sexta-feira, 6 de janeiro de 2017



06 de janeiro de 2017 | N° 18734 
CLÁUDIA LAITANO

Seu polícia

Homem abandonado pela namorada atormenta os vizinhos ouvindo música no último volume e avisa: só vai parar de beber e de incomodar a vizinhança quando ela voltar para casa. Mulher infiel apronta todas para o marido e é expulsa de casa. Esposa desconfiada dá um flagra no marido no motel e ameaça dar uma surra nele e na acompanhante. Parece prontuário da Vara de Família, mas é apenas um pequeno extrato dos temas presentes nas 10 músicas que mais tocaram no rádio em 2016. Brasil, o país da sofrência.

A enorme variedade de ritmos da música brasileira não está expressa na lista de mais tocadas no rádio já há alguns anos. Um único gênero, o sertanejo universitário, domina o ranking de alto a baixo, o que é ruim não apenas para quem não é fã do gênero, mas para toda a indústria musical. Variedade é riqueza cultural, e gosto é repertório: mais do mesmo só gera necessidade de mais do mesmo.

O sertanejo universitário se caracteriza por letras simples, refrões fáceis de lembrar e arranjos padronizados – em geral, as músicas acabam tão parecidas entre si, que poderíamos imaginar um único compositor, heroico, abastecendo toda a cadeia produtiva do gênero. 

A fórmula, aplicada à exaustão aos novos artistas que chegam aos magotes ao mercado todos os anos, conquistou corações e pistas de dança de forma surpreendentemente democrática: em um país tão desigual quanto o nosso, o ritmo atrai tanto os jovens que ralam para pagar o crediário do smartphone quanto os que vão e voltam da balada sertaneja dirigindo a pick-up do ano. Se você acredita que somos o que lemos (e o que ouvimos), talvez devesse parar alguns instantes para prestar atenção nas letras das canções que estão formando razão e sensibilidade de toda uma geração.

Escute, por exemplo, a música número 1 do ranking, Seu polícia, aquela do namorado abandonado que afoga as mágoas bebendo e ouvindo música alta, sucesso da dupla Zé Neto & Cristiano. A polícia aqui não é vista com desconfiança, como na canção dos Titãs (“Polícia/ Para quem precisa/ Polícia/ Para quem precisa/ De polícia”), ou como ameaça, como no rap dos Racionais (“Não confio na polícia”), mas como uma instituição anódina e potencialmente corrompível (“Seu polícia/ É que eu separei recentemente/ De paixão eu tô doente/ Será que o senhor me entende?”).

Sim, a gente entende. Sabemos o que costuma acontecer quando homens se convencem de que os próprios sentimentos são mais importantes do que o bom senso ou as leis que eles deveriam obedecer. Basta digitar “inconformado com o fim do relacionamento” no Google para descobrir como essas histórias costumam terminar.