quarta-feira, 28 de setembro de 2022


28 DE SETEMBRO DE 2022
MÁRIO CORSO

Motoboy

Verissimo, em uma crônica, imaginou um mundo onde ninguém saía de casa, salvo os motoboys. Em certos momentos da pandemia, a ficção parecia profecia. Nós em casa e eles entregando comida e remédios.

Naqueles dias, tornei fixo um hábito ocasional. Passei a sempre dar gorjeta ao entregador. Se fazemos isso com garçons, por que não a quem traz comida em casa?

De fato não é a mesma relação, no restaurante você o conhece e ele sabe qual a sua bebida. O drama do motoboy é ser um garçom invisível. Você o vê uma vez e tchau. A impessoalidade esfria a solidariedade.

Surpreendem-se quando lhes alcanço o dinheiro, dizem que ninguém lhes dá nada. Existe a modalidade pelo aplicativo de valor extra, prefiro a presencial.

Os motoristas reclamam de suas imprudências no trânsito. Já tive moto. Qualquer um que teve, nota que o para-choque da moto é a testa do condutor. Eles sabem-se vulneráveis. Porém eles são o elo mais frágil da velocidade e da ganância deste mundo. Ganham pouco por entrega. Portanto, não se trata de pressa, e sim de necessidade.

A forma de renda por aplicativos dos motoboys situa-os numa nova classe social chamada precariado. O neologismo dispensa explicação. O discurso que lhes passam é ao modo Uber: ser dono do próprio negócio, não ter patrão, trabalhar quando quiser. A propósito, pergunte aos motoristas de Uber quantas horas trabalham. É fácil achar quem segura o volante mais de 12 horas. São trabalhadores sem rede de proteção social. Se adoecerem ou se acidentarem, azar deles. A bomba maior explodirá na aposentadoria pífia, ou nem isso, que terão.

Uma foto ensejou esta coluna. Era de entregadores de aplicativos paulistanos. Estavam buscando quentinhas num lugar que ajuda população de rua. Claro que não são todos os motoboys que estão nesta sinuca, mas a foto desanima como símbolo de um absurdo. Pense na cena, entregadores de comida, com caixas nas costas exibindo a marca que lembra comida, que passam o dia cheirando a comida alheia, mendigando a própria comida.

A gorjeta não resolve o problema, mas ajuda na agrura da sua gincana diária na selva do trânsito. Mais do que isso, é um momento de mostrar, de uma forma concreta, que nós sabemos que eles existem. Um gesto que reumaniza a relação, que os lembre que não são só uma peça de uma engrenagem sórdida.

MÁRIO CORSO

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