18 DE NOVEMBRO DE 2017
J.J. CAMARGO
FAZER O BEM VICIA
Agrada-nos mais louvar do que imitar os autores de gestos muito heroicos
Os autores de gestos muito heroicos, claramente fora do alcance do limitado espectro de coragem das pessoas comuns, são vistos com um misto de admiração e perplexidade. Agrada-nos mais louvá-los do que imitá-los, mesmo quando tudo o que se pede é que copiemos a intenção, adequada às possibilidades de cada um. E, com alguma frequência, esses tipos superiores são tratados com o escárnio que dedicamos aos que se acham muito.
Sempre me impressionou que esses heróis inimitáveis sejam pessoas simples que não têm a menor preocupação em serem reconhecidas porque não dependem da opinião dos outros para se sentirem gratificadas. Pelo contrário, odeiam a publicidade estrondosa e consideram todos os elogios exagerados.
Durante a 2ª Guerra Mundial, Irena Sendler, uma engenheira alemã, conseguiu autorização para trabalhar no Gueto de Varsóvia como especialista em canalizações. Conhecendo as intenções dos nazistas quanto aos judeus confinados lá, decidiu salvar as crianças judias que pudesse remover na sua camionete que tinha permissão para entrar e sair do gueto. Enquanto pôde manter esse disfarce, conseguiu salvar cerca de 2,5 mil crianças, até ser descoberta e presa pela Gestapo e levada para a terrível prisão de Pawiak, onde foi brutalmente torturada, na tentativa de que confessasse os nomes e as moradias das famílias que albergavam crianças judias.
Suportou toda a tortura, sem jamais trair seus colaboradores ou as crianças ocultadas. Irena mantinha um registro com os nomes de todas as crianças que conseguiu retirar do gueto guardados num frasco de vidro enterrado debaixo de uma árvore no seu jardim. Nas infindáveis sessões de tortura, quebraram-lhe os ossos dos pés e das pernas, mas não conseguiram quebrar a sua determinação.
Já recuperada, foi, no entanto, condenada à morte. Na véspera da execução, um soldado alemão levou-a para o que anunciou como um interrogatório adicional. Quando ganharam a rua, ele gritou-lhe em polaco: "Corra!". Esperando ser baleada pelas costas, mas sem alternativas, Irena correu e correu, como só se corre pela vida, e fugiu, escondendo-se em becos cobertos de neve, até ter certeza de que não fora seguida. No dia seguinte, já abrigada entre amigos, Irena encontrou, aliviada, o seu nome na lista de polacos executados, que os alemães publicavam regularmente nos jornais com intenção de perpetuar o medo entre a população judaica.
Sem se intimidar, ela conseguiu uma identidade falsa e seguiu sua missão. Terminada a guerra, tentou localizar os pais que tivessem sobrevivido, para reunir as famílias. A maioria tinha sido levada para as câmaras de gás. Para aqueles que tinham perdido os pais, ela ajudou a encontrar casas de acolhimento ou pais adotivos. Quase 60 anos depois, foi indicada para receber o Prêmio Nobel da Paz, mas não foi selecionada. O comitê agraciou Al Gore por sua peregrinação em torno do aquecimento global.
Haverá quem considere que arriscar a vida todos os dias para salvar apenas 2,5 mil crianças não tem nada de tão especial! Desconfio, às vezes, que os icebergs teoricamente vítimas do tal aumento da temperatura dos oceanos estejam derretendo mais pelo rubor do constrangimento.
J.J. CAMARGO