sábado, 17 de dezembro de 2016



17 de dezembro de 2016 | N° 18717
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

ATÉ QUE A MORTE NOS LIBERTE

Encontrei tipos que trabalharam juntos até a aposentadoria, sem nenhum resquício de afeto recíproco. Tudo bem, não eram modelos de sociabilidade, mas louve-se que não permitiram que as diferenças pessoais interferissem na rotina alienante do que faziam. É certo que o produto final do trabalho conjunto teria sido melhor se fossem parceiros solidários, mas era uma repartição pública, e os controles de qualidade precários o suficiente para que ninguém se importasse com a infelicidade deles ou a ineficiência do sistema.

Se alguém, inconvenientemente, lhes perguntasse qual tinha sido a missão de cada um nesse mundo, seria um exagero esperar que a resposta fosse mais do que: sobreviver.

Conheci de perto um deles, e por esse soube do quanto o convívio tinha sido formal e morno. Penosamente. O que os unia era o desprazer de fazer o que faziam, e a falta de coragem de desistir e recomeçar. E assim, acovardados na origem, envelheceram. Não sem antes levarem para a vida afetiva o ranço pegajoso da incompetência que pune inexoravelmente os desapaixonados.

Considerando que a morte apagou seu rastro, vou chamá-lo de Evandro, mas bem que podia ser Ezequiel ou Malaquias, e usar sua trajetória como um exemplo real. Pois o Evandro era casado com a Rosana, ou Aurora, ou Magdala, mas isso não importa agora porque, não tendo mais com quem implicar, ela perdeu a utilidade e assim, desocupada e inútil, também partiu.

Mas voltando à história: eles mantinham um dos ódios conjugais mais simétricos que conheci. Na noite anterior a uma cirurgia dele, quando entrei no quarto para a visita pré-operatória, tinha ocorrido uma rusga monumental. Não que houvesse hematomas visíveis, menos, menos, mas o rancor era tanto que quase se podia agarrar com as mãos. É interessante como, depois de um tempo, se aprende a linguagem corporal, sempre muito didática. 

Por exemplo, quando ele perguntou se a cirurgia era muito dolorosa, antes que eu respondesse, ela semicerrou os olhos, significando “Ele sempre foi um frouxo!”. Ou, “Doutor, este tumor tem mesmo relação com o fumo?” provocou nela um desdenhoso balançar de cabeça, facilmente traduzível por: “Você fez por merecer, amoorr!”. Certamente, aquele foi o mais cruel depoimento silencioso que presenciei.

Dei as explicações pertinentes e saí aliviado. Sempre temi o poder potencialmente contaminante do desamor exagerado. No dia seguinte, terminada a operação, encontrei a família ansiosa por notícias. Quando expliquei que o tumor, um pouco mais avançado do que o previsto, exigira além da retirada do pulmão inteiro a remoção do pericárdio daquele lado, fui interrompido pela esposa que, segurando o queixo trêmulo, perguntou: “E o que é o pericárdio?”.

Ao ser informada que era a capa do coração, ela emitiu um som que lembrava uma sirene, e esboçou o que prometia um desmaio.

Provavelmente com a imagem de esposa devotada comprometida pela visita da noite anterior, recolhi a minha solidariedade que devia ser espontânea, e recuei, concedendo-lhe todo o espaço para que se esparramasse no chão.

Confirmando minha previsão, no último instante, ela se recuperou, e fomos assim poupados daquele espetáculo mal ensaiado.

Mais uma impagável lição do improviso porque, como já disse alguém, no mais das vezes, agimos com a cabeça e mantemos o comando, mas quando surpreendidos, reagimos com o que somos. E a imagem que irrompe, sem caridade nem verniz, nunca é a que usaríamos numa campanha de marketing pessoal.