21 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA
Não tiro!
Um dia, o Beto Zúqui descobriu que só tinha um rim. Ele era adulto, já. Pai de filho e tudo mais. Foi fazer um exame qualquer e o médico perguntou casualmente:
- Sabia que você tem um único rim?
O Beto Zúqui contou-me essa história exatamente quando soube que eu tinha passado por uma cirurgia para extrair um rim. Enviou-me um e-mail brincando: "Lembra de quando eu te dava balãozinho lá no Alim Pedro? Pois naquela época eu só tinha um rim".
Não lembro de o Beto Zúqui ter me dado balãozinho no Alim Pedro. Se bem que ele era craque. Meia-direita clássico, de habilidade escorreita e chute firme. Um Luan.
Falo do Beto Zúqui por causa da história do Grenalzinho do IAPI, que comecei a contar ontem. É que nem sempre conseguíamos formar dois times para jogar depois do clássico dos profissionais. Porque era domingo à noite e todo mundo tinha compromisso na segunda de manhã. E porque alguns, chateados com o resultado do jogo, trancavam-se em casa. Já o Beto Zúqui era outra conversa. Ele gostava de se fazer de difícil. Morava no primeiro andar, em um apartamento de frente para a rua. Nós parávamos embaixo da janela:
- Betoooooo! Ô, Betoooooo! Beto Zuuuuuuuquiiiiii!
Nada de o Beto aparecer. Nós sabíamos que ele estava em casa. Continuávamos gritando. Beto Zuuuuuu...
Aí ele abria a janela. - Que é que é?
- Vamos lá na Amovi fazer um Grenalzinho?
- Não. Que chato.
Outro que faltava ao jogo era o Zé Fernandes. Ele gostava de jogar e, quando jogava, sempre fazia gol. Não chutava forte nem se podia dizer que fosse especialmente habilidoso, mas marcava gol. Sangue de centroavante. Só que a mãe dele o obrigava a ficar em casa, para estudar. Dizia que o Zé ia ser arquiteto. E não é que o Zé virou arquiteto mesmo? Uma vitória da maternidade e da arquitetura, uma derrota do futebol.
Houve um Grenalzinho, porém, em que conseguimos arrancar o Zé Fernandes e o Beto Zúqui de casa, porque nossa insistência foi grande: estávamos muito desfalcados e precisávamos deles. Para completar os times, convocamos inclusive um forasteiro. Não lembro de onde ele vinha, devia estar visitando alguém. Sei que o rapaz topou jogar conosco na noite de domingo, depois de uma decisão do campeonato. Estávamos nos anos 1970. Ou seja: o Inter havia vencido.
Esse estrangeiro era gremista. Ele era bem magrinho e se apresentou fardado com a camisa do Grêmio. Aconselhamos que, no caminho para a quadra, ele a tirasse e a levasse na mão, porque haveria muitos colorados fazendo festa e poderia dar confusão. Ele balançou a cabeça:
- Não tiro.
- Olha...
- Não tiro.
Paciência. Seguimos em grupo por dentro das ruelas do IAPI. A Amovi ficava logo ali. Porém, já na primeira quadra deparamos com uma turma de colorados. Eram uns 40, todos mais velhos do que nós. Vinham com garrafas de cerveja nas mãos e faziam grande alarido. Quando viram o magrinho, vieram direto. Prensaram-no contra uma parede.
- Tira essa camisa! - mandou um negão do tamanho do Moledo.
- Não tiro! - respondeu o magrinho.
Nós implorávamos:
- Tira, cara! Tira!
- Não tiro!
Tentamos argumentar com os colorados:
- Ele não é daqui...
- Não interessa! - interrompeu um colorado ainda maior do que o primeiro. - Vai ter que tirar!
- Não tiro!
Então, o sujeito levou a mão ao bolso das calças e puxou de lá um canivete de mola. Apertou um botão e a lâmina saltou num zip.
- Tira! - ordenou.
- Não tiro!
- Tira! - gritou, e levou a ponta do canivete à garganta do magrinho. Que empinou ainda mais o nariz e repetiu, com o olhar faiscando:
- Não tiro!
Nós já estávamos quase nos ajoelhando para suplicar por perdão, quando o colorado meteu o canivete na gola da camisa do magrinho. Rasgou o pano e riscou a pele. Um filete de sangue escorreu e tocou o distintivo do Grêmio. O magrinho continuou impávido e mudo. O grandão sorriu, recolheu o canivete e rosnou:
- Gremista babaca!
E foi embora, levando sua turma junto. Não lembro do resultado do jogo, não lembro se levei balãozinho do Beto Zúqui, não lembro se o Zé fez gol, só lembro do magrinho correndo com a camisa rasgada, o peito ferido e o orgulho intacto. Outros tempos. Outro mundo.
DAVID COIMBRA