sábado, 3 de novembro de 2018



03 DE NOVEMBRO DE 2018

DAVID COIMBRA

O que a comida diz de nós

Oescocês Niall Ferguson é um vizinho aqui de Boston. Ele é professor de História de Harvard e já escreveu alguns livros bem interessantes. Entre eles, Império, que conta "como os britânicos fizeram o mundo moderno", segundo o intertítulo. Logo no começo, na página 37, há um trecho que diz assim:

"A ascensão do Império Britânico, pode-se dizer, tem menos a ver com a ética de trabalho protestante ou o individualismo inglês do que com o gosto dos britânicos por doces. As importações anuais de açúcar dobraram durante a vida de Defoe, e isso foi apenas a parte maior de uma enorme explosão de consumo. (?) No fim do século 18, o consumo de açúcar per capita era 10 vezes maior do que o da França".

Ou seja: como os ingleses gostavam demais de doces e o açúcar era produzido fora da ilha, a Inglaterra foi buscá-lo lá fora e, assim, estabeleceu-se em outros países e os dominou e se tornou o império onde o sol jamais se punha.

O curioso é que os doces ingleses não são grande coisa. O clássico deles é um pudim de frutas vermelhas sem graça nenhuma. Tem também um biscoito servido com o chá que perde de longe para qualquer um dos nossos amanteigados.

Na verdade, a culinária inglesa é precária. Como a norte-americana. Tenho cá para mim que isso explica muito acerca dessas duas nações. Ingleses e americanos não perdem tempo à mesa ou na cozinha. Mas não por causa da "ética de trabalho protestante", como escreveu Ferguson. Os colonizadores ingleses dos trópicos não eram exatamente apreciadores do trabalho. Os indianos e os africanos é que se esfalfavam por eles. Eles, sabe o que eles faziam para queimar todo o açúcar consumido quando adoçavam o chá ou faziam aqueles pudins? Eles disputavam jogos com bola. Pode ver: quase todos os jogos com bola foram inventados pelos ingleses, que tinham de se distrair enquanto os nativos trabalhavam.

Já aqui, nos Estados Unidos, aqui, sim, os britânicos gastaram tempo e energia com trabalho duro. Tiveram de domesticar a natureza selvagem e bater-se com os índios, que não ficaram contentes ao ver suas terras tomadas por forasteiros. Nessa lida, os americanos empregaram doses elevadas de violência, e é por isso que os jogos deles, em vez de priorizar a habilidade, priorizam a força física: o futebol americano é disputado por mastodontes, o basquete por gigantes e o hóquei é só porrada. O beisebol parece mais pacífico, mas vá enfrentar um cara armado com aquele taco.

A comida diz muito de um povo. Os italianos, se não fazem a melhor comida do mundo, fazem a segunda melhor comida do mundo. Como, então, eles construíram um império que foi o formador do Ocidente moderno? Aí é que está: é que os legionários romanos viviam na austeridade dos quartéis. Eles se alimentavam, basicamente, de frutas, verduras e cereais. Carnes e molhos densos estavam reservados apenas aos patrícios, que moravam em villas nababescas, servidos às vezes por mais de mil escravos.

Meu amigo Andrea Ferrini, dono de uma agradável cantina toscana aqui de Boston, uma vez me emprestou um livro de receitas da rainha Catarina de Médici, uma das minhas personagens históricas favoritas. Catarina era florentina como o Andrea. Ao casar-se com o rei francês, ela levou para a tosca Paris toda a sofisticação de Florença. Foi então que os franceses aprenderam um pouco de modos à mesa. O uso do garfo, por exemplo, foi um dos ensinamentos de Catarina. Ela adorava comer. Tanto que, ao chegar à idade em que o metabolismo se torna mais lento, passou a engordar. E engordou e engordou e engordou e, um dia, foi montar em um cavalo magro e o coitado não resistiu ao peso e morreu amassado.

As receitas de Catarina, portanto, eram calóricas, mas deliciosas. O que corresponde ao quê? Ao Renascimento italiano, uma época de prazer dos sentidos, de culto à beleza e às coisas boas da existência. Viva a Itália!

O que a comida diria de nós, brasileiros?

Que houve uma transformação em nós. Tempos atrás, nós estávamos acostumados a sentar a uma mesa de bar e pedir uma cerveja para quatro amigos. Vinha aquela garrafa de 700ml, que era partilhada por todos. Havia congraçamento, havia harmonia. Agora, o que vem à mesa: quatro garrafinhas long neck. Cada um bebe a sua própria cerveja, ninguém mais enche o copo de ninguém. Individualistas, é nisso que nos transformamos. Tristes individualistas, fechados em nosso pensamento duro, em nossas opiniões imóveis, em nossa cerveja egoísta.

DAVID COIMBRA

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