sábado, 31 de dezembro de 2016



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
DAVID COIMBRA

Pessoas que importam

Quatro Réveillons atrás, minha situação era precária. Ou mais do que isso.

Naquele fim de ano, eram consideráveis as chances de que não contemplaria o Réveillon seguinte. O câncer que descobrira meses antes havia se espalhado e sentia dores em várias partes do corpo.

Era ruim, e pior ficava devido à incerteza. Consultei mais de um médico, a fim de tomar uma decisão, e eles davam prognósticos diferentes. O que devia fazer?

Estava na casa dos meus amigos Admar e Neca Barreto, em Santa Catarina. No fim do dia em que tudo parecia mais sombrio, eu, eles e mais a minha mulher, a Marcinha, saímos para jantar.

Não gosto muito de expor essas questões pessoais. Não por vergonha ou pudor, mas para não ficar incomodando os outros com meus problemas. Lembro de quando meu avô morreu. Ele estava com enfisema pulmonar. Em seus últimos dias, sofria com dores atrozes e não tinha disposição para se levantar ou falar. Logo ele, que havia trabalhado toda a vida, e com gosto.

Na véspera da sua morte, sentei-me à beira da cama e, para distraí-lo, tentei conversar sobre um assunto qualquer, acho que era futebol. Ele disse:

– Como vou pensar nisso agora?

Fiquei refletindo sobre aquilo. Pensei que meu avô sabia que morreria em breve, e não há evento mais importante na vida de uma pessoa do que a hora da sua morte. Mas ele sabia também que, ainda assim, em pouco tempo, mesmo as pessoas que mais o amavam, como eu, logo estariam falando de futebol, de política, do clima, das coisas comezinhas dos dias, que acabam sempre se sobrepondo às mais importantes, inclusive à mais importante delas.

A morte de todos nós, portanto, é inevitavelmente solitária. É chato transformá-la em um estorvo para os outros, que não têm nada a ver com isso.

Nossas dores e nossos problemas são só nossos, de mais ninguém. Não é por acaso que os psicanalistas são ricos – eles ganham dinheiro para ouvir os problemas alheios, algo muito valorizado. Se existissem ouvintes gratuitos à disposição, os psicanalistas morreriam à míngua.

Mas, naquele dia, falei sobre meu problema, mesmo com o risco de provocar aborrecimento ao próximo. A Marcinha, é claro, já sabia o que estava acontecendo. O Admar e a Neca, ao ouvirem, ficaram me olhando com apreensão. Disseram algumas frases de consolo, não recordo exatamente quais foram, o que recordo é a forma como me olhavam. Percebi, e creio que não me enganei, que estavam realmente preocupados, estavam realmente se sentindo tristes, estavam realmente querendo me ajudar.

Eles se importavam.

Naquela noite, depois de sair do restaurante, lembrei outra vez do meu avô. E pensei que, se era verdade que depois da morte dele meus interesses mundanos retornaram, era verdade também que eu me importei, e muito, com o que se passava com ele. Senti sua morte, e ainda sinto. Então, pensei no Admar e na Neca e nos meus tantos outros amigos e na minha família, na minha mulher, no meu filho, e concluí, pretensiosamente, que algumas pessoas no mundo se importavam comigo. Talvez até algumas pessoas que eu não conhecesse se importassem também.

Aquela ideia me animou. No dia seguinte, estava de queixo erguido. Vou fazer o melhor que puder, pensei, porque não estou sozinho. E fiz. E, por enquanto, está dando tudo certo. Sinto-me bem e feliz, neste Réveillon, embora esteja longe da maioria das pessoas que amo, entre elas o velho Admar e a jovem Neca. Tudo certo. Sei que todos eles, de alguma forma, estarão sempre comigo.