26 de janeiro de 2014 |
N° 17685
ARTIGO - Flávio
Tavares*
O pranto e o crime
A tragédia de Santa Maria foi tão
ampla e profunda, tão insólita e absurda, que ainda não terminou. Um ano
depois, tudo nela se multiplica, como se o horror fosse algo corriqueiro a
imitar, não uma carnificina a punir. Naquele domingo de 2013, primeiro foi o
espanto: mais de 200 corpos inertes, um ao lado do outro, num quadro que nem
sequer a ficção sádica de um filme de terror ousaria inventar e que, no
entanto, era verdade. Passado o espanto, veio a dor e veio o pranto. Choramos
todos! Com as lágrimas nos solidarizamos com as vítimas, mostrando que naquela
brutalidade não havia dor alheia, pois a dor estava também dentro de nós.
A presidente Dilma interrompeu
sua visita ao Chile e voou diretamente a Santa Maria para certificar-se da
tragédia. O mundo inteiro espantou-se! Mas e daí?
Um ano depois, a dor se
multiplica. Agora, com amor e respeito choramos pelos 242 mortos. Mas choramos,
também, de raiva e impotência: não há responsáveis pelo crime. Ninguém assume
sequer uma nesga de participação em nada, como se os únicos envolvidos na
tragédia fossem as próprias vítimas. Todos se dizem alheios a tudo. Dos donos
da boate (que armaram a ratoeira sem saídas) aos fogueteiros da banda, do
prefeito de Santa Maria aos fiscais e bombeiros (que legalizaram o absurdo),
ninguém assume sua parte no desastre que virou crime.
Essa mesquinhez absurda é
degradante. Por que nossas instituições são insensíveis ao delito? Onde está a
responsabilidade empresarial? Por que cortejar a impunidade, como se tudo fosse
permitido ao crime?
Nesta tragédia, tudo é espantoso.
Já lembrei aqui que nem na Guerra dos Farrapos, nem na Revolução de 1893 (em
que cada lado saía para matar e festejava a matança), houve 242 mortos de uma
só vez. Espanta, também, o desdém a que foi relegada a minuciosa investigação
dos delegados de polícia Marcelo Arigony e Sandro Meinerz. Milhares de páginas
com centenas de laudos periciais, testemunhos e interrogatórios foram tratadas
pelo Ministério Público como se retratassem uma rixa entre vizinhos. Terá sido
a partir daí que se abriu caminho à impunidade?
Será que as formalidades
processuais pesaram mais do que a realidade, como se a lei não devesse
interpretar a vida e não existisse para coibir a multiplicação da maldade? Terá
sido esta a via pela qual se guiou o poder judicial, quando optou pela situação
atual, em que os responsáveis diretos e indiretos desfrutam de plena liberdade?
Livres, os implicados na tragédia
comportam-se como se fossem vítimas da ânsia de justiça. Sem qualquer gesto de
arrependimento ou humildade, tentam eximir-se pela arrogância, transmitindo às
cinzas a responsabilidade de tudo.
Santa Maria transformou o luto em
luta e resiste. Fora disto, porém, o crime impune serviu de guia à corrupção:
na prefeitura de Porto Alegre passaram a “vender” licenças de funcionamento a
casas noturnas, com base na experiência das fraudes de Santa Maria. Foi a única
consequência direta da tragédia...
Em 2013, no dia seguinte ao
incêndio, escrevi neste jornal:
“Consumada a tragédia, além do
pranto e da solidariedade, o caminho árduo, agora, é chegar aos assassinos
diretos e indiretos (...) pois os culpados transformam-se em autores de um
homicídio coletivo. (...) A tragédia exige pensar a fundo e indagar sobre o
hedonismo da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria de venda
fácil. Até a vida de duas centenas de jovens que buscavam divertir-se. Esta
tragédia não é apenas dramática e brutal, é revoltante!”.
Hoje, um ano depois, indago:
quando veremos a justiça substituir a revolta?
*JORNALISTA E
ESCRITOR