sábado, 17 de novembro de 2018


17 DE NOVEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Na gôndola dos melões


Eu a vi quando entrava no Trader Joe?s. O Trader Joe?s é um supermercado daqui. Gosto de ir lá. Eles são ótimos para escolher as músicas que tocam no sistema de som. Você fica empurrando carrinho por entre as gôndolas e ouvindo um rock?n?roll suave, um blues, um jazz. Às vezes, sabe o que eles põem para rodar? Bossa Nova. Morando nos Estados Unidos e viajando por outros países, constatei que a Bossa Nova é o estilo musical mais importante da história brasileira. Não há ouvido estrangeiro que não se deixe embevecer por alguma obra-prima de Tom Jobim ou João Gilberto.

Mas, como dizia, ela estava entrando no Trader Joe?s, e logo chamou minha atenção. Porque vestia um short sumário, leve, desses de corrida. Muitas mulheres usam shorts mínimos aqui, isso é algo bem natural, só que, nesse dia, fazia muito frio. A primeira neve da temporada até já ocorreu: foi em 15 de novembro, uma neve chata, misturada com chuva, o pior tipo de neve que há.

E a moça usava aquele calçãozinho. Era oriental. Japonesa, talvez. Ou coreana. As orientais gostam de mostrar as pernas e, admita-se, elas têm mesmo belas pernas, torneadas, às vezes longas, sempre lisas como a inocência e tenras como Kobe Beef. Mas, naquele dia, com a temperatura perto do zero, era preciso coragem para expor as pernas.

Era uma moça bonita, de lábios carnudos, como às vezes são os das japonesas, e pele rosada. Caminhava ao lado de um americano. Tinha de ser americano - ele era alto, loiro, quase gordo e de pescoço vermelho, característica dos habitantes do meio-oeste dos Estados Unidos. Ele olhava para ela com carinho, quase que com veneração. Eles seguiram exatamente para onde eu ia: a seção das frutas. Pararam diante dos melões. Então, ela colheu gentilmente um melão da pilha e mostrou para ele. E ele enrubesceu. Por Deus: ele enrubesceu. Aquele pescoço vermelho ficou ainda mais vermelho, perto do bordô, e o rubor escalou-lhe o queixo e as faces e lhe fez reluzir a testa e pôs as orelhas em fogo.

Por que será que ele ficou encabulado quando ela lhe mostrou um melão?

Aí ele murmurou: - Melão? E ela repetiu, rouca: - Melão? 

Aquilo era perturbador. Mas não podia ficar observando-os mais, seria indelicado. Fui em frente com minhas compras, avancei por entre os corredores, ouvindo aquelas meninas do Bangles cantando:

"Six o?clock already

I was just in the middle of a dream


I was kissin? Valentino

By a crystal blue Italian stream".

Fui colocando as coisas no carrinho meio distraidamente, o casal não me saía da cabeça. O que eles fariam com aquele melão? O que já tinham feito? O que poderia ser cometido com um inocente melão?

Lembrei que, no Japão, melões são caríssimos, porque eles têm de importá-los. Há alguns anos, um único melão custava 30 dólares para os japoneses. Não sei se continua tão caro.

Os japoneses têm o paladar refinado. E, em questões de sexo, são ousados. Li um livro, uma vez, sobre o Japão: Favela High Tech, do jornalista Marco Lacerda, que lá viveu. Ele contava coisas que os japoneses faziam, por exemplo, com pepinos. Mas em nenhum momento citou o melão.

Fiquei imaginando loucuras com melões. Nos anos 1970, foi lançada uma pornochanchada brasileira em que o ator Cláudio Cavalcanti fazia amor com uma melancia. Esta cena se tornou célebre, todos os guris da época comentavam a respeito. Mas eram apenas ele e a melancia. Como um casal poderia empregar um melão nas lides do amor? Esse que era o mistério.

À essa altura, rodava pela prateleira dos sucrilhos. Não aguentava mais de curiosidade. Resolvi voltar. Não teria a desfaçatez de inquirir o casal, mas compraria um maldito melão e, em casa, estudaria o assunto. Dobrei a esquina, passei pelos rolos de papel higiênico, pelas latas de massa de tomate, pelos sacos de arroz e cheguei, enfim, às frutas. Eles ainda estavam lá, o americano rubicundo e a japonesa de pernas de fora. Estavam em frente a outro vegetal. Aproximei-me devagar. Queria ver o que faziam. Ela tinha um robusto buquê de couve-flor nas mãos. Ele olhava, sorrindo. Ela sorria também. Ele disse:

- Couve-flor? Ela repetiu: - Couve-flor? E ele enrubesceu outra vez.

Balancei a cabeça e suspirei fundo. Porque havia entendido: o melão não era especial. Nem a couve-flor. Como não seria o brócolis. É que eles estavam apaixonados. Estavam encantados um com o outro. E tudo, tudo, até os hortifrutigranjeiros, é maravilhoso quando se está amando.

DAVID COIMBRA

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