29 DE AGOSTO DE 2018
PEDRO GONZAGA
LITERAL
Bem-vindo a um mundo em que tudo quica, tudo rala, tudo mela, num cenário feito de sonhos com a concretude de casas de condomínio, bebidas e baladas indiscerníveis. Ao sol, as coisas reluzem como brinquedo novo, embora isso já seja uma imagem. É um mundo sem imagens, um mundo literal, higienizado de duplos sentidos, consumado por vozes nasaladas que estrebucham certezas para audiências que as regurgitam e as engolem como se fossem suas.
Muito se reclama agora da má interpretação dos textos. Trata-se de uma injustiça dos críticos. Simplesmente não há mais interpretação. Quando só o que se percebe é o sentido literal, consumiu-se o tipo de leitura que demandava reconhecer os jogos semânticos que se realizam abaixo da superfície.
Em toda parte, tomam-se os assuntos do discurso por sua substância. Se um artista cria uma obra de temática violenta, vê-se nele um apologista, pois se obliteraram as camadas que podiam fazer da obra antes uma crítica, uma denúncia, uma metáfora.
Por incapaz de chegar à profundidade dos eventos únicos, a literalidade gera um caos cognitivo em que já não há hierarquias. Pois contra o chapinhar eterno de gatinhas na realidade estavam o pensamento alegórico, o raciocínio comparativo, os ditos populares, responsáveis pela própria compreensão do que éramos num universo coletivo e incontrolável. No monturo do literalismo, nascem apenas as flores da irrelevância.
Na busca por mais literalidade, cultua-se o papo reto, sincero e autêntico, até serem obrigatórias etiquetas para alertar ironia, risco de ofensa, público-alvo. Como o resultado é morno, grita-se, sob pretensa intensidade. O último resquício de esforço simbólico agoniza nos eufemismos do politicamente correto.
Parece que a cultura ocidental foi de adulta à jovem, de adolescente à infantil, para voltar, por fim, às fraldas. Porque é no bebê que o desejo é sempre literal e satisfeito. E assim sai de cena o narcisismo primitivo, com sua ferida necessária, com seu corte abissal entre o ser e o mundo, e entra o narcisismo literal, o eterno berço em que todo o mundo sou eu mesmo ou coisas parecidas comigo que são eu, sem contradições, sem dúvidas ou ruídos. Daí a revolta que sentem nossos narcisos ao verem suas causas questionadas, daí a fúria com que xingam os que ousam lhes dizer que há um mundo lá fora, com dilemas mais obscuros do que o mero bichinho de borracha com que se comprazem e se cegam.
PEDRO GONZAGA