sábado, 16 de outubro de 2021


16 DE OUTUBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Ser pobre faz mal à saúde 

Há pouco mais de um mês, entrevistei o padre Julio Lancellotti, que atende a população mais vulnerável e mais abandonada da cidade de São Paulo. Chamou a atenção que, além da refeição - a única do dia para a maioria daquelas pessoas -, o padre também distribuía máscaras, sabonetes, absorventes e escovas de dente para os moradores de rua. Um deles, inclusive, pediu duas escovas, a segunda para o cachorro que o acompanhava.

A gente, que pode ter mais ou menos, mas que ainda assim tem, esquece que um simples sabonete pode ser artigo de luxo para muitas famílias. O mesmo valendo para o papel higiênico. Para o creme dental. Nem vamos falar em xampu e condicionador, embora baste ter cabelo para saber que são produtos importantes. No mundo em que falta comida, eles são completamente dispensáveis.

A pobreza de higiene é apenas uma entre tantas, a pobreza alimentar, a pobreza de moradia, a pobreza para estudar, a pobreza de perspectivas. Onde tomar banho, se não há casa? Onde escovar os dentes?

No começo da pandemia, o Padre Julio mandou instalar uma pia na entrada da igreja de São Miguel Arcanjo, bem no limite entre os bairros da Mooca e do Belenzinho, para que os moradores de rua pudessem lavar as mãos - a medida mais elementar de combate ao vírus. Se não fosse aqui, ele perguntou, onde eles se lavariam? De que adianta martelar lave as mãos, lave as mãos, lave as mãos, se nem água limpa para isso existe? A ideia do padre Julio bem que podia inspirar outras igrejas.

A essa altura você já deve saber onde este texto vai parar: no veto do presidente à distribuição de absorventes para meninas e mulheres em situação de pobreza. Um projeto que custaria aos cofres públicos R$ 84 milhões. Muito menos que, por exemplo, os R$ 3 bilhões em emendas distribuídas a parlamentares previamente escolhidos e usadas, entre outras coisas, para a compra de tratores com preços superfaturados. Não, não é fake news.

Adolescentes em idade escolar chegam a faltar 45 vezes por ano à escola pela pobreza menstrual, a impossibilidade de comprarem absorventes em seus períodos. Para quem diz "minha avó usava paninho e nunca reclamou", vale lembrar que muitas meninas sequer têm água em casa para lavar os arcaicos paninhos. Acabam usando folhas de jornal.

Por que o presidente vetou o projeto? Segundo ele, por não ter verba de custeio. Damares, a ministra (com caixa baixa mesmo) da Mulher, Família e Direitos Humanos, justificou: querem vacina ou absorvente? Querem arroz ou absorvente? Como se uma coisa tivesse a ver com a outra.

Não que seja um fato isolado. Em julho, o presidente vetou o projeto que reduzia as exigências para que os planos de saúde custeassem remédios orais contra o câncer. Pouco antes, havia vetado integralmente o projeto que assegurava internet grátis para professores e alunos da educação na rede básica. É o Caco Antibes fazendo escola: eu tenho horror a pobre.

Mas faz sentido. No país onde mais de 19 milhões de pessoas passam fome, osso e pelanca viraram iguarias. Remédio, educação, absorvente, tudo isso é perfumaria. Mas o que se tornou supérflua mesmo foi a dignidade.

Que fase.

CLAUDIA TAJES

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