sexta-feira, 9 de dezembro de 2016



09 de dezembro de 2016 | N° 18710 
DAVID COIMBRA

Não acredito mais

Você sabe aquele primeiro sucesso do Tom Hanks, Quero ser grande? Ele interpreta um menino de 12 anos de idade que deseja tornar-se adulto instantaneamente e, por um encantamento qualquer, consegue. Entra em um corpo de homem, mas, na alma, ainda é criança.

É um bonito filme sobre a inocência perdida.

Eu, adulto, não sinto vontade de outra vez ser criança, mas de voltar ao passado e ver a criança que fui. E, como Tom Hanks, consegui. Hoje, ao olhar para o meu filho, me vejo quando pequeno. Não são poucas as vezes em que ele faz coisas que eu fazia, e das quais já havia até me esquecido.

Esse é o fascínio de o homem ter filho homem. É de ver-se nele.

Dia desses, olhando para o meu filho, percebi algo que eu tinha: a crença na justiça do mundo.

A família, a escola e até os filmes e a literatura se consorciam na construção desse sentimento vital para o funcionamento da civilização. Você acredita que o bem será recompensado e o mal será punido. Por quem?

Os egípcios foram os primeiros a crer que um deus exerceria essa função. Mais especificamente, uma deusa. Maat era a deusa da justiça. Ela adornava os cabelos com uma pena. Quando um humano morria, apresentava-se diante dela. Maat puxava a pena da cabeça e a deitava no prato de uma balança. No outro prato seria depositado o coração do falecido. Se o coração, intumescido de pecados, fosse mais pesado do que a pluma, a alma do morto era devorada por um demônio.

O seu coração é mais leve do que a pluma, leitor?

Em outras civilizações, mesmo adiantadas, como a grega, a religião não tinha essa função moral. Você não precisava ser bom para agradar ao deus. Bastava dedicar-lhe, em sacrifício, um bicho sem sorte. Ou cem deles, como no caso da hecatombe, que era o abate de cem bois. Em casos realmente graves, como nas guerras, os deuses reivindicavam o sangue de alguma criança ou de uma virgem. Os deuses sempre gostaram de sangue de virgem.

O judaísmo incorporou a crença do julgamento dos mortos de Maat e, mais, transformou-a em centro da religião. A partir de Moisés, Jeová começou a punir os maus e a premiar os bons, inclusive durante a vida. Já o cristianismo e o islamismo, que são filhos do judaísmo, preferem premiar depois da morte.

Mas, no Ocidente, a religião perdeu um tanto da sua primazia. Depois do Renascimento, Deus teve de compartilhar a fé dos homens com entidades mundanas. Ela pode se voltar para os critérios de um rei justo, de um ditador iluminado ou de um populista pai dos pobres. Também há a crença nos sistemas: o socialismo, o comunismo, a democracia e até o mercado. Num misto de espiritualidade e racionalidade, o homem pode acreditar nas forças holísticas da natureza. E, chegando ao osso completamente descarnado do ateísmo e do materialismo estrito, o homem ainda pode acreditar na filosofia. Ou seja: na suposta ordem moral intrínseca ao ser humano.

Tanto faz. O importante é o homem acreditar em algo.

O meu filho, hoje, é como eu era com sua idade. Ele acredita que o que é certo vai vencer.

Eu acreditava nisso, até ver que desgraças acontecem com pessoas boas, que muitas vezes o Mal vence e que, não raro, coisas ruins ocorrem sem nenhum motivo.

No entanto, não me tornei um descrente absoluto. Ainda cevo certas crenças. Ou cevava. Perdi algumas que me eram importantes. Amanhã conto quais.