sábado, 17 de dezembro de 2016



17 de dezembro de 2016 | N° 18717 
LYA LUFT

O rio do tempo

O tempo é um rio que corre é título de um livro meu, dos recentes. “Corre pra onde?”, querem saber. Isso vai depender, como escrevi no livro: para outra vida, para novos horizontes, em círculo nos lugares e pessoas que amamos, finalmente para o nada ou para “um lugar melhor”, como se diz. Mas que esse rio corre, não tem dúvida. “De repente passaram-se vinte anos”, disse Clarice Lispector. 

“De repente eu tenho oitenta anos”, comentou com ar de surpresa minha mãe, antes que a enfermidade lhe roubasse a consciência de si e de nós. De repente, quem sabe, então, vão-se resolver nossas aflições civis de hoje, e as econômicas, e o sentimento de desamparo e confusão. E voltaremos a ser um país simpático, um pouco malandro quem sabe, mas não criminoso, não corrupto, não destruidor do cotidiano digno ou possível de seus filhos.

“Vivemos tempos estranhos”, diz um ministro do Supremo, nesse embate entre autoridades que em outros tempos nem se imaginaria. Tempos confusos, surpreendentes, cada dia uma chateação maior, uma confusão mais elaborada, uma perplexidade mais pungente. (Ainda bem que nos salvamos com novidades boas: os bebês que nascem, as crianças que começam a trotar naquele encantador jeito só delas, os amigos que recuperam a saúde, a família que se encontra, os amados distantes que se comunicam mais, o flamboyant delirando em vermelhos surreais na rua.)

Nós, os incautos pagadores de contas, contadores de trocados, e trocadores de emprego (ou simplesmente sem ele), não sabemos bem o que fazer. “Tá tudo muito esquisito”, comentamos uns com os outros, alguns querendo ir embora, outros querendo aguentar até que tudo melhore, porque é a terra da gente, e muitos são, como esta que escreve, reis em sua zona de conforto. Todos buscamos uma solução, que parece impossível ou distante.

Mas que está ruim está, todas as providências hoje nos deixam duvidosos, e as festas andam sem o brilho de outros tempos, essa é a verdade. Onde as ruas iluminadas numa competição de beleza em tantos bairros da cidade? A gente pegava o carro para ver, de noite, toda aquela beleza. Hoje mal saímos na noite escura.

Mas não dá pra ver só o vazio no copo, na vida, no país, no horizonte. O jeito é multiplicar outro brilho, nos tempos tormentosos: o brilho dos afetos, o calor dos abraços, a sinceridade na tolerância e o respeito pelas manias, esquisitices, aflições alheias, porque é tempo de aflições. Mas, em sendo isso, não precisa deixar de ser tempo de celebração: para os religiosos, celebra-se o nascimento de Cristo. 

Para os descrentes, a confraternização geral, especialmente em família e amigos, porque os amores também não são dádiva gratuita: têm de ser construídos, cuidados e merecidos. Dá algum trabalho manter essa ciranda emocional lubrificada e funcionando com certa mansidão, mas também traz um enorme conforto, apesar da unhada eventual da mágoa, da saudade, ou da preocupação – que, diga-se de passagem, é a inefugível marca das mães.

Complicado: se de um lado corre, de outro lado o rio parece se arrastar. Depende do ângulo pelo qual olhamos, do quanto sobra no bolso antes do fim do mês, depende do emprego seguro, da capacidade de alegria, depende de governantes sábios com recursos para que a grande engrenagem enferrujada volte a funcionar, e o tempo escorra mais manso. E a nossa vida também.