10 de dezembro de 2016 | N° 18711
DAVID COIMBRA
Os estupradores
Qual é o país mais avançado do mundo quando o assunto é o uso da tecnologia em substituição ao dinheiro físico?
Estados Unidos? Alemanha? Japão? Nenhum deles.
É a Nigéria. A moeda mais utilizada, na Nigéria, são mensagens de SMS.
Ocorre que, lá, 90% dos habitantes não possuem conta em banco. Assim, as pessoas teriam de carregar dinheiro em espécie para fazer suas transações, atividade perigosa e pouco prática, até porque a cédula nigeriana de maior valor é de algo correspondente a seis dólares. Ou seja: para ir à venda da esquina, comprar pão e leite, seria necessário levar o dinheiro em um carrinho de mão. Um problema.
Aí entrou em ação a criatividade africana. A operadora de celular começou a funcionar quase que como um banco. O sujeito vai ao bar com os amigos e, na hora de pagar a conta, passa uma mensagem atestando que transfere o valor para o número de celular do dono do bar. E é desta forma que são efetuados quase todos os negócios dos 150 milhões de moradores da Nigéria.
Por que isso é possível? Porque as pessoas acreditam que aquele SMS vale dinheiro.
O próprio dinheiro físico, cédula ou moeda, só funciona se as pessoas acreditarem nele. Se não acreditarem, não passa de papel pintado.
Tudo, na sociedade, só dá certo porque as pessoas acreditam umas nas outras. O mercado de ações vende promessas e eu prometo que vou escrever todos os dias, desde que a RBS cumpra sua promessa de me pagar todos os meses; há um papel que diz que você é dono da sua casa; o cartório afiança que você vendeu o seu carro para o seu amigo; quando você vê o sinal verde, segue em frente, acreditando que o motorista da rua lateral vá cumprir sua promessa de parar no vermelho.
Promessas de fazer, promessas de não fazer. Todos acreditam.
Por que você pode fazer umas coisas e outras não? Um nobre tigre, livre na natureza, faz o que bem entender, assim como uma repulsiva ratazana de esgoto. Por que você não?
Resposta: porque lhe disseram, e você acreditou, que, ao nascer, você se tornou pertencente a uma sociedade organizada como um Estado, regulado por leis.
Mas é claro que você pode deixar de acreditar. Você pode gritar: “Não fui eu quem fez essa lei. Não a cumpro!”. E, dito isso, você sai por aí pegando o que quiser, fazendo o que quiser, como o tigre ou o rato. Só que, neste caso, a sociedade organizada entra em ação. A lei, aquela em que todos acreditam, determina que você seja punido, e você é punido. Desta maneira, todos os outros que pretendam desacreditar na lei receberão uma advertência: se você não cumprir o acordo, será castigado.
É assim que funciona.
Agora, se o seu vizinho descumprir o acordo e não for castigado, você reagirá, com toda a razão: “Por que ele pode e eu não?”. E também descumprirá o acordo. A falta de critério da lei a desacreditou.
O mesmo vale para a Nigéria. Se as pessoas não acreditarem mais que a mensagem recebida pelo celular vale dinheiro, o sistema quebra.
No Brasil, as chamadas forças de esquerda, lideradas pelo PT, estão se esforçando para tirar a credibilidade do Executivo. É compreensível, faz parte do jogo político. Já o Legislativo está com a credibilidade abalada devido ao envolvimento da maioria dos deputados e senadores nos escândalos de corrupção. Também é compreensível, devido à forma como se estruturou a administração pública no país.
Restava o Judiciário, agindo com razoável correção em meio à crise dos outros dois poderes. Restava.
Ao se submeter a Renan Calheiros, ao desmoralizar um de seus próprios ministros, ao ridicularizar todos os oficiais de Justiça do Brasil, ao não adotar a própria jurisprudência, ao ser político, negociador, vil e acochambrador, o STF, a suprema Corte da nação, se achicou e estuprou a Constituição que deveria proteger.
Mais do que todo o roubo dos quatro mandatos petistas, mais do que toda a fisiologia do PMDB, mais do que o todo cinismo do PSDB e toda a venalidade dos trinta e tantos partidos brasileiros, mais do que todos os funcionários públicos corruptos, mais do que os traficantes do Rio, mais do que os assassinos de Porto Alegre, mais do que todos os pequenos, médios e grandes bandidos que já existiram no Brasil, o STF golpeou de morte a democracia brasileira. Porque lhe tirou a credibilidade, que é do que ela vive.
Foi essa a crença que perdi. A democracia brasileira é, definitivamente, uma farsa. É uma democracia de conveniência. Conveniente para alguns. Uns poucos, aqueles de gravata e toga. Que, felizmente, nunca seremos eu ou você.