sábado, 3 de dezembro de 2016



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
LYA LUFT

O grande silêncio


A maior parte das coisas nesta nossa vida não se explica, e não parece ter muito sentido. A morte é uma delas. Minha primeira experiência foi a pomba-rola congelada que encontrei nas lajes do pátio, certa manhã de inverno, há tantas décadas. O passarinho me enterneceu, levantei-o do chão, contente por ele não fugir, enfiei debaixo do casaco junto do peito para que não sentisse frio. Meu pai tentou me explicar que não adiantava: a avezinha estava morta. Melhor enterrar no jardim. “Ali, entre as roseiras da mãe.”

    No curso da vida, as mortes foram desfilando: tranquilas ou brutais, de velhos ou de crianças, os vivos entrando na sua alameda de mistérios. Mortes fazendo parte da vida. Já aos 35 anos, mãe de três filhos, perdi meu pai: minha vida se dividiu em antes e depois. Fora-se o meu chão fundamental, meu amigo, meu mentor, que estava sempre ali para mim e nunca falhava. No saguão da faculdade onde estava sendo velado, altas horas da noite, depois de viajarmos numa chuva gelada, o primeiro choque foram sua imobilidade e seu silêncio. 

Não adiantava mais chamar seu nome, acariciar seu rosto, seu cabelo grisalho tão igual ao de poucos dias atrás. Não adiantava a dor me rasgando, a incredulidade, a busca do apoio, do estímulo, de tantos significados. Nem um bilhete de despedida que, meio descompensada, procurei por vários dias entre seus papéis: não haveria motivo, uma vez que morreu de um modo fulminante. Suicidas deixam bilhetes; meu pai queria viver. As mortes que enfrentei depois foram silêncios se acumulando numa nuvem infinita que quase passa despercebida na maior parte do tempo.

Nestes dias atuais, de tão cruel tragédia que levou de uma vez dezenas de jovens e adultos, volta o vazio do silêncio fatal de tantas vozes. Numa hora dessas, a fatalidade enfia nossa cabeça nesse poço secreto: onde estão agora? Onde suas almas? Terão ficado perplexas, todas ali reunidas? No 11 de Setembro, muito imaginei aqueles tantos milhares de almas, e agora? Não estive mais em Nova York, mas quem foi me fala de uma sensação de sacralidade e intensa, embora tranquila, presença da morte.

Não só a perda, mas até a eventual possibilidade da perda de uma pessoa amada é uma sombra real sempre à espreita. Aqui e ali, como um raio, este aperto: este momento feliz não vai durar para sempre, essa pessoa também não, nem eu vou permanecer. O jeito é pensar que a vida é algo além de nascer, crescer, comer, procriar, trabalhar e acabar. Um pequeno consolo: depois de um bom tempo de puro horror, vamos entendendo: os que morrem, sendo amados, permanecem. Não só na memória, não só na nossa crença (para quem a tem), mas porque fazem parte de nós, de nosso afeto e nossa tristeza. Nossos medos, nossas lembranças boas. 

Nossa alegria também. Começamos a nos salvar, aliás, quando conseguimos comentar alguma memória engraçada, e rir. Ao menos, sorrir. A gente lembra da voz, das manias, das palavras, do rosto, do jeito de andar, ainda que mais esfumados, e nos inquietamos, como era mesmo? Porém, a morte também nos deixa uma dádiva: vontade de sermos melhores, de cuidar mais dos outros e de nós mesmos, de viver (ou inventar) alguma forma de permanência.