sábado, 3 de agosto de 2024


03 de Agosto de 2024
J.J. CAMARGO

Os limites da verdade

Um mundo sem mentiras teria muitas vantagens, no entanto, o supersincero é uma figura assustadora e temida. Claro que o constrangimento resultante será uma exclusividade das pessoas de boa índole, aquelas que motivaram a publicação dessa crônica. E que em nada se parecem com os limitados de caráter, sempre enredados em escusas fabricadas, contextos falsos e vieses convenientes.

Normalmente vista como a vilã dos relacionamentos pessoais, a mentira existe, em muito, porque nos ajuda a cumprir um propósito essencial: a convivência harmoniosa em sociedade. Não seria um exagero chamá-la de mentira do bem porquanto pode significar de preservação da dignidade que, para os desprovidos amiúde, representa a única e pífia justificativa para a sobrevivência.

Certamente, o mundo sem mentiras teria muitas vantagens: (1) os políticos teriam que encontrar virtudes verdadeiras, (2) os compromissos seriam respeitados, (3) ninguém manteria segredos e (4) a traição não existiria.

Na essência, todos desejamos que as pessoas nos tratem com sinceridade, mas intimamente tememos o supersincero, uma figura sempre assustadora.

Para quem acha relaxante o convívio com a verdade, uma recomendação útil: retenha toda a informação bombástica até comprovar sua autenticidade. Sites como Snopes e FactCheck.org podem ajudar.

Uma dúvida constante é o quanto estamos, de fato, preparados para a sinceridade absoluta. Porque, sem mentiras, você teria que ouvir com naturalidade o que os outros pensam da sua aparência, das suas opiniões, dos seus amores e, que desagradável, do seu desempenho profissional.

Todos admitem que a mentira pode ser uma bengala para a autoestima. Em consequência, quase nada do que se publica, por exemplo, em sites de relacionamento, é verdadeiro. Uma pesquisa baseada em uma rede social na Califórnia mostrou que os homens eram, em média, cinco centímetros mais baixos e as mulheres estavam seis quilos acima do peso anunciado.

Como a verdade está atrelada à palavra, ficamos sempre à mercê do jeito de dizer, com termos conciliadores ou belicosos, que fluirão condicionados a gatilhos de risco, como preconceito, intolerância, sequelas emocionais ou, simplesmente, cansaço.

Com uma visão isenta, é fácil concluir que dois predicados frequentes tornam a verdade uma ameaça ao convívio social amistoso: a verdade absoluta e a verdade permanente. A fonte de intolerância mais antiga é o contador de vantagens, um tipo frequente em reuniões sociais e quase obrigatório em entrevistas de emprego.

Como era de se esperar, essa intolerância aumenta com a velhice porque parece cada vez mais irritante que alguém suponha que apesar de tudo o que a idade ensina ainda sejamos impressionáveis.

Por outro lado, a prática da verdade tem significado diverso em diferentes ambientes, usando-se como extremos, a fidelização à verdade nas pesquisas científicas - onde a falsidade é repudiada com veemência máxima porquanto representa de malefício para a sociedade - e a permissividade sem filtro das redes sociais, que rapidamente se revelaram os celeiros das notícias falsas, com o descompromisso moral de quem não se importa que uma mentira possa destruir uma família ou emporcalhar uma biografia.

Em medicina, especialmente em condições extremas, verdade é empregada até o limite em que, por aspereza, possa comprometer a esperança. Perceber a diferença entre verdade total e verdade útil, em prol do paciente, é puro talento médico. _

J.J. CAMARGO

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