simpáticos (quase todos são assim) tiveram de ser reduzidos, e como fazer essa seleção? Sempre havia uma razão verdadeira: estar preparando um novo livro, atender alguma coisa na família ou simplesmente estar cansada. "E se um dia não te convidarem para mais nada?". Bom, aí eu também não vou gostar nada! O jeito é dosar.

Fiquei bem mais feliz assim. Certa vez, perguntaram para minha filha onde seria mais fácil encontrar a mãe, e ela respondeu: "Em casa". Há quem estranhe: "Você quase não tem vida social, não frequenta os mais novos restaurantes, nem clubes, nem grupos...". Nada contra, mas para mim foi uma conquista. Uma obediência ao meu mais antigo e honrado desejo. 

Quando estou nessa falsa vagabundagem lírica, talvez de livro na mão até sem ler nem pensar nada especial, é que as coisas "se fazem" dentro de mim: futuros personagens, tramas, poemas, ou só encantamentos fugazes. Pode ser que nesta fase da vida eu mereça estar assim, com família, amigos, cachorrinhas, paisagem linda, o refúgio na Serra, música, livros, e tantos ótimos programas que - apesar dos protestos - a boa televisão oferece: agora, um concerto de Mozart para piano, tocado na TV por um Barenboim jovem.

(E ainda por cima, neste momento, começa a chover mansinho.)

lya.luft@zerohora.com.br


30 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Minha primeira TATTOO

Existe um argumento clássico contra tatuagens: é definitivo demais. Como saber se, daqui a três meses, três anos ou três décadas, o desenho escolhido ainda terá um significado especial? Como pode alguém entregar-se de mão beijada à possibilidade de um arrependimento? E quando a pele começar a ficar flácida e enrugada, nosso visual não parecerá um filme de terror? E quando... Tá, já entendemos.

Quem se faz tantas perguntas deve passar longe de um estúdio de tattoo. E longe de uma maternidade também, pois ainda não inventaram nada mais definitivo do que filho. Talvez sejam as únicas coisas perenes que restaram no mundo: nossas crias e as marcas que o tempo impõe ao nosso corpo - e as que nos autoimpomos. 

De resto, nada mais é durável. Tudo é provisório, descartável, tendência de mercado. Vale para a altura do cós das suas calças e o comprimento das mangas da sua blusa. Vale para a cor das paredes onde você mora, o tipo de lugar onde você mora e até com quem você mora: amigos, namorados, maridos e esposas. Estamos todos de passagem, e a aventura se renova, se transforma. Como estará sua vida daqui a um ano? Tem certeza?

Sendo desse jeito, eis a reviravolta: o argumento clássico contra as tatuagens tornou-se, agora, um argumento a favor. Finalmente, algo que dura. Que não vai desaparecer da sua vida quando o verão terminar, que nunca estará sujeito a modismos, que irá com você até o fim - nisso uma tatuagem é ainda mais fiel que filhos, esses andarilhos que somem no mundo e só mandam notícia por Skype. 

A tatuagem gruda em você, esteja você passando por dificuldades financeiras, esteja você bebendo mais do que deveria, esteja você confundindo palavras, tropeçando nos próprios óculos e fazendo todo tipo de besteira. Pensa: tatuagem é praticamente um cachorro, sendo que este, às vezes, foge.

A razão desta crônica: neste exato dia em que escrevo, que não é o mesmo em que você me lê, estou com uma hora marcada num estúdio para fazer minha primeira tatuagem, aproveitando essa onda possante de empoderamento, de juventude esticada, de valorização da experiência e demais movimentos modernos de autoafirmação em que me jogo inteira (mas, neste caso, com as pernas bambas - não tenho nenhum fetiche por agulhas).

Enquanto você me lê, a data que agendei já passou. Eu fui? Eu fiz? Serei hoje uma mulher marcada a ferro e fogo com um pequeno sol nas costas, bem pertinho da nuca? Ou desmarquei inventando qualquer desculpa e voltei para o buraco onde as ratazanas se refugiam de seus próprios medos?

Acho que fui, em homenagem à permanência, essa raridade.

MARTHA MEDEIROS



30 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR
A prepotência do mentiroso


É muito fácil desmascarar o mentiroso. Quando pego em contradição, fica possesso e indignado. Ataca para não se ver atacado. Distrai a atenção com o escândalo.

Todo mentiroso é um canastrão, gesticula sem necessidade, abraça o ar até sufocá-lo, tem as bochechas vermelhas de ódio, transforma companheiros de longa data em inimigos, delata os afetos para adquirir imunidade.

Todo mentiroso esperneia e se movimenta de modo frenético. Em vez de ter humildade e desfazer tranquilamente o engano, fica mais prepotente e não deseja dar satisfações. Sai de cena bufando, volta à cena aos gritos. Bate à porta, empurra a cadeira, os objetos sofrem à sua volta.

Todo mentiroso ameaça, como um profeta de rua. Antecipa o apocalipse por tê-lo posto à prova. Já começa a inventar castigos e reprimendas como o fim da amizade e o término da relação. Prefere acabar a confessar.

Todo mentiroso não se desculpa. Pelo contrário, imagina o acusador pedindo perdão de joelhos pelo mal-entendido.

Todo mentiroso se projeta numa vaga de emprego, não parando de se elogiar, destacando os seus pontos positivos, sublinhando a sua honradez e ética na tomada de decisões.

Todo mentiroso nega e nega e nega: vai soletrando não antes mesmo de ser questionado.

Todo mentiroso conversa sozinho: não escuta nada, pergunta e responde, num júri imaginário. Ocupa, simultaneamente, os papéis de advogado de defesa, promotor e juiz.

Seu primeiro movimento é desqualificar a pessoa que o colocou em dúvida. Poderia desmontar a mentira, mas leva para o lado pessoal e ofende o outro, insinuando uma perseguição.

Não apresenta argumentos, muito menos detalha o ocorrido. Diz inicialmente que é um absurdo a falta de confiança. Tenta entrar no jogo psicológico dos atenuantes, lembrando que se conhecem há tempo e não merecia tamanha desconsideração. Implicará com a lealdade, falando que jamais esperava ser agredido com um golpe baixo. Desmerece a curiosidade e a caracteriza como prova de mais alta traição.

Todo mentiroso não quer perder tempo conversando, mas tampouco cala a boca. Como não convence com fatos, depois age como um psiquiatra. Cria diagnósticos, despeja receitas, acumula distorções, estabelece sintomas de paranoia. Fará de tudo para provar que tudo é uma loucura e que todos estão doidos, menos ele.

Todo mentiroso é igual. Abomina a lógica e recusa as provas. Não entende que a inocência não se prova.

Os sinais são evidentes. Quem não tem razão se sente cheio de razão. Quem tem razão não se sente intimidado com o erro. A verdade é calma e curta. A mentira é penosa e aflitiva.

A verdade é um atalho. A mentira é o caminho mais longo e sempre passa pelo ataque de nervos.

CARPINEJAR


30 DE SETEMBRO DE 2017
PIANGERS

Última moda


Nunca fui o que se pode chamar de pessoa estilosa ou arrumada, culpa da convenção social que determinou que calças largas de moleton e camisas com perfurações de traças não são vestimentas très chic. Jamais usei gravata fora de festas de casamento e, mesmo em festas de casamento, sempre fui o primeiro a afrouxar o nó e, eventualmente, deixar a gravata dobrada em cima da mesa enquanto devorava o bufê. Minha gravata já foi meu guardanapo, confesso. O pessoal da Spirito Santo deve estar indignado comigo.

Minha mãe sempre achou um terror o jeito que o filho se vestia, mas sempre me considerei um trend setter: usava calças largas com a cueca aparecendo antes dos rappers, camisas velhas de flanela herdadas do vô antes dos grunges, casacos de lã de brechó antes dos hipsters. Meu estilo hoje é a passarela de amanhã. Quer dizer, não bem amanhã, pode ser que demore anos até que finalmente minhas roupas surradas apareçam na Vogue, mas um dia aparecem. Pode ter certeza que aparecem.

Uma espécie de artista visual, uso meus trapos como forma de me expressar. Minha família é contra. Minhas camisetas favoritas viraram pano de chão quando viajei mês passado. Meu casaco favorito foi doado aos pobres no último inverno. Não sou eu que decido essas coisas, é minha mulher. Doou todas as minhas camisetas promocionais que eu usava como pijama e minhas calças de sarja, hit dos anos 1990. Eu gostava tanto daquela calça que virava bermuda que minha esposa sem coração dispensou.

Vida que segue, comprei meias coloridas que envergonham minhas filhas. Estávamos caminhando para o colégio, e eu falei pra evitarmos determinada esquina. "Tem um mendigo maluco naquela esquina", falei. Minha filha de 12 anos disse: "Sei. Aquele mendigo de barba ruiva levando as filhas pra escola?". Demorei pra entender a piada: ela estava se referindo a mim. Muito engraçado. Vai engolir suas palavras quando meu modelito aparecer em capas de revistas como a última moda.

PIANGERS


30 DE SETEMBRO DE 2017
J.J. CAMARGO

O SUBSTITUTO


O Armando é um desses vigilantes anônimos que, de carinho em riste, não deixam passar nada que diga respeito ao objeto do seu afeto, ainda que silencioso e anônimo. Não o conhecia até que ele anunciou, por e-mail, que perguntara ao seu clínico se ele achava razoável marcar uma horinha comigo para debater algumas coisas que o angustiavam na plenitude da sua lucidez, aos 92 anos de uma vida bem vivida. Curioso com a iniciativa, combinei um encontro no hospital e, na hora aprazada, lá estava ele, elegantemente vestido, querendo pagar antecipadamente a consulta.

Bastante trêmulo por uma doença neurológica e levemente ofegante pelo enfisema, pediu um tempo para se recompor, sempre preocupado que estivesse ocupando um tempo que ele fantasiava ser muito precioso, sem imaginar o quanto eu valorizaria o que estava por vir.

Descreveu suas limitações decorrentes da perda da sensibilidade fina, que o impedia de escrever ou digitar, e que fazia do barbear uma operação de risco.

E, então, desfiou um rosário de frases de crônicas que escrevi entre 2012 e 2017, em que reiteradamente tratei do envelhecer com dignidade ou da diferença entre viver e simplesmente durar, e que ele então invocava para construir a argumentação de um pedido evidente, mas nunca explicitado: a Medicina que tinha sido tão pródiga em recursos para fazê-lo chegar a essa idade, tinha agora que ajudá-lo a morrer. Para reforçar seu pedido, ainda comentou pesaroso: "O senhor não imagina o quanto me incomoda perceber que sou um fardo para minha família. Se ao menos tivesse ficado caduco, eu não sofreria tanto!".

Não resisti lhe perguntar por que escolhera a mim, entre tantos médicos, para essas ponderações, e ele foi duma simpatia comovedora: "Acho que, de tanto concordar com as suas ideias, passei a acreditar que o senhor escrevia pra mim!".

"Acontece, seu Armando, que o velho inútil que descrevi naquelas crônicas não combina em nada com a sua cabeça lúcida e inteligente, e como o senhor não vai morrer antes de morrer, nós só precisamos dar uma utilidade ao seu durar. A propósito, eu tive um avô maravilhoso, que me estimulava muito e me distinguia com um afeto que marcou minha vida. Passados já tantos anos, ainda sinto muito a falta dele. Então, queria lhe perguntar: o senhor se importaria de ser meu avô?".

Com um choro bem encaminhado, interrompi: "Mas nem pense em ser um avô decorativo, porque temos muitas coisas para fazer juntos. E a primeira tarefa será um relatório quinzenal das suas ideias, porque eu vou precisar muito delas".

Secando as lágrimas com as costas da mão trêmula, ele se antecipou: "Então, vou ter de conseguir alguém que digite pra mim!".

Quando já bem chorados, nos despedimos, e ele reconheceu a transformação: "Obrigado, doutor, mas que vergonha! Vim aqui só para me queixar da vida, e nem tinha percebido que ela ainda me queria!".

jjcamargo.vida@gmail.com

30 DE SETEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO

SEXO, MENTIRAS E VIDEOTAPE


EU JÁ FUI AQUELA MÃE, COM UMA FILHA PEQUENA NO SUPERMERCADO. EU TAMBÉM JÁ ME DISTRAÍ, OLHANDO PARA O OUTRO LADO.

A imagem é dilacerante, não apenas pelo flagrante de violência que captura, mas pela familiaridade da situação. Eu já fui aquela mãe com uma filha pequena no supermercado, no shopping, no parque. Eu também já me distraí examinando um produto, atendendo um telefonema, olhando para o outro lado. Nunca aconteceu nada, mas poderia ter acontecido, perto ou longe dos meus olhos - e a imaginação retroativa pode ser ainda mais viva do que o pior filme de terror.

O vídeo que registrou o abuso de uma criança em um supermercado de Porto Alegre trouxe para a tela dos nossos smartphones um crime que costuma acontecer nas sombras, onde não há câmeras, testemunhas ou punição imediata. Em cena, um medo universal: o de não estar por perto quando um filho precisa de ajuda. Foi por uma rede de mães conectadas, por esse medo comum e pela indignação, que o vídeo se espalhou pela cidade - antes que muitas se dessem conta de que divulgar as imagens do crime era uma forma de estender a violência contra a vítima.

O episódio devolveu a discussão sobre pedofilia para os domínios aos quais ela pertence: justiça, segurança pública, saúde mental. A polêmica em torno da exposição Queermuseu havia transplantado a questão para o plano das falsas notícias e do falso moralismo. 

Um problema que preocupa não apenas pais e mães, mas especialistas de todas as áreas que atendem crianças vítimas de abuso sexual (a maior parte delas, como se sabe, atacadas dentro de casa, por pessoas conhecidas) foi instrumentalizado para servir a uma pauta política bem específica. Houve gente, nos últimos dias, capaz de comparar o ataque real com o suposto crime simbólico de uma obra de arte - o que poderia ser apenas ignorância se não fosse antes franca má-fé.

Usar palavras de forma irresponsável é uma das mais antigas estratégias para mentir e enganar. Foi o que fizeram as pessoas que, mal-intencionadas, apresentaram-se publicamente como defensoras da integridade de crianças (genéricas) supostamente afetadas por uma exposição. Ser "contra" a pedofilia, aliás, é mais ou menos como ser contra assassinatos, estupros ou terremotos. Não diz nada, em si, sobre a pessoa que emite a opinião - a não ser que a platitude proferida coincida com o ponto de vista da maioria das pessoas.

É muito mais fácil lançar acusações esdrúxlas sobre uma artista do que interessar-se genuinamente pelas histórias dramáticas que acontecem todos os dias dentro de famílias e de outras instituições respeitáveis. Pedofilia é um assunto grave, e não faltam pessoas que se preocupam de verdade com o problema em Porto Alegre. Já todos aqueles que, no conforto da sua poltrona ou do seu palanque usam o termo de forma leviana, não apenas não estão fazendo nada para defender vítimas em potencial, mas estão desviando energia que seria melhor empregada servindo à prevenção dos crimes reais. Aqueles que acontecem num piscar de olhos, à luz do dia, quando estamos distraídos olhando para o outro lado - real ou metaforicamente.

CLÁUDIA LAITANO



30 DE SETEMBRO DE 2017
DRAUZIO VARELLA

SERIAL KILLERS


A associação entre cigarro e câncer de pulmão foi estabelecida nos anos 1950. Naquele tempo, o poder de dissuasão da indústria tabaqueira era enorme. As fortunas investidas em publicidade lhes davam o poder de controlar os meios de comunicação de massa. Qualquer menção aos malefícios do fumo era rebatida por "cientistas" de aluguel encarregados de criticar a metodologia dos estudos apresentados. Quando essa estratégia não dava resultado, ameaçavam com o corte das verbas publicitárias.

Existem dois grupos de cânceres de pulmão: os carcinomas de pequenas células e os de não pequenas células, grupo ao qual pertencem os adenocarcinomas, os carcinomas de células escamosas e outros.

Nos anos 1950, os adenocarcinomas correspondiam a cerca de 5% dos casos. Como os inquéritos epidemiológicos apresentavam resultados contraditórios, muitos admitiam que esse seria o único subtipo que não guardaria relação com o fumo.

No decorrer das décadas de 1960 e 1970, no entanto, a incidência dos adenocarcinomas aumentou abruptamente, a ponto de torná-los os tumores mais prevalentes no sexo masculino e nos fumantes mais jovens. Entre 1990 e 1994, entretanto, foi demonstrado que se tratava da histologia mais frequente também em mulheres e em homens de qualquer idade, brancos ou negros. Qual seria a explicação?

Nesse período, convencida de que se tornava impossível conter e desmentir a enxurrada de evidências científicas que relacionava fumo ao câncer, a indústria investiu pesado na comercialização de cigarros com filtro. Surgiram, então, os famigerados "light" e "ultralight", apresentados criminosamente como cigarros mais seguros, por conter teores mais baixos de alcatrão e nicotina.

Resultado: as marcas com filtro, que ocupavam cerca de 1% do mercado nos anos 1950, chegaram a 60% nos anos 1960, e a mais de 90% no decorrer da década de 1980.

Os números do Surveillance, Epidemiology, and End Results database (SEER), do governo americano, não deixam dúvidas: esse sucesso mercadológico precedeu e acompanhou o crescimento exponencial dos casos de adenocarcinoma. Em 2006, no decorrer do processo "United States v. Phillip Morris et al", os executivos da indústria declararam à Justiça americana que sempre souberam que a denominação "baixos teores" era arbitrária e desprovida de outro sentido que não o mercadológico.

Hoje, é consenso atribuir aos cigarros com filtro maior periculosidade. Quem controla a quantidade de nicotina inalada são os receptores nicotínicos existentes nas membranas dos neurônios cerebrais. Ao passar pelo filtro, a fumaça resultante da combustão vem misturada com o ar, portanto menos concentrada e mais palatável. Para compensar a concentração mais baixa de nicotina, o fumante dá tragadas mais profundas e demoradas, com a finalidade inconsciente de reter a fumaça mais tempo em contato com os alvéolos pulmonares.

O contato prolongado e íntimo das vias aéreas inferiores com os agentes cancerígenos em suspensão cria condições propícias à carcinogênese.

drauziovarella.com.br

sexta-feira, 29 de setembro de 2017



Jaime Cimenti

Caminhando pela Redenção 

Saio da redação do glorioso Jornal do Comércio, o jovem octogenário de blazer azul em plena forma, sigo pela avenida João Pessoa e vou para a Redenção, ou Parque Farroupilha, se o leitor gaudério prefere assim.

Chegando lá, tarde de sol de início de primavera, começo a caminhada. Cinco e meia, pessoas tomam chimarrão, namorados namoram, algumas pessoas correm, outras caminham, crianças jogam bola ou andam de bicicleta e eu sigo nas aleias ensaibradas, evitando os matinhos e espaços despovoados, com medo de algum assaltante vespertino. Nos bolsos levo apenas uns trocados e a vontade de flanar.

O Adão me orientou a não levar o celular e as chaves do carro. Obedeci, claro, que não sou tão bobo, e o Adão é esperto. Imagino que aquele grande espaço, no meio do parque, onde está o chafariz, é Paris, a Champs Élysées, o Central Park nova-iorquino ou o Hyde Park londrino e contemplo os gramados, as árvores, os arbustos, as folhagens e as flores, enquanto os sabiás de setembro fornecem a trilha sonora adequada para minhas viagens mentais.

Descanso um pouco do tenebroso noticiário político-econômico-policial e dos escândalos das organizações criminosas municipais, estaduais e federais e respiro o ar do relaxamento possível. Está difícil ficar no Brasil e complicado sair. A coisa tá osca. Melhor seguir rezando para Nossa Senhora Aparecida descolar a economia da política e ir tocando o barco do que jeito que dá, enquanto uma bala perdida não nos alcança e o dia amanhece mais uma vez.

Melhor buscar um pouco de refúgio no passado, sem saudosismo, e pensar que a Redenção é o pátio de nossas melhores memórias, que por ali circulam nossas várias infâncias e idades, que aquelas árvores testemunharam, testemunham e vão testemunhar nossos pensamentos e ações. A Redenção é a eternidade porto-alegrense, o campo da lembrança, do presente e do futuro infinitos, mesmo sem os bichos do zoológico e mesmo sem os monumentos e placas remanescentes em melhores condições.

No meio do gramado o gaúcho de pé, em bronze eterno, mira o pedaço de pampa fake do parque e a modernidade urbana dos prédios da Ufrgs e parece dizer que a vida continua, que os sonhos foram, são e serão o essencial dos dias. Parece dizer que, mesmo sendo um gaúcho a pé, não deixa de ser um bagual que não se entrega assim no mais, como na linda canção clássica de Antonio Augusto Ferreira e Ewerton Ferreira, imortalizada pela interpretação de Leopoldo Rassier e merecidamente vencedora da Califórnia da Canção Nativa.

A temperatura vai caindo, o sol vai se despedindo e a caminhada vai dando os últimos passos. Os pedalinhos aguardam, perfilados, pelas filas dos feriados e dos fins de semana e o trenzinho está a postos para as próximas viagens. Bem que o aluguel de bicicletas poderia voltar e o café do lago já poderia estar funcionando, como esteve. E não seria possível charretes circulando pelo parque, ocupando os cavalos e carroceiros que a municipalidade quer desempregar? Cartas para a redação.

a propósito...

Podemos cuidar melhor da Redenção, ou Parque Farroupilha. Ela é o coração verde, amarelo e vermelho da Capital. Precisamos falar sobre cercamento, ao menos de parte, do local. Aluguel de bicicletas, charretes, café do lago, recuperação e manutenção de placas e monumentos e outras ideias tornarão ainda melhor esse espaço sagrado.

Quem caminhou, caminha e caminhará por ali sabe que não se deve nem pensar em apagar as memórias passadas, presentes e futuras do lugar que já se chamou Campos da Redenção em homenagem à precoce abolição da escravatura em Porto Alegre, em 1884, e que foi chamado Parque Farroupilha em 1935, na comemoração dos cem anos da Guerra dos Farrapos. O que é o estudo, hein? - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/09/colunas/livros/587521-jose-gallo-o-melhor-ceo-do-brasil.html)


José Galló, o melhor CEO do Brasil 

Detalhe da capa do livro EDITORA PLANETA/DIVULGAÇÃO/JC José Galló, graduado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, diretor-presidente da Renner, membro do Conselho de Administração da Localiza Rent a Car, do Itaú Unibanco Holding e do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), mais de 30 anos de experiência em varejo, foi eleito, em 2016, O Melhor CEO do Brasil pela Época Negócios. Em cinco edições do Executivo de Valor do Valor Econômico foi premiado. 

Nas últimas quatro edições do Latin America Executive Team Ranking, da Institucional Investor, recebeu o título de Melhor CEO do setor de varejo e consumo. O poder do encantamento (Planeta Estratégia, 272 páginas), de Galló, traz sua vida desde a infância até hoje e, especialmente, trata da bem-sucedida trajetória, de fatos e de lições do executivo que, partindo de oito lojas, transformou a Renner em uma empresa que valia menos do que um milhão de dólares em uma corporação de US$ 6 bilhões. 

Na obra, cujo prefácio é de Fabio Barbosa, Galló fala de seu nascimento em Galópolis, da família de origem italiana que teve grandes negócios por lá e de sua formação na FGV em SP. O início na Copersucar, os desafios com a Imcosul, a ModaCasa, a Eletroshop e a consultoria para o Grupo Joaquim Oliveira estão no volume, em meio a revelações sobre o aprendizado do empresário, que sempre valorizou a simplicidade, a disciplina, a inquietação criativa, o trabalho contínuo, a comunicação eficaz, o encantamento, a liderança, a valorização das pessoas e o foco no cliente. 

Da entrada na Renner em 1991 até sua transformação em primeira corporação do Brasil, em 1998, passando pela saída da J.C.Penney do Brasil no emblemático 2005 e, chegando a 2012 com a grande expansão, os ciclos de sete anos mencionados por Galló mostram seu caminho confundido com o da empresa. Corporação que não tem um claro acionista, controlada por profissionais escolhidos por um Conselho de Administração. 

Alguns duvidaram da fórmula. Hoje é parte boa e vitoriosa de nossa cultura empresarial. Depoimentos de empresários e líderes do porte de Jorge Gerdau Johannpeter, Roberto Setubal, Luiza Helena Trajano, Adelino Colombo, Nelson Sirotsky, Oswaldo Schirmer e Salim Mattar revelam aspectos pessoais e profissionais de José Galló, executivo focado na consistência estratégica, na austeridade, na confiança, na eficiência operacional e sempre de olho vivo no cliente e na concorrência. 

lançamentos 

Voos Pátrios (Editora Insular, 224 páginas), do executivo e empresário chinês Peter Ho Peng, que viveu no Brasil entre 1951 e 1973 e, atualmente, vive na Flórida, traz artigos sobre México, Califórnia, Brasil, política, futebol, médicos cubanos e outros tópicos relevantes. 

Fala de seu sequestro pelo Doi-Codi e de sua expulsão do Brasil, para onde retornou nos anos 2000. Em 2013, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça reparou seus danos. 

O Lagarto na Taipa-1936 (AMZ Editora, 368 páginas) é o romance de estreia do professor João Celeste Agostini, que lecionou muitos anos Língua e Literatura Brasileira e Portuguesa. 

É estreia literária madura, e resgata os valores e a história dos bravos imigrantes italianos, através de envolvente e bem narrada trama envolvendo famílias de imigrantes entre 1883-1936, em uma colônia imaginária. Alma humana, comportamento e lembranças doloridas dos Alpes estão na obra. 

Um psiquiatra na Coreia do Norte (Editora Buqui, 112 páginas), do médico e doutor em Psicologia Nelson Asnis, autor de Homem Bomba, o sacrifício das pulsões (2013) e Do divã ao aeroporto (2015), publicados pela Buqui, é o relato da viagem do autor, sozinho, à Coreia do Norte. 

O país não oferece irreverência ou boemia e apenas cinco brasileiros por ano enfrentam a nação totalitária. Asnis nos mostra o que está escondido aos olhos do mundo. - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/09/colunas/livros/587521-jose-gallo-o-melhor-ceo-do-brasil.html)

29 DE SETEMBRO DE 2017
JORNADA DO CONHECIMENTO

Atriz lança livros e portal de "mindfulness"


SESSÃO DE AUTÓGRAFOS e evento sobre qualidade de vida fazem parte da programação de Bruna Lombardi em Porto Alegre

Atriz, roteirista de cinema, apresentadora, escritora, Bruna Lombardi vem a Porto Alegre neste fim de semana para mostrar mais duas facetas de seu multifacetado trabalho. Ela lança, hoje, dois novos livros, Clímax, seu primeiro volume de poemas inéditos em mais de 30 anos, e Poesia Reunida, que, como explica o título, agrega os três volumes que publicou anteriormente. Amanhã, Bruna será a anfitriã e mestre de cerimônia da Jornada do Conhecimento, evento no Teatro do Bourbon Country que terá como convidados os escritores Eduardo Bueno, Letícia Wierzschowski, o historiador e professor Leandro Karnal e o ator Caetano OMaihlan.

Clímax, o novo livro, reúne poemas que alternam o ponto de vista do erotismo como uma experiência espiritual e da espiritualidade como uma experiência erótica. É o primeiro livro de poemas da autora desde O Perigo do Dragão (1984).

Já a Jornada do Conhecimento se constitui em um misto de encontro intelectual e sarau artístico centrado nos desafios para uma vida com qualidade. Eventos semelhantes já foram realizados por Bruna em outras capitais como São Paulo, Rio e Salvador (veja a entrevista ao lado) e servem para apresentar o portal que a atriz e escritora lançou em agosto, a Rede Felicidade (redefelicidade.com.br), fórum sobre temas como arte e cultura, espiritualidade, saúde, viagens e vida natural. Além de reunir textos e vídeos de convidados, a Rede Felicidade também reúne um blog no qual Bruna escreve e responde a questionamentos dos leitores cadastrados.

Nas jornadas, Bruna discute muitos dos mesmos temas com seus convidados. A ideia, segundo ela própria, é ter sempre nessas presenças diferentes visões e formações.

- Falamos muito de escolhas, de "mindfulness", ou seja, de atenção plena, da felicidade como escopo da vida, mas mostrando todas as facetas desses temas. Quero mostrar todos os ângulos de um tema, e mostrar também que todas as pessoas que estiverem dispostas, cada uma pelo seu ângulo, podem achar um jeito de dividir uma experiência para a criação de um mundo melhor - diz Bruna, em entrevista por telefone a ZH.


29 DE SETEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA


Foi o Grêmio que rebaixou o Inter

Ontem, o Wendell Ferreira, do Esporte da Zero, me pediu um texto no qual deveria responder como o Inter se sairia na Primeira Divisão se jogasse com esse time de hoje.

É claro que se sairia bem. O Inter tem time, sim, para jogar na Primeira Divisão, inclusive desde que caiu para a Segunda.

Mas caiu. Por que caiu? Por causa do Grêmio.

Foi o Grêmio quem rebaixou o Inter.

Antes que os colorados comecem a xingar minha mãezinha, dona Diva, explico. O time do Inter, no ano passado, não era tão ruim a ponto de ficar 14 partidas sem vencer, como ficou, nem era tão ruim a ponto de remanchar nas últimas colocações por mais de dois terços do campeonato, como remanchou. Além disso, não havia sinais explícitos de revolta no grupo de jogadores: os salários estavam em dia e, se existiam problemas financeiros, nenhum deles era tão grave a ponto de se infiltrar no vestiário.

Mas um time, qualquer time, para vencer, precisa de um ingrediente mais do que de todos os outros: concentração.

Olhe para o Grêmio hoje. Não foi apenas a venda de Pedro Rocha que fez o time despencar de rendimento. Foi a desconcentração. De repente, pequenas questões começaram a desviar o Grêmio do rumo seguro que seguia: a dúvida sobre como tratar o Campeonato Brasileiro, o acúmulo de competições, a derrota para o Corinthians, os pênaltis perdidos, a demora da renovação de Luan... Foi esse conjunto de contingências que distraiu o grupo do Grêmio, e ninguém ganha quando está distraído, nem no futebol, nem no tênis, nem no boxe, nem no xadrez, nem na vida.

Já o Inter de 2016 tinha um só foco: não cair para a Segunda Divisão. O problema é que o objetivo de não fracassar é muitíssimo mais pesado do que o de ter sucesso, sobretudo se o fracasso é mais do que um fracasso: é uma desgraça.

Pois foi assim que o Inter encarou a possibilidade de rebaixamento: como a maior desgraça que poderia ocorrer com o clube. E, por Inter, que digo, é a instituição inteira: dirigentes, torcida, funcionários e jogadores.

É claro que a ameaça da Segunda Divisão é aterradora para todos os clubes grandes, mas, no caso do Inter, havia um elemento mais perturbador: a queda significaria a perda de um argumento importante no debate com os gremistas.

Grêmio e Inter, já disse e repito, vivem um para o outro, existem um para o outro, espelham-se um no outro. Quando D?Alessandro estava para ser contratado, Fernando Carvalho viajou para Buenos Aires, sentou-se em frente a ele e explicou:

- É o seguinte: lá, nós temos que ganhar do Grêmio. O importante é ganhar do Grêmio.

Certíssimo. D?Alessandro compreendeu essa realidade e, desta forma, transformou-se em uma lenda no Rio Grande do Sul.

É assim, sempre foi assim: quando o colorado brande D?Alessandro, o gremista responde com Renato Portaluppi. Cada conquista de um clube serviu para que, com ela, o torcedor espezinhasse o torcedor do outro clube. Os dois foram crescendo nessa emulação. De repente, tornaram-se campeões do Estado, do Brasil, da América e do mundo. Eram iguais nos triunfos, mas diferentes no malogro: o Grêmio havia caído para a Série B, e o Inter, não.

Então, a queda do Inter representava a perda de um galardão. Era insuportável. Imagine, agora, os jogadores ouvindo a todo momento, de todo mundo, que o Inter NÃO PODIA cair.

Foi essa angústia que contaminou o vestiário e cimentou as chuteiras ao solo. Foi essa angústia que roubou a concentração dos jogadores do Inter. Não tenho nenhuma dúvida: é o tamanho da rivalidade que eleva a dupla Gre-Nal aos píncaros. Mas, quando um deles cai de tal altura, a dor é muito maior.

DAVID COIMBRA

quarta-feira, 27 de setembro de 2017



27 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Mosaicos

Somos feitos de vários pedaços, e esse recorte é o que há de mais íntegro em nós: os cacos, as partes, o quebra-cabeça da nossa vida em constante montagem, peças que ora se encaixam, ora não levam a nada. As cores variadas da nossa alegria convivendo lado a lado com dores monocromáticas, o contorno de nós que vai se revelando à nossa revelia. Revelando à revelia: com boa vontade, isso é até poesia.

Não sei você, mas é assim que me vejo em frente ao espelho: craquelada. Inteira, claro, mas de uma inteireza constituída por inúmeras células que se renovam, cicatrizes internas e externas, marcas de biquíni, cílios, lágrimas, dentes, sorrisos. Que caleidoscópio é um ser humano. Vira para um lado, vira pra outro, e o que parecia rígido transfigura-se.

Ontem, o Paulo Germano publicou em sua coluna o belo trabalho em mosaico idealizado por Silvia Marcon, que está exposto na fachada da Casa do Estudante Universitário, no centro de Porto Alegre, mas essa minha reflexão nasceu de uma visita ao Caminho das Serpentes, em Morro Reuter, um pedaço (vai vendo, mais um pedaço) da inteireza que chamamos arte. 

A 700 metros de altitude, está a casa de uma mulher que é puro talento e generosidade. Nada ela retém pra si, tudo ela compartilha, divide. Estou falando de Claudia Sperb, reconhecida artista plástica com trabalhos expostos em importantes centros culturais brasileiros e que transformou seu hábitat particular num espaço público aberto à visitação. 

Seu ateliê, com sua coleção de gravuras, xilos, litos, bonecos e desenhos, está à disposição do nosso olhar, e seu enorme jardim abriga um delirante parque de mosaicos: tudo é lúdico, colorido, inspirador. Escolas organizam passeios com crianças, mas adultos também procuram o local a fim de fazer piqueniques, relaxar ou assistir a algum show ao ar livre, que eventualmente acontece numa plataforma com vista para toda aquela linda região. E ainda se pode dormir lá, porque há quartos, é uma pousada também.

Vá até o Google e digite Caminho das Serpentes para visualizar o que aqui tento traduzir em palavras. Achei a atmosfera parecida com a do Parque Güell, de Barcelona, numa versão em miniatura, mas não menor. Toda arte é grande, transcendente, e, nestes tempos em que estamos mergulhados no lamaçal político, no descontrole do Estado diante da violência, na ameaça de um retrocesso brutal de costumes, de pensamento e de liberdade, na escuridão de um futuro ainda sem luz no fim do túnel, visitar um local mágico é um conforto pra alma.

Se nada parece ter solução, ao menos há escapadas possíveis. Pedacinhos de felicidade, caquinhos mesmo, que a gente emenda um no outro até compor o que somos.

martha.medeiros@terra.com.br



DAVID COIMBRA

O milagre da leitora

Alguns meses depois de eu ter passado por aquela cirurgia no rim, andava meio aéreo pelos desvãos da cidade, tentando manter o ânimo, mas estava difícil. Ainda sentia dores e os exames não tinham sido exatamente bons e tudo parecia nebuloso. Aí aconteceu algo estranho.

Era setembro, e o Sala de Redação seria transmitido ao vivo do Acampamento Farroupilha. Havia muita gente assistindo, o galpão da RBS ficara lotado. Normal que várias daquelas pessoas quisessem falar conosco depois do encerramento do programa, não poucos haviam se deslocado até lá só para isso. Mas, para mim, seria um problema - tinha um compromisso marcado para antes das três da tarde. Assim, decidi sair por trás do galpão e me esgueirar para o estacionamento. Meio antipático, mas não via alternativa.

Foi o que fiz. Quando o Pedro Ernesto deu o boa-tarde final, deslizei encostado nas paredes do cenário e fugi pelos fundos.

Então, a surpresa: havia uma pessoa esperando por mim. Mas como??? Não era possível aquilo... Eu saíra rapidamente e não avisara ninguém.

Era uma senhora de aparência simpática, que levava um grande pacote nos braços. - David! - ela me chamou assim que me avistou. - Quero falar contigo. Havia energia em sua voz. Aproximei-me, perplexo. Antes que perguntasse como ela adivinhara que eu ia sair por ali, ela explicou:

- Não sei por que, achei que te encontraria aqui. Estou te esperando faz mais de uma hora. Sou uma leitora que gosta de ti.

Balancei a cabeça, balbuciando: - Claro... Claro... Ela prosseguiu:

- Vim para te trazer isto - e me pôs o pacote nas mãos. - É uma Bíblia. Trouxe para te ajudar. Quero dizer, também, que estou rezando por ti.

Fiquei meio que paralisado. Uma pessoa desconhecida, que eu jamais vira na vida, saíra da sua casa e se postara atrás de um galpão, esperando um programa de rádio terminar, só para me dar uma Bíblia e dizer que orava por mim...

Aceitei o presente, agradeci, trocamos mais algumas palavras e ela mesma se despediu:
- Eu sei que tu tens compromissos. Pode ir. Fui.

Saí dali flutuando, sentindo-me bem. Realmente bem. Não sei se Deus se comoveu com as orações daquela senhora, mas a mim, sim, ela conseguiu comover. Depois daquele encontro, inflei-me de confiança para continuar a batalha.

Onde será que ela está agora? Onde vive? O que faz?

Não lembro do nome dela, não sei nem se perguntei, tal foi minha desorientação com seu gesto. É possível até que, se a vir de novo, não a reconheça. Mas o fato de ela ter feito o que fez, o fato de ter se movimentado em favor de outra pessoa em um mundo cada vez mais egoísta, sem esperar nada em troca, isso fez a diferença. Era o bem pelo bem, sem segundas intenções, sem a pretensão da recompensa.
Foi bonito.

Aquela leitora anônima provou que, de vez em quando, as orações, de fato, podem realizar milagres.
DAVID COIMBRA


Dirceu e Palocci

Jamil Bittar/Reuters
ORG XMIT: 470301_1.tif Advogados públicos carregam faixas e fazem manifestação por reajuste salarial em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília (DF). Segundo o Fórum Nacional da categoria, o governo havia prometido reajuste de 30% a partir de novembro, mas quebrou sua palavra. (Brasília, DF, 17.01.2008. 12h20. Foto de Alan Marques/Folhapress)
José Dirceu, Lula e Antonio Palocci no Palácio do Planalto, em foto de abril de 2004
BRASÍLIA - José Dirceu e Antonio Palocci foram os aliados mais importantes de Lula na eleição de 2002. O primeiro montou a aliança que tirou o PT do gueto da esquerda. O segundo negociou a trégua entre o partido e o empresariado.

Depois da vitória, os dois foram recompensados com os principais cargos do novo governo. Dirceu passou a pontificar na Casa Civil como um primeiro-ministro. Palocci assumiu a Fazenda com carta branca para comandar a política econômica.

No período da bonança, Lula não poupava elogios para afagá-los. O ex-líder estudantil, que pegou em armas contra a ditadura militar, virou o "capitão do time". O médico de Ribeirão Preto, que não parecia ter intimidade com a bola, foi comparado ao craque Ronaldinho Gaúcho.

Depois viria a tempestade, e o chefe lançou os auxiliares ao mar. "Eu afastei o Zé Dirceu, afastei o Palocci, afastei outros funcionários e vou continuar afastando", disse, durante a campanha à reeleição em 2006.

Nesta terça, os ex-ministros voltaram a se cruzar no noticiário. Dirceu, que cumpre prisão domiciliar, teve a pena aumentada para 30 anos de prisão. Palocci, que negocia um acordo de delação premiada, anunciou a decisão de se desfiliar do PT.

Condenados por corrupção, eles escolheram caminhos opostos. Dirceu manteve o silêncio em nome da "causa". Arrisca passar o resto da vida preso, mas é tratado como herói pelos antigos companheiros. Palocci deve voltar mais cedo para casa, mas jamais se livrará da pecha de traidor.
Muito antes da Lava Jato, os dois chegaram a ser cotados para suceder Lula no Planalto. Então vieram o mensalão e o escândalo do caseiro, e a candidatura sobrou para Dilma Rousseff. Mas essa já é outra história.
*
Ao disputar a Presidência, o tucano Aécio Neves disse aos eleitores que sua vitória significaria "um não à corrupção e um sim a um governo correto, regido pela ética". Pois é.

terça-feira, 26 de setembro de 2017



CARPINEJAR

Presente simbólico ou sentimental

Há uma grande diferença entre o presente simbólico e o sentimental.

No presente simbólico, o outro descaradamente não quer gastar. Deseja comprar qualquer coisa somente para a data não passar em branco. Vai errar com certeza o destino da escolha. Não pretende agradar, mas apenas se livrar da tarefa. Já vai com má vontade na loja. É capaz de comprar uma manta no verão, um chinelo no inverno. Tropeça na estação equivocada do carinho.

Não tem cuidado para estudar a personalidade do presenteado. É o cara de pau que aparece com pacote de meias em promoção. Quando não recorre a um brinde parado em sua própria casa, embrulhado como camisa depois de festa, com papel reciclado de alguma comemoração antiga. É uma lembrança, uma péssima lembrança, onde a avareza é que manda. O agradecimento será educado, jamais sincero.

Já o presente sentimental é igualmente barato, porém revela um conhecimento íntimo do aniversariante. É quando existe a devolução do olhar mais atento, a recuperação de relíquias de uma vida, a devolução do passado mais precioso. O presente pode não ser caro, só que envolve pesquisa e esforço para achá-lo. Significa que alguém dedicou parte do seu tempo para procurá-lo, contrariando passagens rápidas em shoppings e lojas de conveniência.

Mimo que provoca o choro, o engasgo, a autêntica surpresa, com aquela pergunta vaidosa por dentro do silêncio: "Como sabia que era importante para mim?".

Existiu uma investigação da sensibilidade, um acompanhamento em tempo real dos desejos mais recônditos. Quase como um achados e perdidos da alma. Não é somente um presente útil, é um presente raro.

Minha mulher localizou a máquina de escrever Lettera 82 verdinha numa feira de artesanato, pois guardou a informação de que comecei escrevendo poesia no modelo igual. Eu não contive a minha felicidade. Vinha até com o estojo para carregar nas viagens. Estava mais conservada do que a que perdi na adolescência. E ela ainda teve o capricho de adquirir fitas reservas para não faltar tinta nas peregrinações pelos versos. 

Meu filho, por sua vez, encontrou os diários de meu cineasta predileto, Tarkovski. Como ele lembrou? A gente imagina que ninguém nos escuta e, de repente, vem a materialização de conversas esparsas e distraídas da convivência. Minha filha construiu um abajur de papelão porque eu sempre lamentava a ausência de um objeto bonito na mesinha da sala. Ela entendeu a minha indireta, mesmo quando não contava com discernimento total daquela necessidade. Falei por falar, e fui amado em dobro.

O presente simbólico preocupa-se com o preço. O presente sentimental é feito para recuperar o nosso valor.
CARPINEJAR

26 DE SETEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

O doutor Drauzio disse: vá para o sol

Meu negócio agora é vitamina D. Nós entrevistamos o doutor Drauzio Varella no Timeline e ele disse que é importantíssimo tomar sol para se reabastecer de vitamina D. É a vitamina D que vai tornar os seus (os meus, os nossos) ossos fortes e saudáveis.

O doutor Drauzio contou algo que, para mim, soou espantoso: o nosso esqueleto está sempre em processo de renovação. A cada ano, ele se renova 10%, em média. Ou seja: a cada 10 anos, você tem um esqueleto novinho debaixo da pele. Penso que isso é espetacular. Um esqueleto novo! Mas que boa ideia. Bem que estou precisando de um esqueleto novo.

Ocorre que, se você não toma sol, ou se sai de casa untado de protetor solar, você ficará com deficiência de vitamina D. O seu corpo, sedento por essa vitamina tão deliciosa, procurará por ela em algum lugar. Onde a encontrará? Homiziada no seu esqueleto. Aí o seu corpo vai retirar a vitamina D dos seus ossos, descalcificando-os, fazendo com que eles fiquem frágeis como palitos de fósforo e, vez em quando, se quebrem tristemente, desfalcando o seu time de futebol 7 nos jogos das segundas.

Agora, se você se expuser ao sol o tempo suficiente para deixar a pele levemente tostada, tudo bem: você terá vitamina D para uns dois meses. Seu esqueleto ficará tinindo.

Portanto, aquela história do Pedro Bial, "use protetor solar, use protetor solar, use protetor solar", aquilo não é bem assim.

Claro: nada de exageros. Eu, que sou branquicela, já sofri muito por não seguir o conselho do Bial. Se bem que, nos anos 1980, ninguém nem falava em protetor solar. Ao contrário, falava-se em bronzeador. As pessoas passavam até preparados com Coca-Cola na pele. Por Deus.

Uma vez, eu estava no Morro dos Conventos com uma namorada e ela, para me proteger do sol, cobriu-me de óleo Johnson. Suspeito que aquela namorada me odiasse. No primeiro dia, fritei inteiro feito uma batatinha do McDonald?s. Acabou ali a minha temporada praiana.

Lia coisas horríveis sobre o sol: que o sol é cumulativo e que é responsável por 70% do envelhecimento da pele. Quer dizer: a idade só é responsável por 30% do envelhecimento! É um número assustador, algo como os índices de rejeição dos candidatos a presidente.

Os japoneses, mais do que todos os outros povos do mundo, e apesar de viverem no país do sol nascente, sempre temeram os raios ultravioleta e tal. As japonesas NUNCA tomam sol. Só saem de casa bem cobertas por chapéus e debaixo de sombrinhas. Resultado: você vê uma japonesa de 80 anos e acha que ela tem 40, aquela pele é lisinha de pêssego e branca de leite, chega a faiscar.

Ah, mas agora já sabemos que não é nada disso. Japoneses, Bial, dermatologistas alarmistas, todos estavam errados. Ou, pelo menos, não estavam tão certos assim. O sol me dará um novo esqueleto! Eu quero um novo esqueleto!

Tem sido essa a história da ciência. Uma história de erros e correções. O ovo já foi redimido, a banha de porco também, a redenção da manteiga está a caminho e tempo virá em que a carne vermelha será alçada aos píncaros da alimentação saudável. Viva a cerveja e o vinho! Viva a feijoada e o mocotó! Viva o sol! Viva a vida! Não me venham mais com censuras e restrições! Abaixo a repressão!

DAVID COIMBRA