16 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA
Para onde foi a inteligência?
Gostaria de morar no Rio de Janeiro. Dos anos 1960.
Que dias interessantes deviam ser aqueles, vividos ao som da música suave de Tom e Vinícius ou das conversas amenas de amigos enfeitiçados pelas meninas cheias de graça, que passavam num doce balanço a caminho do mar.
Aquele Rio era especial porque fremia de inteligência. Millôr Fernandes e Ruy Castro, Nelson Rodrigues e Fausto Wolff, Miele e Bôscoli, todos circulavam do Leme ao Pontal. Hoje, qual é a localização geográfica da inteligência brasileira?
Aliás, ainda existe inteligência brasileira? Acho que não. Existem inteligências, mas elas estão homiziadas. O debate político embruteceu os cérebros no Brasil. Ou talvez não tenha sido o debate político, e sim a perplexidade com a realidade brasileira.
Antes era mais simples: havia a ditadura, que, por conceito, é uma coisa ruim. Então, era ali que estava a raiz do mal. Tínhamos certeza de que, com democracia, os problemas do Brasil seriam resolvidos. Mas a democracia veio e os problemas não se resolveram. Ao contrário, se sofisticaram. Será que é mesmo o governo que tem de resolver a questão da pobreza?
Ou o governo é uma das causas da pobreza? Quais são os limites da repressão? Qual é a diferença entre garantias e garantismo? Entre autoridade e autoritarismo? O ar ficou nebuloso, e muitos dos nossos intelectuais procuraram porto seguro na ideologia ou, o que é terrível, em partidos políticos. Eis o fracasso rotundo. De repente, aquela discussão que era refinada tornou-se um bate-boca repetitivo entre uma direita truculenta e uma esquerda fisiológica e despegada da realidade.
Ninguém mais faz considerações sobre a qualidade do texto ou a capacidade de interpretação. Só o que chama atenção é a bandeira que o escritor ou o cantor carregam.
A arte, quando é engajada, torna-se datada. Não sou eu quem diz, quem disse foi Chico Buarque, o mais engajado dos artistas brasileiros.
Arte engajada é arte menor. A arte passa a sua mensagem pelo virtuosismo do artista. Por sua habilidade, não por seu ideal.
Mas não foi só a confusão intelectual que tirou a graça das cidades brasileiras, do Rio em especial. A tragédia é, também, como disse antes, geográfica. A violência urbana reduziu a circulação de pessoas, sobretudo na noite. É grave, porque o espírito de uma cidade se faz à noite.
Pense em Porto Alegre de tempos atrás. Digamos, até o fim dos anos 1990. Os personagens da cidade zanzavam de um ponto a outro, entre o cair e o erguer-se do sol. Às vezes, uma frase dita pelo Zini no Espaço IAB numa madrugada era repetida às gargalhadas pelo Felipe Vieira no Lilliput, na madrugada seguinte. Os personagens se encontravam, se conheciam e trocavam experiências e histórias.
Pegue um tipo daquela época: o Tatata Pimentel. Eis uma figura que faz falta a Porto Alegre. O Tatata não surgiu pronto: transformou-se nele mesmo, folclórico, brejeiro, irônico, você nunca sabia se ele estava falando sério ou contando uma mentira. De qualquer forma, era sempre uma mentira com graça.
Essa construção de personalidade se deu aos poucos, na noite, tendo como principais chocadeiras primeiro o Encouraçado Butikin e depois o Birra e Pasta. Não por acaso, o programa que ele fazia se chamava Gente da Noite, nome de uma música e de uma boate famosas de Túlio Piva.
O Tatata contava sobre a noite porque havia sobre o que contar. Mas a noite de Porto Alegre foi se asselvajando e os personagens da cidade foram se empobrecendo. Onde estão as inteligências do Rio, de Porto Alegre, do Brasil? Estão em casa. Conferindo as redes sociais.
DAVID COIMBRA