sexta-feira, 30 de setembro de 2022


30 DE SETEMBRO DE 2022
EDUARDO BUENO

O sexo dos anjos

Foi em 29 de maio - 505 anos e um dia antes do meu aniversário. Sim, 29 de maio de 1453, um domingo de Pentecostes. A fabulosa Constantinopla (antes Bizâncio, hoje Istambul), então capital do Império Romano do Oriente, estava cercada há 53 dias pelo poderoso exército dos turcos otomanos, sob o comando do sultão Maomé II: 90 mil homens fortemente armados e bem treinados. 

Para defender sua cidade, o imperador Constantino XI contava, mal e mal, com 7 mil soldados e 35 mil civis. Ao raiar daquele dia histórico - que na escola nos disseram ser o fim da Idade Média e o início da Era Moderna -, as muralhas da cidadela tombaram e Maomé II cavalgou por uma avenida de sangue e morte até o coração da cidade que jamais voltaria a pertencer à Cristandade.

Reza a lenda que durante todo o período em que durou o cerco, dentro das muralhas de Constantinopla - tidas como inexpugnáveis - estava rolando um concílio no qual os clérigos discutiam ardorosamente sobre o sexo dos anjos, se é que eles tinham um.

Trata-se de uma falácia, é claro. Ou melhor, duma metáfora, a revelar que mesmo em face do avanço de um inimigo muito mais poderoso, duas alas do cristianismo ortodoxo se mantiveram radicalmente divididas. Tais facções estavam bem definidas: por um lado, os chamados "unionistas" (ou henotikoi); de outro, os "antiunionistas" (anthenotikoi). 

Os primeiros eram intelectuais de alto escalão, burocratas e clérigos que cercavam o imperador, favoráveis à aliança com os cristãos do Ocidente; os outros, monges, clérigos de baixo escalão e o "povo". Em Roma, o papado - corrupto e intolerante - já havia deixado claro que qualquer discussão sobre uma possível ajuda militar do Ocidente à Constantinopla só seria possível após uma "rendição" incondicional dos ortodoxos e sua submissão à fé católica. 

Assim, a suposta discussão sobre o "sexo dos anjos" na verdade era o racha entre as duas facções bizantinas: os radicais estavam decididos a arriscar tudo para garantir a integridade de sua fé, e aqueles que estavam dispostos a fazer concessões (oikonomia) para salvar seu império.

Estamos às vésperas da mais importante eleição do Brasil desde 1910, quando o civil Rui Barbosa (a pena) enfrentou o militar Hermes da Fonseca (a espada). Decidi falar sobre o sexo dos anjos para dizer que sou um "unionista", favorável ao voto útil e capaz de qualquer coisa para me livrar do inominável.

EDUARDO BUENO

Nenhum comentário:

Postar um comentário