30 DE SETEMBRO DE 2017
CLÁUDIA LAITANO
SEXO, MENTIRAS E VIDEOTAPE
EU JÁ FUI AQUELA MÃE, COM UMA FILHA PEQUENA NO SUPERMERCADO. EU TAMBÉM JÁ ME DISTRAÍ, OLHANDO PARA O OUTRO LADO.
A imagem é dilacerante, não apenas pelo flagrante de violência que captura, mas pela familiaridade da situação. Eu já fui aquela mãe com uma filha pequena no supermercado, no shopping, no parque. Eu também já me distraí examinando um produto, atendendo um telefonema, olhando para o outro lado. Nunca aconteceu nada, mas poderia ter acontecido, perto ou longe dos meus olhos - e a imaginação retroativa pode ser ainda mais viva do que o pior filme de terror.
O vídeo que registrou o abuso de uma criança em um supermercado de Porto Alegre trouxe para a tela dos nossos smartphones um crime que costuma acontecer nas sombras, onde não há câmeras, testemunhas ou punição imediata. Em cena, um medo universal: o de não estar por perto quando um filho precisa de ajuda. Foi por uma rede de mães conectadas, por esse medo comum e pela indignação, que o vídeo se espalhou pela cidade - antes que muitas se dessem conta de que divulgar as imagens do crime era uma forma de estender a violência contra a vítima.
O episódio devolveu a discussão sobre pedofilia para os domínios aos quais ela pertence: justiça, segurança pública, saúde mental. A polêmica em torno da exposição Queermuseu havia transplantado a questão para o plano das falsas notícias e do falso moralismo.
Um problema que preocupa não apenas pais e mães, mas especialistas de todas as áreas que atendem crianças vítimas de abuso sexual (a maior parte delas, como se sabe, atacadas dentro de casa, por pessoas conhecidas) foi instrumentalizado para servir a uma pauta política bem específica. Houve gente, nos últimos dias, capaz de comparar o ataque real com o suposto crime simbólico de uma obra de arte - o que poderia ser apenas ignorância se não fosse antes franca má-fé.
Um problema que preocupa não apenas pais e mães, mas especialistas de todas as áreas que atendem crianças vítimas de abuso sexual (a maior parte delas, como se sabe, atacadas dentro de casa, por pessoas conhecidas) foi instrumentalizado para servir a uma pauta política bem específica. Houve gente, nos últimos dias, capaz de comparar o ataque real com o suposto crime simbólico de uma obra de arte - o que poderia ser apenas ignorância se não fosse antes franca má-fé.
Usar palavras de forma irresponsável é uma das mais antigas estratégias para mentir e enganar. Foi o que fizeram as pessoas que, mal-intencionadas, apresentaram-se publicamente como defensoras da integridade de crianças (genéricas) supostamente afetadas por uma exposição. Ser "contra" a pedofilia, aliás, é mais ou menos como ser contra assassinatos, estupros ou terremotos. Não diz nada, em si, sobre a pessoa que emite a opinião - a não ser que a platitude proferida coincida com o ponto de vista da maioria das pessoas.
É muito mais fácil lançar acusações esdrúxlas sobre uma artista do que interessar-se genuinamente pelas histórias dramáticas que acontecem todos os dias dentro de famílias e de outras instituições respeitáveis. Pedofilia é um assunto grave, e não faltam pessoas que se preocupam de verdade com o problema em Porto Alegre. Já todos aqueles que, no conforto da sua poltrona ou do seu palanque usam o termo de forma leviana, não apenas não estão fazendo nada para defender vítimas em potencial, mas estão desviando energia que seria melhor empregada servindo à prevenção dos crimes reais. Aqueles que acontecem num piscar de olhos, à luz do dia, quando estamos distraídos olhando para o outro lado - real ou metaforicamente.
CLÁUDIA LAITANO