02 de janeiro de 2017 | N° 18730
L.F. VERISSIMO
Criancice
Quem, entre nós, nunca sonhou em ter um suprimento inesgotável de sorvete que atire o primeiro Häagen-Dazs. Era um desejo infantil, um desejo que se dissipava na adolescência, quando passávamos a sonhar com outras coisas. Mas o poder dá a quem o tem a sensação de que pode realizar tudo, inclusive fantasias infantis.
O presidente americano George Bush – o lamentável pai, não o lamentável filho – disse certa vez, meio brincando, que nunca gostara de brócolis e que agora que era presidente não precisava comer brócolis. Quem, entre nós, nunca sonhou em não ser forçado a comer brócolis, ou comer espinafre, ou tomar banho, ou ir ao dentista, ou arrumar o quarto?
Eu sei que não foi o Temer que pediu 500 potes de Häagen-Dazs para o avião presidencial, o que, além de um exagero, seria uma desfeita com a Kibon. Mas os 500 potes de Häagen-Dazs servem como metáfora, tanto quanto as joias da mulher do Cabral e outros acintes, para uma espécie de delírio que vem com o poder, e que não deixa de ser uma forma de infantilização.
Vi, certa vez, um documentário sobre o Frank Sinatra em que ele foi filmado na sua casa, que incluía um enorme salão todo ocupado por uma ferrovia em miniatura. No salão, havia uma placa na parede com a frase: “Quem morre com mais brinquedos ganha”. É isso: quem acumula mais desejos satisfeitos vence, ou é uma criança até o fim.
A quase compra de potes de Häagen-Dazs simboliza um grau de insensibilidade, nesta hora de aperto geral, que também tem algo de infantil, no sentido de que crianças não têm senso de medida. Quem decidiu pela compra é uma criança inocente, não importa sua idade. Ou, se cabe outra metáfora, 500 potes de Häagen-Dazs simbolizariam um descaso pela opinião alheia que beira a malcriação. Outra criancice.
Fiquei pensando nos meus próprios sonhos infantis, realizados e não realizados. Não me tornei aviador nem fui morar numa árvore como o Tarzan, e meu consumo de sorvete foi limitado pelas sucessivas ameaças maternas de ter uma indigestão mortal. Mas também lembro do prazer de ter nas mãos a primeira história em quadrinhos – a cores! E o do primeiro chute numa bola de futebol novinha, no tempo em que as bolas tinham a cor do couro. Ou da vez em que... Mas isto é outra coluna.