terça-feira, 12 de setembro de 2017



12 DE SETEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA

A arte proibida do Santander


Em meados do século 19, o imperador Napoleão III entrou em uma exposição de arte, deteve-se diante de um quadro e ficou tão furioso com o que viu, que chicoteou a tela.

Esse Napoleão que percorria galerias com chicote na mão era sobrinho do grande Bonaparte, aquele que quase dominou a Europa inteira e que primeiro salvou e depois desgraçou a Revolução Francesa.

A pintura que escandalizou o pequeno Napoleão era de Gustave Coubert: uma camponesa emergia nua das águas de um rio, levando as mãos atrás da nuca e, assim, expondo os seios rijos e rosados.

A pintura é belíssima, mas o imperador não só não gostou dela como a vilipendiou. Sorte de Coubert. Apesar de alguns cafés e rodas francesas terem proibido que seu nome fosse sequer citado em discussões, depois daquilo, ele se tornou pop em Paris. Mais tarde, Coubert arrojou-se a promover uma exposição particular e teve a ousadia de cobrar entrada. Era a primeira vez que uma mostra exigia ingresso pago, em Paris. E foi um sucesso.

Coubert tinha talento, esforçava-se e foi vergastado pela sorte, e vergastado é o termo correto, porque a sorte lhe veio na ponta do chicote de Napoleão III.

Como Coubert, muito do que foi ultraje antes é clássico agora.

Entenda: "Não existem razões erradas para se gostar de uma obra de arte; existem razões erradas para NÃO se gostar de uma obra de arte".

A frase, que cito amiúde, é do professor austríaco Ernst Gombrich, autor de uma obra-prima da literatura didática, A História da Arte. Se você ainda não leu, corra agora à livraria, compre essa maravilha e, ao pé do ponto final, agradeça-me de joelhos.

Lendo Gombrich, você compreenderá que a grande arte é transgressora, causa rupturas e faz o mundo evoluir. A arte está à frente da sociedade; o jornalismo e o Direito, atrás dela.

Por isso, é preciso ter todo o cuidado quando se analisa um quadro, uma escultura, um livro ou uma música. É preciso compreender como a noção de beleza é subjetiva, como depende de inúmeros fatores, tanto sociais e culturais quanto pessoais.

Claro que é possível estabelecer critérios estéticos. É possível, sim, identificar o que é bom e o que é ruim. A arte contemporânea, não raro, é péssima simplesmente porque é malfeita. Você estaca diante de uma obra dessas e não vê técnica, não vê força, expressão ou graça. Quase sempre, curadores e artistas alegam que essas obras têm a finalidade de provocar o debate acerca de determinado tema. Balela. É aquilo que Tom Wolfe identificou como a arte que depende em pelo menos 50% do observador. Quer dizer: ela não tem valor em si. Ela existe para fazer a polêmica e virar assunto de resenha.

Você esbarra em algumas dessas obras precárias nas ruas de Porto Alegre, cidade pródiga em arte pública ruim. Desagradável, porque você é obrigado a contemplá-las.

Agora, no caso da exposição vetada do Museu Santander, há uma ocorrência grave. Uma mostra de arte exposta em ambiente fechado foi cancelada devido a protestos do público. Alguns organizaram inclusive um boicote contra o Santander. Ora, você pode não gostar de uma obra de arte, seja por motivos certos, seja por motivos errados. É direito seu. Mas quando você a chicoteia e quer bani-la, como Napoleão III, você não está sendo crítico: está sendo obscurantista.

A arte pode ser incorreta. A arte pode ser gay ou homofóbica, machista ou feminista, capitalista ou comunista, a arte pode cometer até o pior dos pecados sociais: o racismo. O verdadeiro pecado da arte não é o tema que aborda: é ser ruim.

A arte exposta no Santander era boa ou ruim? Não sei, não fui à exposição, vi apenas fotos e filmes de algumas peças. O que sei é que uma comunidade pode não apreciar uma obra de arte, pode considerá-la horrível, ofensiva e de mau gosto, mas não pode vetá-la. O veto, a censura, o boicote é o olho fechado, é a cabeça da avestruz enterrada no buraco para não ver o predador que se aproxima. É a escuridão e o silêncio.

É a ignorância.

Abra os olhos, Porto Alegre. Até para saber para o que não se quer olhar.

DAVID COIMBRA