14 DE MARÇO DE 2018
PEDRO GONZAGA
Uma estética
Suponho que tenha a ver com o envelhecimento do corpo, porque, de um modo paulatino, brota-nos uma percepção mais sutil para a beleza fugaz das coisas, antes apenas considerada, agora contemplável em sua precária permanência, filha da irreversibilidade dos verões e da esperança florente de tantas primaveras fenecidas. É como se esta criatura que somos, feita de carne e razão, começasse a entender o que só o ofício dos dias ensina, com sua didática de acumulação, quando já há mais cicatrizes do que mágoas, economia do que força.
Se parte da apreciação estética está no corpo por meio da sensibilidade e do desejo (o empuxo que nos leva a querer tocar uma estátua, a vontade acesa à representação de um nu), não seria equivocada a preponderância que costumamos votar ao juízo?
Na estética japonesa, há um conceito chamado mono-no-aware, em tradução aproximada, uma empatia em relação às coisas, um louvor à beleza em seu caráter passageiro, efêmero, como a captada na breve floração da cerejeira. Em vez de lamentar a passagem do tempo, consolar-se com o que há de belo em tal passagem. Crê-se que essa postura é oriunda da meditação e do desapego budistas, e não estou a negar que possa ser acessada racionalmente pelos ocidentais, embora estejamos mais acostumados a classificar tais percepções como parte da melancolia: a tristeza serena de um fim de tarde, a garrafa oca do vinho dela lentamente exaurido, a despedida de um mar em que não mais nos banharemos.
Continuo a considerar, no entanto, o papel preponderante do corpo, para além de questões culturais, como o caminho para se chegar a essa beleza feita de tristeza. Estarmos no mundo, visitados seguidas vezes pela morte, é o que nos faz sensíveis, para além da consciência, da contemplação ou da melancolia.
Num preciso haiku, o mestre Issa Kobayashi escreveu: "Surpreendente/ Na casa em que nasci/ A primeira manhã de primavera".
Estou seguro de que se poderia explicar boa parte do efeito do poema a partir de um arrazoado estético. Acredito, no entanto, que uma parte essencial só a carne entende, ao voltarmos à casa onde nascemos, ao percebermos a transitoriedade do mundo no olor da brisa perfumada a qual pela primeira vez chamamos primavera, porque pela primeira vez, de fato, a percebemos em sua plenitude, ossos, carne e nervos, e tudo mais que escreve esta coluna.
PEDRO GONZAGA